Preta Rara: ex-doméstica e rapper traz a websérie mais “pesadona” da perifa
Reportagem de Juliana Avila Gritti, especial para o MULHERIAS
Ela foi doméstica e denunciou os abusos de patroas na internet. Virou professora de História e foi cantar rap para educar e manifestar sua arte. Agora, Preta-Rara usa o Youtube para questionar preconceitos em larga escala. Na websérie "Nossa Voz Ecoa", a poeta, turbanista, militante feminista e do movimento negro reafirma suas origens periféricas, sua ancestralidade e até as características de seu corpo para cutucar preconceitos que o Brasil adora fingir que não existem. E tudo isso com maquiagem bafônica, roupas coloridas e sorriso largo impossíveis de passar batido.
Inspirada nas vivências de Preta, a série, em dez episódios quinzenais, já fisga pela abertura musical e visual. A voz forte da rapper surge em batidas de funk e batuques contagiantes que ficam na cabeça por um bom tempo. O primeiro capítulo, chamado "Pesadona", apresenta sua história e dá a deixa do que vem adiante. Preta-Rara discute, em entrevistas e cenas cotidianas, assuntos como racismo na infância, gordofobia e machismo no hip-hop.
Além de cutucar tabus, representatividade negra une toda a série. "Eu quis fazer uma websérie com 99,99% de pessoas pretas pra abordar os temas que eu queria ver na TV e não vejo", diz. Entre as participações especiais, está Criolo, que discorre sobre a participação das mulheres na cena do Hip Hop, e MC Soffia.
"Quando disse que ia estudar, a patroa me disse: 'Menina, presta atenção, sua avó não foi doméstica? Sua mãe também? Então. Você tem que ser feliz servindo"'
Preta ficou conhecida em 2016, quando começou a campanha #EuEmpregadaDoméstica. O que era para ser um simples desabafo no Facebook sobre os seus sete anos como doméstica virou uma hashtag que bombou em menos de 24h. Surpresa e feliz com a repercussão, ela criou uma página no Facebook com o mesmo nome. Menos de quatro meses depois foi convidada para falar de suas experiências no TedX São Paulo, uma conferência anual de palestras curtas e dinâmicas sobre temas de relevância social.
À essa altura, Preta já era professora de História pois estudou enquanto ainda fazia faxina. No palco da imponente Sala São Paulo, lotada, ela fez a seleta platéia desabar de emoção ao dizer com voz embargada: "tudo o que eu faço, a correria que é a minha vida é pra ver que 6 milhões de domésticas estão representadas agora, mesmo que não possam me assistir aqui porque estão lá, limpando. Elas poderão me ver depois… É isso o que eu quero provocar". A cena merece ser revista nos primeiros minutos da websérie.
No elevador, a vizinha perguntou se ela era empregada. "Para ela, eu só poderia estar lá assim"
Preta escancara o racismo naturalizado nas situações do a dia-a-dia. Em "Nossa Voz Ecoa", ela lembra de uma conversa de elevador no prédio onde havia acabado de se mudar. Criada na periferia de Santos, no litoral paulista, seu sonho era viver de frente pro mar. Conseguiu alugar o apê. "Uma dia, uma senhora chegou e falou: 'nossa que dia cansativo, que bom que você já está indo embora, né?'. Eu, ãh? Indo embora pra onde? Ela respondeu: 'você não trabalha aqui?'". A moradora pressupôs que Preta era doméstica. "O corpo preto incomoda", ela conclui.
No episódio Ocupação GGG, Preta promove um encontro na praia para conversar sobre gordofobia e autoestima. A reunião termina com ensaio fotográfico para ressaltar a beleza das mulheres
Mais de um ano após o sucesso na internet, Preta fala que a única coisa que mudou na sua vida foi ter "um pouco mais de trabalho". Antes já conciliava shows e composição de músicas com aulas. Nesse meio tempo deixou o cargo de professora de história do ensino fundamental, que ocupava desde 2009, e veio morar em São Paulo. Ela segue com ações que dialogam com as suas vivências e daí surgiu o Nossa Voz Ecoa: "a websérie hoje em dia é meu portfólio, meu cartão de visita pra apresentar outros projetos que eu tenho".
Entre eles, as iniciativas Ocupação GGG e Hip Hop Resiste, que viraram capítulos na websérie. O primeiro se baseia em agitar encontros na praia entre mulheres gordas para discutir gordofobia e autoestima. Todas as reuniões terminam com ensaios fotográficos do grupo para ressaltar a beleza das amigas. É uma maneira de questionar padrões de beleza. "Eu perdi várias coisas – festinhas de formatura da 8ª série, ir na praia com os meus primos… tudo por vergonha do meu corpo", desabafa.
Hip-Hop Resiste, por sua vez, é um projeto que trata da importância do movimento como ferramenta de resistência da cultura periférica. Na websérie, quem protagoniza o episódio são mulheres. A rapper Sharylaine, uma das mais importantes precursoras do movimento feminino no hip hop, recorda: "vi muitas meninas pararem por conta do machismo (…) A gente pegava um flyer e só via os mano. Então, a gente começou a fazer um movimento de evento só das manas." Mas a conquista por espaço no rap, historicamente dominado por homens, continua. "É chato, né? Eu, uma mulher, só tocando [música de] homem. [Dizem] 'Ah, não tem mulher, não tem mulher'. Lógico que tem", pontua a DJ Simone Lasdenas, resistindo.
Para Preta-Rara, rap é instrumento de educação, principalmente para crianças. Não por acaso, racismo na infância é tema de outro episódio. Mc Soffia, de 13 anos, é uma das entrevistadas e fala da importância das bonecas negras, as chamadas Abayomi, que significa "encontro precioso" em Yorubá. "Acho importante as meninas se verem nas bonecas. Negras de cabelo black, cacheado… várias formas, pra todo mundo se encontrar na boneca. E não só pras meninas, pros meninos também", diz na entrevista.
Preta-Rara se encanta. "Direto eu recebo vídeo de mães de meninas e meninos cantando as minhas músicas, ou mostrando foto do meu cabelo e as crianças amando", derrete-se. As respostas positivas são sua injeção de ânimo. E, ainda que a palavra seja questionada, criticada, ironizada, deturpada, massacrada ou banalizada é empoderamento, sim, que Preta quer ecoar por aí, especialmente na periferia.
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