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“Sou mulher e periférica. Mas tenho privilégios: sou branca”

Flávia Martinelli

26/01/2018 12h14

Colaborou Nerie Bento, especial para o blog MULHERIAS

Se faço contratações de equipes 'diversas' é justamente por ser privilegiada. Esse termo, aliás, evidencia o que está errado no mercado de trabalho. Diversidade deveria ser o padrão"

Pri Muniz, 31 anos, é publicitária, gestora de análise de comportamento em mídias sociais em uma agência de publicidade São Paulo

Em sua equipe de seis pessoas, quatro são negros. Ela tomou a decisão de não contratar homens brancos heterossexuais. "As agências são masculinas e brancas. Precisa ter mudança. Estamos começando e é importante falar sobre isso"

"Só consegui terminar o segundo grau em escola pública noturna, não fiz intercâmbio, não tenho inglês fluente, não fiz universidade conceituada nem pública. A faculdade que fiz era a mais barata. E não concluí o curso. Hoje sou gestora de uma equipe de uma agência de publicidade. Sei que sou batalhadora e aproveitei oportunidades. Mas tenho plena consciência de que o fato de ser branca me fez chegar até aqui. Sei disso muito bem.

Tento ao máximo ter uma equipe 'diversa', termo que só existe porque hoje temos um padrão privilegiado ocupando essas vagas. Uma das minhas maiores decisões é não contratar homens brancos heterossexuais. Já existem muitos e há espaço para eles.

Quatro dos seis integrantes do meu núcleo de trabalho atual são negros. Dois homens e duas mulheres. Quatro são LGBT. Há quem more a três horas de distância do trabalho, quem tenha bolsa do Prouni, militante feminista… Todos maravilhosos e competentes, que entregam o que deve ser feito.

Excelência não se mede só pela faculdade cara e status social, tem gente competente em todos os lugares. A diferença é que quem tem mais oportunidade consegue mostrar isso de forma mais fácil.

Não é correto entrar numa agência de publicidade e só ver gente branca, em geral homens heteros, pessoas de um  padrão especifico de beleza e funcionários sem preocupação com grana. É um retrato da desigualdade. E tomo muito cuidado com isso porque não mereço parabéns por simplesmente trazer a representatividade do nosso país para o meu ambiente de trabalho. É o certo, apenas.

Sei o que é vir da periferia. Conheço a insegurança que bate quando estamos numa mesa rodeada por gente com boas condições financeiras. Mas parece uma coisa difícil de as pessoas entenderem.

Venho de uma família sem grana e complicada da periferia da Zona Sul de São Paulo. Sou filha de uma mãe adolescente e fui para a Bahia aos quatro anos. Me considero nordestina. Minha mãe teve outros filhos e muitas vezes não rolava dinheiro para cuidar da gente. Nessas, ela mandava cada um para a casa dos respectivos avós. Foi uma infância difícil. Pelas dificuldades das relações familiares, materiais e emocionais. Tudo acaba refletindo na nossa confiança profissional. Não existe apenas o privilegio racial e financeiro, mas também o emocional.

Saí de casa aos 16 anos. Trabalhei em um monte de coisa. Vendi revista em shopping, fui vendedora de loja, fiz o que aparecia. Dividi muito apartamento; até com gente que roubou minhas coisas. Mas em Salvador conheci pessoas maravilhosas que me apoiaram, principalmente a família de um namorado da época. Nessa outra estrutura de vida, surgiu a chance de estudar e trabalhar no que eu buscava e batalhava.

Nesses anos, passei por muitas crises por não acreditar em mim e no meu potencial. Tive depressão e crise de pânico. Não conclui a faculdade e decidi vir para São Paulo mesmo assim. Na época, vi na internet uma oportunidade de trabalho. Isso foi em 2008, quando se começava a falar em redes sociais de forma mais profissional. Aproveitei. Não foi uma carreira construída, havia espaço e fui me jogando.

Despertei para a minha condição privilegiada quando uma das meninas que fazia estágio comigo apontou que só ela e mais duas pessoas eram negras. Uma em cargo de limpeza. É fácil cair na falta de percepção do cenário branco.

Levamos para os trabalhos a questão racial. Se a gente atendia uma marca com esse cenário, apresentávamos essa discussão. É fundamental priorizar os funcionários que quebram as lógicas dos espaços corporativos. Muda tudo. Mas para isso é preciso promover o acesso a negros e periféricos nas empresas.

Uma das maneiras de evitar a exclusão é não exigir o inglês fluente. Como faz? A gente se ajuda, aprende junto. Para trabalhar comigo basta querer. Tem vontade? Então vem!

Se hoje eu participo de uma mesa de reunião onde todos vêm de famílias ricas, estudaram em faculdades caras e falam inglês, dentro da minha posição devo tentar viabilizar a oportunidade para outras pessoas de outros grupos ocuparem esse espaço também. Que no futuro, mais pessoas negras, mulheres negras, estejam falando desse posto em que estou hoje."

