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Original Favela: brechó da periferia que virou alvo de grandes marcas

Flávia Martinelli

01/11/2017 08h00

Estilo Original Favela: "Biquíni fora da época do sol, tendeu?"

Cada uma cuidava de seu rolê. Iris Ingrid, ou melhor Quelacrioula, como prefere ser chamada, tinha um brechó numa garagem alugada no Jardim Vista Alegre, na Zona Sul de São Paulo. Anne de Oliveira, também conhecida como Miss Miss Hollywoood (sim, é com três ós mesmo), é de Mogi das Cruzes, que fica depois do extremo leste da cidade, e vendia roupas usadas em redes sociais. Clássico das quebradas, elas montaram o próprio negócio quando se viram desempregadas e cansadas de se submeter às frustrações de uma rotina de empregos desestimulantes. Há dois anos, se uniram e criaram o Original Favela, um brechó itinerante e uma plataforma online de achados vintage que virou referência em moda e estilo – da periferia e fora dela.

Budweiser, Melissa e lista de celebridades estão atrás delas

Há poucas semanas, a dupla foi escolhida para participar do projeto Meio-Fio, da Melissa, que tem a proposta de mapear e visibilizar artistas que interferem na dinâmica paulistana, furando as 'bolhas' da capital. Outras marcas famosas já contrataram o Original Favela para assinar o casting de desfiles. Artistas como Rincón Sapienza e Tássia Reis solicitam peças para looks em eventos, clipes ou ensaios fotográficos.

No primeiro ano da marca, o Ori, como as proprietárias carinhosamente chamam o brechó, também se tornou um projeto itinerante com música das ruas da década de 90 e 2000 e brasilidades que Quelacrioula e Miss Hollywoood adoram. A cervejaria Budweiser patrocinou um festival de música do Original Favela no Vale do Anhangabaú. Quelacrioula e Anne ainda chamaram a atenção do portal norte-americano AFROPUNK, que surgiu do documentário de mesmo nome de 2003, e hoje concentra iniciativas mundiais de jovens negros adeptos do "faça você mesmo".

Luxo: macacão de helanca por R$ 30

Só modelos da vida real

O Original Favela virou fashion. E com roupa barata, que foram descartadas (por serem fora de moda), modelos que subvertem a lógica da indústria da beleza e do que a moda passou a chamar de "diversidade". A dupla garimpa peças em brechós da quebrada e do centro que tenham a pegada das ruas das décadas de 70, 80 e 90, com foco no movimento hip hop e na cultura negra. As roupas são vendidas em feiras alternativas e no Instagram. O preço é de quebrada. Biquini de 15 reais? Tem. Short Umbro de 20 reais também. Macacão anos 80 de helanca por 30 contos? Rola também. E com foto pra mostrar como fica no corpo.

Os ensaios são clicados por Quelacrioula nas periferias com modelos que são amigas, amigos, primos, conhecidos ou desconhecidos convidados. "Colocamos negros que não seguem aquele padrão do 'negro lindo' da moda que já está nas propagandas", explica Quelacrioula. "Mostramos a beleza daquela mina negra que não sabe que é linda ou que ninguém viu ainda", completa. "Para nós, a diversidade é invertida." E é ela que decide quem vai usar os looks "que também não seguem padrão, tipo biquíni fora da época do sol, tendeu?"

"Não tem lacração, estamos no corre"

A rotina das duas garotas não tem nada do glamour dos ícones da moda. "Quem vê de fora acha que somos 'close' e lacração. Não, nada disso, a gente não liga para isso. É trabalho duro mesmo, muito corre envolvido", lembra Anne. As duas se desdobram carregando araras e sacolonas cheias de roupas em feiras e vivem circulando pelo metrô para fazer as entrega de peças às clientes do Instagram.

"Colocamos negros que não seguem aquele padrão do 'negro lindo' da moda que já está nas propagandas", explica Quelacrioula. "Mostramos a beleza daquela mina negra que não sabe que é linda ou que ninguém viu ainda"

 

O produto em mãos tem custo adicional, o da condução. "Tá bem cara a passagem, né?' Teve uma mina que cancelou a compra de um maiô de 25 reais quando falei da condução. Embaçado. A gente garimpa, lava, tira mancha com produto caro… Fiquei bolada mas, ah, vida que segue", diz Quelacrioula.

"E tem gente que pede desconto, acredita?", completa Anne. "Nas lojas, uma jaqueta quebra-vento não sai por menos de 250 reais e a gente vende a nossa por 80. Gente, já tá num preço da hora! E o corre da alimentação, das sacolas e as araras pra expor as peças?" Para Anne, pedir desconto é desaforo – "a não ser que a pessoa tenha carregado a nossa mala, né?", ressalta.

"O que chamam de diversidade é invertido para nós. Pra que moldar ou maquiar o povo periférico se dizem que curtem o nosso trabalho, né?"

Dinheiro circulando na quebrada

Elas contam que no mundinho da moda também tem muita gente sem noção da realidade da periferia. "Por exemplo: além de não se lembrarem que a gente gasta mais com transporte, esquecem que a gente precisa de verdade do cachê. Vira e mexe os valores não são dignos do nosso corre. Temos conta e dívida para pagar no dia tal e o contratante acha normal atrasar, sei lá porquê. Não sou diferente de uma modelo ou marca muito foda. Então fazer esses bagulhos é tratar o Original Favela de um jeito desigual."

Na opinião da dupla, o respeito à linguagem, à estética, à importância de dar visibilidade aos parceiros e fazer o dinheiro circular na quebrada são temas que os fashionistas ainda não decodificaram. Quelacrioula toca na ferida: "O que chamam de diversidade é invertido para nós. Pra que moldar ou maquiar o povo periférico se dizem que curtem o nosso trabalho, né? A periferia não é um produto. Eu não sou um produto. A nossa vivência, a etnia e as lutas estão no Original Favela. O problema pode ser a falta de representatividade na moda. Falta periférico nesse meio, tá ligada? Mas estamos aí para mostrar que dá pra fazer moda com consumo consciente, preço justo, resgatando a cultura e valorizando beleza negra."

Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.