Ataque do PCC é pano de fundo de filme de diretora premiada da periferia
Com reportagem de Fernando Sato, especial para o MULHERIAS
Jéssica Queiroz tem 24 anos e é diretora de cinema premiada. Ela ainda mora no bairro onde nasceu, Ermelino Matarazzo, na Zona Leste de São Paulo, com a mãe que foi empregada doméstica e o pai que faz assentamentos de pisos de mármore. Todo dia, ela perde quatro horas na condução para o trabalho do outro lado da cidade. Na última quarta-feira, Jéssica saiu um pouco mais cedo da agência de publicidade onde é montadora de filmes e foi direto para a Cinemateca, o templo do cinema brasileiro, onde seu curta-metragem "Peripatético" estreou – e que terá novas exibições hoje (10/11), às 15h, e amanhã, às 17h, na Semana Paulistana de Curta Metragem no Centro Cultural São Paulo (CCSP).
Na plateia estavam amigos e familiares eufóricos, mas não foi a primeira vez que Jéssica viu seu filme na telona. Essa emoção ela teve no Festival de Brasília, há dois meses, quando "Peripatético" foi exibido para cinéfilos. Seu filme foi um dos 12 selecionados – entre os mais de 730 inscritos de todo o Brasil – para participar da mostra competitiva mais antiga do Brasil. Jéssica saiu de lá com dois prêmios: o de melhor roteiro, que foi assinado pela amiga Ananda Radhika, e o de escolha do júri. Na menção honrosa dos jurados, a justificativa: "Por retratar um dos muitos episódios de violência da história recente do Brasil sob uma ótica pessoal e original; por ressignificar códigos já postos no cinema propondo a descolonização das narrativas".
"O cinema da classe média branca encaixota toda a periferia nos papeis de bandidos e sofredores"
Quem é da periferia também percebe que "Peripatético" é especial. Pra começar, os personagens não são bandidos. E isso num filme que tem como pano de fundo o mês de maio de 2006, quando 564 civis foram assassinados, na maioria pela Polícia Militar, como retaliação à morte de 33 oficiais e às 74 rebeliões da facção criminosa Primeiro Comando da Capital, o PCC.
Os chamados Crimes de Maio não tiveram atenção da Justiça e os assassinatos não foram elucidados. Desse cenário, surgiu o grupo Mães de Maio, pedindo justiça pelos seus filhos. Foi a partir deste movimento de combate aos crimes do Estado que Jéssica e a roteirista Ananda, de forma lúdica e poética, criaram os personagens de "Peripatético".
Histórias da vizinhança sem estilização da violência e da tristeza
Também diferem do cinema nacional os três jovens periféricos que não são nada "coitadinhos". "A periferia é plural, tem muita personalidade e diversidade. Quis me ver representada, fora desses papeis de criminosos e sofredores que o cinema branco e de classe média nos encaixota", diz a diretora.
No curta, a personagem Simone aparece procurando emprego, frustrada e desanimada com as negativas das entrevistas. Thiana vai prestar vestibular para Medicina e estuda sem parar porque sabe que não poderá ficar mais um ano sem trabalhar. Michel ainda não faz ideia do que quer fazer da vida. São histórias recorrentes na vizinhança de Jéssica. Mas a estilização da violência e da tristeza aqui passam longe. E surgem angústias, desejos, o dia a dia e os sonhos de personagens poéticos e reais de uma comunidade viva. (Assista ao trailler no final desta reportagem e o vídeo com entrevista de Jéssica ao MULHERIAS aqui.)
15 minutos de filme que questionam as reais possibilidades de jovens pobres ultrapassarem limites e contrariar as estatísticas
Em uma das cenas, há a comparação do vestibular que Thiana vai enfrentar com uma competição de natação. Na raia da piscina olímpica, vê-se quatro competidores. Um é nadador profissional. Corpanzil, toca, óculos e postura de atleta. Ao seu lado, uma menina com medo de nadar e suas boiazinhas nos braços. Tem ainda o menino nitidamente inseguro que o narrador informa que só sabe dar braçadas no mar. E a jovem negra periférica que quer cursar Medicina.
Dado o "start", todos caem na água. A câmera então se depara com a estudante sob as águas. Ela olhando para cima, de onde chega uma luz quase solar. Quais as possibilidades de ultrapassar limites e vencer o jogo? Como quebrar barreiras? Quais as chances de driblar as estatísticas? Os 15 minutos de "Peripatético" trazem essas questões. "Quanto eu tinha uns 14 anos, passava as noites em claro pensando: o que vai ser de mim? Como vou me manter? Eu não tinha noção no que a vida ia se desdobrar e isso me angustiava demais."
