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"Sempre fui feminista, mas não sabia"

Flávia Martinelli

08/03/2018 09h40

Camila Araújo, 25 anos, nascida e criada no Capão Redondo, na zona sul de São Paulo, nunca tinha ouvido falar em feminismo até entrar na faculdade. Passou, então, a reconhecer comportamentos condicionados, aprendeu novos conceitos e fez parte da criação de um coletivo feminista de mulheres dentro da universidade. Nele, ela questiona a visão feminista voltada para lutas individuais, como no jargão "meu corpo, minhas regras", diante de lutas coletivas de mulheres das periferias que estão em plena ebulição –mesmo que sem nome definido

"Eu nunca tinha ouvido falar em feminismo até os meus 20 anos, quando entrei na faculdade. Esse assunto não era falado nem chegava na periferia, apesar de todas as mulheres de lá saberem muito bem que têm de ligar para a polícia quando outra está apanhando do marido –coisa que nem sempre acontece nos ambientes da classe média e alta.

É um fenômeno curioso: na quebrada, as mulheres estão o tempo todo se mobilizando por direitos, por igualdade de gênero e muitas outras questões feministas, mas preferem chamar suas organizações de 'grupos de mulheres'. Na minha opinião, a palavra feminismo parece coisa de gente acadêmica e estudada. Hoje sei que a prática acontece mesmo sem ter esse nome. E que a maioria de nós, senão todas as mulheres, hoje são feministas, ainda que não saibam disso.

Assim, em 2013, quando tive acesso a esse conceito, eu me dei conta que, mesmo em casa, essa vivência se esboçava. Nem eu nem minhas duas irmãs fomos privadas de vestir o que queríamos, por exemplo. Minha família não é religiosa e nunca ninguém ficou falando que isso ou aquilo era pecado. Não tenho culpa cristã.

Mas, é fato, um mundo se abriu quando descobri o feminismo, sim. Fiquei deslumbrada. Parece óbvio, mas uma das primeiras coisas que surpreenderam foi o tabu da menstruação. Pela primeira vez, percebi o motivo pelo qual eu não gostava de falar nisso, escondia o absorvente ou cochichava quando precisava de um emprestado. Tudo passou a fazer sentido: a sociedade que historicamente transforma o corpo da mulher em algo sujo, os mitos religiosos que vinculam a menstruação a um castigo de Eva por trair Adão e por aí vai… São inúmeras as narrativas que diminuem a mulher. 

São coisas que de alguma maneira eu percebia, mas nunca tinha racionalizado, sabe? O feminismo me permitiu questionar coisas novas também. O que define uma mulher? E homem? E mulher e homem trans? É o que chamam de identidade de gênero e sexualidade, e há muitas correntes no feminino que analisam essas questões de diferentes formas.

Por ter vivência na periferia e no mundo acadêmico, percebo a importância das teorias e discussões nas universidades, assim como o poder de ação efetiva, mesmo de quem não estuda o feminismo.

Aos meus olhos, enquanto as mulheres da elite falam de si no jargão "meu corpo, minhas regras", a maioria das mulheres periféricas buscam saídas coletivas na batalha por direitos trabalhistas, acesso a escolaridade e igualdade, em um sistema que colabora com os princípios da servidão –como no caso das empregadas domésticas.

Há um ruído e uma certa hipocrisia gritar que você quer mulheres em altos postos de trabalho, mas manter uma faxineira em casa sem nenhuma preocupação com plano de carreira, férias, 13º salário ou licença-maternidade.

Meu entusiasmo por todas essas questões me animou a, junto com outras mulheres, criar uma frente feminista na faculdade. Os contatos que faço, o meu cotidiano, minha vida pessoal, tudo o que me enche de orgulho veio pela transformação do meu olhar a partir do feminismo.

Basta eu lembrar do passado para ver como mudei. A primeira vez que vi uma marcha de mulheres, antes de saber o que era o feminismo, fiquei impressionada por ver as manifestantes sem blusa, com os seios de fora. Naquele dia, estava com um namorado, disse que queria tirar minha blusa. Mas o olhar de censura que ele me deu, sua expressão corporal, foi como se ele tivesse me segurado pelo braço. Hoje, eu jamais pediria permissão. Tiro a blusa se eu quiser! E se eu não quiser expor meu corpo para os olhares masculinos, também, tudo bem! O importante é que eu sei que qualquer escolha é minha. Eu tenho consciência dos motivos das minhas decisões. Faz toda a diferença."

"Cuidar e ser cuidada me ensinou a importância de amar outras mulheres"

Aos 51 anos, a educadora social Rose Modesto é testemunha da vida de mulheres que, além das dificuldades da condição feminina, precisam lidar com a pobreza e o desamparo –familiar, sentimental e governamental. Em seu trabalho, Rose se depara com crianças e adolescentes em situação vulnerável que não vão para a escola, não têm atendimento médico, moram em locais insalubres e, muitas vezes, sequer têm o que comer. "Por trás de cada história dessas há uma mãe privada de seus direitos básicos a vida inteira. Eu me solidarizo com cada uma delas" (Foto: Jeff Barbosa)

"Já vi mulheres que não tinham condições de comprar um sabonete. Os maridos vão embora. A educação e o sustento dos filhos recaem nos ombros delas. Sinto em mim a dor dessas mães. Chamam de sororidade essa união entre as mulheres, não é? Mesmo na minha suavidade, nem sempre me reconhecendo feminista, sempre senti esse vínculo.