 

É um exercício diário reconhecer meus privilégios e não só combater as situações de racismo mas não ser sujeito dessa opressão"

Carolina Peixoto, 29 anos, pedagoga, poeta, artista independente, feminista integrante dos coletivos Poetas Ambulantes e Slam das Minas e mãe da Cecilia Flor

Nascida, crescida e moradora do Capão Redondo, na Zona Sul de São Paulo, Carolina é casada com um homem negro, Tiago Luiz. "Tomei enquadro da polícia uma única vez. Ele já perdeu as contas"

"Sempre estudei em escola pública, sofria bullying por ser baixinha, mas nem de perto passei pelo o que as minhas amigas negras sofreram. Um exemplo: a maioria das meninas brancas deram seu primeiro beijo por volta dos 12, 13 anos e as negras com 17, 18. Outra evidência: não sou a primeira da família a ter diploma de nível superior, diferente da minha amiga e poeta Luz Ribeiro. Ela, mulher negra, mas tão periférica quanto eu, é sempre preterida quando vamos a algum lugar juntas e isso evidencia como somos tratadas de maneiras diferentes pela sociedade.

O convívio com meu marido, negro de pele escura e cabelo black power, também mostra as inúmeras situações que não sofro por ser branca. No começo do namoro, ele sempre prendia as tranças para não chamar atenção na rua. Tomei enquadro da polícia apenas uma vez na vida. Meu companheiro já perdeu as contas. Aconteceu de eu entrar uma loja sozinha, ele chegar depois e notar que estava sendo seguido pelo segurança. Quando me encontrou, o segurança o deixou em paz. No mercado a mesma coisa: se ele vai só é perseguido e se está comigo, não.

O fato é que não importa minha condição financeira, eu sempre serei a vítima e as pessoas negras, as suspeitas

Confesso que fui racista em uma ocasião que poderia ter agido diferente. Eu e umas amigas fomos assaltadas por um rapaz de moto, ele levou nossas bolsas e tínhamos certeza que ele era negro. Na hora, não fizemos o boletim de ocorrência e no dia seguinte descobrimos que o suspeito foi preso. Quando fomos na delegacia para pegar nossos pertences e reconhecê-lo, vimos que o rapaz era branco. Carrego esse incômodo até hoje. Se tivéssemos feito o B.O poderíamos ter incriminado uma pessoa inocente. O contraditório é que fui assaltada cinco vezes e só em uma situação o assaltante era negro."

 

Só caí na real quando fui confrontada por ser branca fazendo uma festa black e passei a ouvir os relatos dos meus amigos negros"

Isa Todt é pintora, sócia e diretora artística da casa noturna Paradis Club, em Curitiba, onde dá prioridade para currículos de pessoas negras

Isa vem da periferia e ascendeu sócio e economicamente. Para combater o racismo institucional, prioriza a contratação de negros em sua empresa. "Mas ainda é pouco. De 47 funcionários, 10 são negros. Procuro saídas para equiparar. Recentemente abri vaga para bartender e só apareceram brancos"

"Eu não tinha consciência sobre questões raciais na minha infância e começo da adolescência, quando vivi na periferia. Por ter origem pobre, achava que as pessoas eram perseguidas e diminuídas por não ter poder aquisitivo. Até que comecei a pesquisar e entender o privilégio de cor e as maneiras do racismo se manifestar no Brasil. Esse entendimento surgiu há alguns anos quando me vi confrontada, por ser branca, organizando uma festa de black music chamada "Só o Soul Salva". Foi duro, mas maravilhoso porque eu sai da minha zona de conforto, cai na real.

Tudo ficou mais evidente. Lembrei que na minha época da faculdade, em 2001, só haviam dois negros. E ao longo de toda minha vida só fui atendida por dois médicos negros. Atentei para as situações que meus amigos passam. Um deles, que faz academia comigo, precisa estar bem arrumado pra ir malhar, senão os seguranças do shopping onde nos exercitamos o persegue. Minha melhor amiga contou que na adolescência foi mordida por uma branca desconhecida, a troco de nada, e quase perdeu o dedo!

Na minha casa noturna, ao longo desses quatro anos, tento implantar um sistema de equiparação e faço questão de ter profissionais que representem um público diversificado. Meu objetivo é proporcionar entretenimento pra todas as pessoas, independente de cor, orientação sexual ou poder aquisitivo.

Queremos ter mais negros trabalhando com a gente e o que fazemos efetivamente é dar prioridade aos currículos de profissionais negros, que infelizmente são poucos.

Recentemente abrimos vagas pra bartenders e recebemos 20 currículos, todos de pessoas brancas. Hoje temos 47 funcionários, sendo 10 negros e desses 10, cinco mulheres. Estão em diversas áreas: fotografia, discotecagem, dança e caixa. O número ainda é pequeno e quero equiparar isso.

Meu recado para as pessoas brancas: precisamos reconhecer nossos privilégios e mostrar que o racismo existe. As diferenças de ponto de vista são importantes para que um dia todos possamos viver numa sociedade igualitária."

Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.