"Quando se é periférico, o cinema, a publicidade, esses lugares não são nossos. Por isso quando a gente coloca o pé na porta e invade é tão importante"
Ela conta que tem muita sorte, além de estar de olhos abertos para o que acontece à sua volta. O cinema foi mais uma obra de acaso do que uma perseguição em um filme de aventura. Na escola em que cursava o ensino médio, E.E. Jornalista Francisco Mesquita, em frente à sua casa, Jéssica fez parte de um coletivo de teatro e literatura chamado "Os Mesquiteiros", trocadilho do nome da escola com os personagens do escritor romântico francês Alexandre Dumas, do século 19.
Mas o grupo discutia, principalmente, de textos e poesia periférica e marginal. Os grandes nomes do gênero, como Sergio Vaz, Ferréz e Sacolinha faziam parte das conversas, das leituras e dos sonhos dos integrantes do coletivo. Inscreveram e ganharam um projeto no Programa VAI (Valorização de Iniciativas Culturais), que subsidia atividades artístico-culturais para os jovens de baixa renda de regiões desprovidas de recursos e espaços culturais. Com esse apoio, realizaram vários saraus e entre os equipamentos que adquiriram para o registro dos eventos, havia os de vídeo e de filmagens. "Mas a gente não sabia usar", lembra.
Gastava todo o salário de estagiária no curso de direção e vendia o tíquete-alimentação para se manter
Nesse momento, surge um dos coordenadores de arte de sua escola, Rodrigo Ciríaco. Ele quase obrigou Jéssica a se inscrever no Projeto VideoCriar, um curso básico sobre o que é esse universo do audiovisual, feito pelo Instituto Criar, voltado para formação de profissionais de TV, cinema e novas mídias. "Fui meio que por obrigação, mas na primeira aula me deu um 'click'. Era aquilo que eu queria fazer da vida: cinema."
Ela concorreu a outro projeto na entidade e ganhou uma das poucas vagas. Com outros jovens periféricos, Jéssica passou um ano estudando cinema em regime de imersão de aulas de manhã e à tarde, e entendeu as diferenças entre as várias realidades de outras quebradas. Um dos seus educadores percebeu aptidão de Jéssica para a montagem e edição dos filmes e lá foi ela destrinchar as possibilidades. No programa de encaminhamento de jovens para o mercado de trabalho, ela virou estagiária de uma grande agência de publicidade.
"Minha família no começo não entendia o que eu estava fazendo. Eles me perguntam: 'você vai aparecer na televisão?' E eu respondia que não, só ia aparecer meu nome nas letrinhas do final"
O cinema ainda estava longe mas foi chegando de mansinho. "Ganhei 50% de bolsa de estudos no curso de dois anos de Tecnólogo de Direção Cinematográfica na Academia Internacional de Cinema. No primeiro ano, meu salário só dava pagar isso e eu vendia o tíquete-refeição para me manter. No segundo ano, arrumei um emprego melhor, ainda bem."
E assim ela dirigiu e produziu "Vidas de Carolina", sobre a poesia de Carolina Maria de Jesus, autora de "Quarto de Despejo: Diário de uma favelada", uma das primeiras e mais importantes escritoras negras do Brasil, e "Número e Série", uma aventura sobre alunos de uma escola pública de periferia que invadem uma biblioteca.
Mãe, tias e vizinhas cozinharam para equipe de 40 pessoas nas gravações que foram feitas no próprio bairro
O curta premiado "Peripatético" foi produzido com a verba de um outro edital do Programa VAI, de R$ 36 mil. "Foi uma teimosia produzir um filme com esse orçamento." Cinema é arte de endinheirados, desde sempre. Um curta como esse, numa conta simples, não sairia por menos de R$ 80 mil.
Amigos toparam cachês simbólicos ou fizeram tudo na faixa. Mãe, tias e vizinhas de Jéssica se uniram na cozinha de sua casa para dar conta da alimentação da equipe de 40 pessoas que, durante seis dias, gravou as cenas no próprio bairro. A inscrição do filme no Festival de Brasília foi feita antes da finalização do filme, sem tratamento de áudio e imagem. Foi a equipe selecionadora que intermediou apoios para esse acabamento.
"Se você for preto e pobre, a bala perdida acha um dono"
Mas esse foi o jeito para ela e seus parceiros se verem representados no cinema nacional: dentro de uma comunidade viva, de identidades e personalidades diversas, com alegrias e tristezas, problemas e soluções, vínculo e empatia. Mas sem esquecer, também, do contexto social onde estão inseridos. "A periferia não é só crime", ela não cansa de dizer. "Mas tem essa ligação", completa, lembrando que a força nas quebradas é maior que a tristeza e que essa relação não precisa ser estigmatizada – como faz a polícia, abertamente, quando afirma que a abordagem de suspeitos por lá é diferente dos bairros nobres.
"Se você for preto e pobre, a bala perdida acha um dono." Assim uma das personagens se dirige à câmera num ponto crucial do filme. Jéssica conta que todos os seus amigos lembram até hoje, onze anos depois, o que estavam fazendo nos dias dos ataques do PCC e da resposta assassina da Polícia Militar nas periferias de São Paulo. Não tem mesmo como esquecer. Mas, caso aconteça, taí o filme para lembrar.
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