Quando paro para ouvir as histórias dessas mães, eu me surpreendo pelo quanto foram vítimas de abusos em diferentes graus. São mulheres que sofreram todo tipo de violência por falta de cumprimento de direitos e por maridos e pais que, por sua vez, também as abandonaram. É um ciclo de solidão.

Elas carregam todas as culpas e contas para pagar. Lembro de uma que saía de casa cinco da manhã e voltava onze da noite depois de encarar dois turnos de faxina para sustentar a casa. Outra, com oito filhos, trabalhava em um mercadinho e seu salário era R$ 650. Sabe quanto era o aluguel? R$ 700. A filha queria largar a escola para trabalhar e estava chorando na sala de aula. Como lidar com isso sem políticas públicas que contemplem a condição dessas mulheres?

Minha mãe, de outra geração, suportou humilhações com um marido alcoólatra e nove filhos para cuidar. Eu, depois de 18 anos de casamento, fui traída por um ex-marido, que dizia que eu era feia para ele. Não tolerei. Ainda assim, fiquei sozinha com minhas filhas e boletos também.

Essa solidão, para as mulheres negras, é mais evidente porque estamos na base da pirâmide afetiva. Os homens negros nos vêem para sexo. Já ouvi de muitos que as brancas são para casar.

Por tudo isso, digo que o companheirismo entre mulheres é questão de sobrevivência. Nos amparamos, nos solidarizamos. Sempre precisamos umas das outras, independentemente de teorias.

Eu me inspiro em mulheres como Frida Kahlo, tão fora dos padrões estéticos, mas que rompeu com tudo que lhe era imposto, amou de verdade e se tornou uma das pintoras mais consagradas do mundo. Eu me espelho em Olga Benário e sua força ideológica e na poeta Carolina Maria de Jesus, a catadora de papel que criou três filhos sozinha.

Sei que tenho cólica, choro de noite sozinha como todas elas. Somos humanas. É o que Simone de Beauvoir, a percursora do feminismo, nos disse: 'não se nasce mulher, torna-se mulher' nessa cultura que define o nosso papel. Também estou aqui redefini-lo, ainda que do meu jeito, com a minha suavidade."

"Lutar por direitos, respeito e igualdade nunca será algo extremista. Quem fala isso, como eu já disse, não faz ideia do que é o feminismo"

A família de sindicalistas da estudante de enfermagem Mayara Oliveira, de 25 anos, ajudou-a se habituar às discussões e aos debates sobre os direitos e deveres dos cidadãos. Mas para ela feminismo não era política. "Enxergava o movimento como algo extremista, que eu não gostaria de fazer parte. É o discurso de quem não faz a menor ideia do que é o feminismo." Mas o que é política senão lutar pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, organizar-se para repensar comportamentos, imposições da sociedade, estudar a história das mulheres e protestar ou pensar soluções para elas?

Mayara sempre soube que algo estava errado no comportamento do pai que não a deixava sequer pintar as unhas na adolescência. "Passei a me culpar se alguém me assediava. Sem notar, o discurso do meu pai passou a ser o meu. Pensava: poderia ter colocado uma roupa diferente, mais longa, não me cuidei o suficiente."

Até que houve uma ruptura familiar. A traição do pai deu fim ao casamento com sua mãe quando Mayara tinha 17 anos. "Não tive como ficar defendendo comportamentos masculinos consolidados." Na mesma época, Mayara amparou uma vizinha vítima de violência doméstica e percebeu que mulheres não devem, jamais, aceitar situações humilhantes. Mayara estava rodeada por dores femininas e foi uma amiga, participante da Marcha das Mulheres, quem lhe estendeu a mão.

A organização Marcha das Mulheres nasceu em 8 de março do ano 2000, quando milhares de mulheres se reuniram em 6.000 grupos, em 159 países, em todo mundo sob o chamado "2000 razões para marchar contra a pobreza e a violência sexista". A mobilização durou até 17 de outubro daquele ano e resultou em um documento com 17 pontos de reivindicação, assinado por 5 milhões de mulheres, que exigiam ações contra o machismo. E os incômodos de Mayara ganharam novo significado.

"Posso usar a roupa que eu quiser, ser quem eu quiser, lutar por respeito, fim da violência contra a mulher e direitos iguais é questão de justiça." Conversar com outras mulheres sobre suas vivências, sim, virou para Mayara um ato político.

"A mudança acontece aos poucos, não vamos revolucionar o mundo de um dia pra o outro, mas conversando com a nossa vizinha, nossa colega de trabalho, conseguimos ajudá-la como já me ajudaram".

Sua irmã, por exemplo, já se influenciou. "Ela tinha um namorado que se incomodou com o short que ela vestiu para uma festa. Na volta, ela terminou o relacionamento e me agradeceu, disse que nossas conversas a ajudaram a tomar essa decisão e que seu corpo não pertence a ninguém", diz, orgulhosa.

Na faculdade, Mayara é a primeira a explicar a diferença entre assédio e elogio. E ela não se cansa de dizer que tudo o que gera opressão, constrangimento e é indesejado jamais será um agrado ou entendido como algo carinhoso. "Isso é ser extremista? Nunca. Ser feminista é ser uma mulher que quer ser respeitada e livre. Quem de nós não quer isso?"

Feliz Dia das Mulheres!

Colaborou Stéfanni Mota, especial para o blog Mulherias

Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.