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Driblar o guarda e ganhar até R$ 100 por dia: como é cantar no metrô de SP

Flávia Martinelli

05/01/2018 10h40

Marilha Gonçalves Freire e Luana Caroline, do coletivo Estação Malungada, em apresentação num vagão da linha vermelha: trabalho de segunda à sexta que só termina quando cada uma sai do metrô com R$ 100 no bolso. "Quem é periférica e ousou viver de arte tem que se virar com a falta de incentivo"

Videorreportagem de Cauê Yuiti, especial para o Blog MULHERIAS

Com o violão, viola, pandeiro, flauta ou rabeca à tiracolo, escolher o vagão é o primeiro desafio. "Eu evito os das extremidades, eles já estão manjados pelos seguranças do metrô", revela a cantora Heloísa de Lima, de 21 anos, pouco antes da porta do trem abrir. Já posicionada dentro do terceiro ou quarto vagão que pegou na estação Guilhermina, da linha vermelha, ela aguarda o sinal sonoro e a voz macia da locutora do transporte público, "para não atrapalhar quem precisa ouvir o destino do trem". Depois, troca olhares com suas duas parceiras de cantoria do coletivo Cairé para, então, o show começar.

Camila Silva, de 20 anos, saca de seu cavaquinho e Júlia Mauro, de 25, posiciona o pandeiro. Num sinal silencioso, começa o sambinha. "Foram me chamar, eu estou aqui o que é que há? Foram me chamar, eu estou aqui o que é que há? Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininha. Alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho…" E logo se percebe que o clássico samba de Maria Bethânia é reconhecido pela plateia do vagão.

Assista o vídeo com a apresentação completa do show que dura uma viagem de quatro estações de metrô:

"Uns entram na dança, começam a batucar, seguir o compasso no pé e cantar junto. Outros sorriem e têm ainda os que fingem que não existimos. Mas se alguém reclamar, paramos na hora", diz a cantora Heloísa

Não é só samba que embala as viagens do metrô de São Paulo. Tem baião, MPB, rock… Tem música ao vivo de todo tipo e custa nada ou o quanto o passageiro quiser colocar no chapéu. Vale como gratificação até balinha perdida no fundo da bolsa. Apesar de a Companhia do Metropolitano de São Paulo não permitir apresentações musicais dentro dos carros do trem [leia ao final do texto o  posicionamento do metrô a respeito], desde sempre artistas de rua burlam a segurança e se apresentam para passageiros com sono, cansados ou mergulhados em seus mundos – e agora em smartphones. O que chama atenção, no entanto, é a presença cada vez maior de mulheres no tête-à-tête com os ouvintes do transporte público.

Música underground de trabalhadores para trabalhadores

"A real é a seguinte: o artista vai onde povo está e onde existem projetos de incentivo à cultura. Como mulher da periferia que escolheu ganhar a vida com a música, meu caso, noto que os espaços e políticas públicas ainda são reduzidos e a gente tem que se virar", diz a cantora e percussionista Marilha Gonçalves Freire, de 30 anos, que há três começou a se apresentar na rua por necessidade mas chegou a viajar de São Paulo a Pernambuco com grana arrecadada no chapéu em tudo quanto é transporte público. Hoje, ao lado de quatro músicos, faz parte do coletivo Estação Malungada, e trabalha de segunda a sexta no metrô. Costuma tirar R$ 100 por dia com apresentações de xote e forró e entende o contato direto com o público como oportunidade de acesso à arte.

"Quando levamos música ao metrô, por minutos ressignificamos aquele 'não-lugar' de interação e diálogo ou que é entendido como espaço de troca apenas em conversas isoladas ou de cada um enclausurado em seu celular", explica Marilha

Para ela, mesmo os teatros, casas de shows e equipamentos públicos destinados às manifestações artísticas ainda são pouco acessados tanto pelo público da periferia que usa o metrô quanto pela a maioria dos profissionais da música. "Ali no vagão somos trabalhadoras cantando para trabalhadores, sem a divisão do palco que já separa e cria distanciamento", analisa Marilha. Sua companheira de labuta diária, Luana Caroline, de 21 anos, que toca rabeca, completa: "A gente faz esquetes, ensaia diálogos e cenas, é tudo pensado para troca real e interativa com público".

Ambas não esquecem dos momentos em que passageiros deixaram de lado a condição passiva no deslocamento para embarcar na brincadeira. No vídeo, abaixo, por exemplo, um menino (muito fofo!) dança no meio do vagão, num dos raros registros dessas experiências.

Grupo no Whattapp para avisar se há guardas na área

Nem todas as vivências nos vagões são positivas. Todo artista de metrô já foi expulso de vagão pelos seguranças da companhia, os apelidados guardinhas de preto. "Nessas horas, o jeito é não resistir, apenas explicar que estamos trabalhando como eles", diz Marilha. Em geral, os músicos são levados até a catraca da saída da estação e têm de pagar nova passagem para voltar pra casa ou para um novo vagão.

Por conta disso, existe uma rede de artistas do gênero no whattapp para alertar sobre as investidas dos vigilantes da música. A pior parte do trabalho no metrô, no entanto, é o assédio às artistas. "Por isso prefiro ir pro metrô com o meu namorado", revela a estudante de música, cantora e percussionista Rebecca Hafez, de 20 anos.

"Já tive problemas de assédio masculino e piadinhas. Quando estou com meu namorado é mais difícil mexerem comigo", conta Rebecca

Ela, na voz e pandeiro, e no violão Sam Guibson, de 23 anos, auxiliar administrativo e também estudante de música, são conhecidos como a dupla Sambekie e costumam embarcar duas a três vezes por semana para tocar músicas de grandes nomes da MPB. "Numa dessas viagens, uma senhorinha emocionada me disse que não tinha nada para colocar no chapéu. Mas, quando revirou a bolsa, achou um pêssego e me deu de presente", conta Rebecca. "A gente estava morrendo de fome, sou grata até hoje."

O ganha-pão, dizem os músicos da rede artistas do whattapp no metrô, não precisaria ser tão literal. Todos sonham com vagões musicais à escolha do passageiro. Com seis linhas, centenas de idas e voltas pra lá e pra cá e quatro milhões de passageiros atendidos por dia, "a única catraca que nos limita é a da boa vontade", diz Heloísa, aquela que escolhe cuidadosamente em qual vagão vai dar seu show, pronta para a próxima viagem.


Posicionamento da Companhia do Transporte Metropolitano de São Paulo – Metrô

Em contato com o Metrô, a companhia afirma que "permite a apresentação de músicos e de artistas em geral em seu sistema desde que devidamente autorizados".  De acordo com a empresa, "antes de ganharem oportunidade, as manifestações passam por uma curadoria, contam com apoio necessário para serem apreciadas pelo público usuário, como, por exemplo, infraestrutura, segurança e divulgação. As áreas das apresentações são escolhidas de modo a não interferirem no fluxo, comodidade e segurança dos usuários. Vale lembrar que os artistas não podem solicitar nem  receber contribuições do público."

Para mais informações, o Metrô recomenda aos interessados acessar o link sobre exposições e evento da companhia:  http://www.metro.sp.gov.br/cultura/exposicoes-eventos/index.aspx

Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.