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“I-Food da Quebrada” mapeia botecos, tia do acarajé e até coxinha de R$ 1

Flávia Martinelli

14/12/2017 08h00

Pelo aplicativo Gastronomia Periférica é possível encontrar o melhor acarajé da Zona Sul de São Paulo. Quem responde pelo bolinho crocante e sequinho, frito no dendê que vem diretamente de Salvador, com camarão fresquinho e vatapá feito com massa de pão e leite-de-coco natural como manda a tradição brasileira, é dona Ana Rita Dias Encarnação. Há 43 anos em São Paulo, ela traz da Bahia os segredos da mais alta gastronomia da quebrada: aquela consagrada por fãs na fila da barraquinha.

Agora, com o apelidado "I-Food da Quebrada", Rita poderá receber por telefone encomendas do acarajé-maravilha que ela vende de maneira itinerante em feiras e eventos por R$ 10 ou R$ 15, dependendo do tamanho. "Vou oferecer até abará, feito com camarão, feijão e gengibre, e que é cozido numa cama de folha de bananeira. Muito saudável. Esse não dava pra vender na rua, só tinha lá em casa", contou, sorridente, no Festival Sabor da Quebrada, evento promovido de fato pelo aplicativo I-Food no começo de dezembro. Interessada nesse segmento de mercado, a empresa patrocinou a feira gastronômica com os comerciantes do aplicativo numa praça da Chácara Santana.

"Coisa linda fortalecer nosso negócio, fortalecer a nossa culinária com essa modernidade", diz dona Rita, do acarajé mais famoso da Zona Sul

O Gastronomia Periférica (disponível em IOS e Android) traz endereços ou telefones de contato de cerca de 70 comerciantes do bairro Jardim São Luís e redondezas. O app não faz distinção entre comida de rua e estabelecimentos comerciais e ainda mapeou até as cozinheiras e cozinheiros de mão cheia que vendem "comida pra fora", ou seja por encomenda e produzida ou vendida em casa. Oferece, ainda, até a possibilidade de se contratar um bar móvel comandado por feministas que vai onde o cliente desejar, o Bar Delas. A bartender Márcia Martins prepara coquetéis exóticos, com chá de hibisco ou de rosa-rubra, e caipirinhas fartas, de 400 ml, a preço de quebrada (R$ 10 a de pinga ou R$ 15 a de vodka), feitas de pêssego com hortelã ou gengibre com nectarina, tangerina ou melancia.

Primeira escola de gastronomia da periferia será inaugurada em janeiro

"A intenção é fortalecer o comércio local, valorizar a comida boa que se faz nos bairros afastados do centro e tratar a gastronomia como instrumento de transformação social", diz o idealizador do projeto, Edson Leitte, um chef de cozinha visionário que em janeiro vai inaugurar a primeira escola de gastronomia da periferia. Edson, que é formado em Serviço Social, promove oficinas que já garantiram estágios com chefs prestigiados, como Bel Coelho, e ainda tem uma websérie onde ensina a improvisar na cozinha com alimentos saudáveis e baratos.

O idealizador do aplicativo, Edson Leite, passou sete anos em Portugal e foi responsável por colocar o restaurante onde trabalhava, o Leitaria Gourmet, na lista dos melhores lugares para se comer em Lisboa pela prestigiada revista Time Out. De volta ao bairro onde nasceu, defende a gastronomia como instrumento de transformação social

App ajuda o visitante a chegar nos botecos que também têm muita história boa pra contar

Os comerciantes são encontrados por telefone ou pela localização garantida no clique que abre um mapa com a rota para se chegar à comida. Assim, o Gastronomia Periférica ainda pode a levar o visitante a eventos que acontecem na região. Quem for pessoalmente comer o caprichado escondidinho de carne seca do Bar Zé do Batidão às terças-feiras, por exemplo, poderá prestigiar os poetas do tradicional Sarau Cooperifa, pioneiro na cidade, com 16 anos de existência.

Seu Zé, do Bar do Zé Batidão e seu escondidinho de carne seca: ponto de encontro de apreciadores de literatura, o local vende livros de escritores marginais e serve a famosa Gostosinha, drink feito com pinga, vodka e mel

Só mesmo ali, no balcão do bar do seu Zé, para ouvir os "causos" do espirituoso dono do estabelecimento. Um deles trata do cofre gigantesco que está abandonado na calçada do lugar. "Um amigo perguntou se eu queria um cofre e falei: 'ah, é bom ter essa segurança, né?' Então apareceu um caminhão com esse trambolho!", conta, às gargalhadas. Com medo de um ladrão achar que dentro dele poderia ter muito dinheiro, seu Zé largou o cofre na rua para quem quiser levá-lo. O segredo que abre o tal "trambolho" nem ele sabe. Mas promete pagar R$ 1000 a quem carregar o objeto que pesa mais de uma tonelada.

Lanche no busão, pastel de 30 centímetros e cuzcuz na madrugada? Tem!

Entre os estabelecimentos do aplicativo, há ainda a descolada hamburgueria artesanal C-Burguer, que também faz a própria cerveja, o Tori Sushi Bar, com seu inovador sashimi na cachaça mineira. Restaurantes de comida nordestina não faltam na região que mais recebeu migrantes do Nordeste em São Paulo. Para os famintos, vale a pena conferir os lanches "monstruosos" do Mac Pira Lanches, instalado num ônibus estacionado no Largo de Piraporinha, ou os pastéis de 30 centímetros do Pastel Gigante.

Num busão estacionado do Largo de Piraporinha, lanches "monstruosos" do Mac Pira

A variedade do cardápio do Gastronomia Periférica ainda inclui as coxinhas do Sr. dos Salgados, que saem por R$ 1, e as da dona Maria, que diariamente fica na porta da quadra do time de futebol de várzea Estrela do Norte, pertinho do terminal João Dias. E se a fome apertar em plena madrugada, ninguém passa aperto no Jardim São Luís. A partir da 1h30 da madrugada o Cuzcuz da Guido Caloi serve o prato à moda nordestina, com fubá.

Gourmetizando sem perder o sabor da quebrada

"O importante é fazer o dinheiro circular na periferia", diz a coordenadora de projetos Adélia Rodrigues, braço-direito do chef Edson, que se prepara para levar o app para diferentes quebradas da cidade. "É nóis por nóis", ela pontua, eufórica com a futura sede do Gastronomia Periférica.

Adélia Rodrigues, coordenadora de projetos do Gastronomia Periférica: planos para levar o app para outros bairros e parceria com empresa do chiquérrimo restaurante do Clube Pinheiros (Foto: Luis Pereira Fotografias/Divulgação)

Numa casa cedida pela ong Orpas (Obras Recreativas, Profissionais, Artísticas e Sociais), a construção da cozinha profissional está em franco andamento com o patrocínio da empresa LC Restaurantes, um conglomerado que administra nada menos que um dos restaurantes do Clube Pinheiros, dos mais elitizados da cidade, onde Edson já trabalhou. Da escola sairão 15 profissionais que vão trabalhar nos restaurantes da empresa e, quem sabe, chefs que vão desbravar o mundo. Se depender do Gastronomia Periférica, sem jamais perder a originalidade que só as quebradas têm.

Colaborou Cauê Yuiti, especial para o Blog MULHERIAS

Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.