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Tatuadoras da periferia fogem de estúdios descolados e machistas

Flávia Martinelli

15/07/2018 04h00

Ser mulher e tatuadora na periferia é enfrentar duas grandes barras: o machismo de uma área predominantemente masculina e a sobrevivência fora do mercado, que está concentrado nas regiões centrais.

Com reportagem de Monise Cardoso, especial para o blog MULHERIAS

Se por um lado a tatuagem é considerada artigo de luxo, arte que custa caro, por outro, a quebrada tem, cada vez mais, ocupado os espaços que lhe são negados e mostrado que consumir e produzir arte é com ela mesma.

Ser um profissional da tatuagem dentro da periferia é abrir mão dos estúdios badalados, de poder cobrar altos valores pelo serviço e de executar artes superconceituais. Mas é também elevar a autoestima de pessoas que pouco têm tempo pra si e ajudá-las a se sentirem pertencentes a uma estética cada vez mais valorizada.

O Mulherias conversou com duas tatuadoras de bairros periféricos de São Paulo para descobrir quais são as angústias e os prazeres de subverter a lógica do mercado duas vezes!

Larissa @Lariink

Aos 24 anos, Larissa já foi recepcionista em escola de inglês, jovem aprendiz em uma editora, atendente em fast-food, manicure e operadora de telemarketing. Mas nunca se encaixou em nenhuma dessas rotinas. Acreditava que se fosse para vestir a camisa, que fosse do seu próprio negócio. Há um ano, ela determinou que iria ganhar a vida fazendo aquilo que rendeu seus primeiros trocados na infância: desenhando para outras pessoas. "Na escola, eu fazia capa de trabalho e cartaz, cobrava de um bauru a R$5, dependia da complexidade", conta.

A tatuadora cresceu na Cachoeirinha, bairro da região norte de São Paulo, mas foi nas quebradas de Guarulhos, onde mora atualmente, que começou a tatuar. O trabalho se desenrolou depois que ela perdeu a bolsa do ProUni, que bancava sua faculdade de design, e de ser demitida de um call center. Com a grana da rescisão e o tempo livre, a artista investiu nos equipamentos básicos e começou tatuando amigos cobaias e a si própria.

"Depois de fazer umas quatro tatuagens, eu tomei coragem e fui até um estúdio conhecido no bairro, pedir pra ser aprendiz. O dono topou, me ajudou muito e deu altas dicas".  Era um estúdio com quatro homens e, além de Larissa, havia mais uma mulher.

O machismo nosso de cada dia

Apesar de ter tido apoio, ela se sentia extremamente incomodada e desrespeitada com as práticas machistas do lugar. "Os caras não podiam ver uma mulher, que perdiam o controle. Eram comentários nojentos, olhares constrangedores. Por mais que não fossem dirigidos a mim, me incomodava. Além disso, apenas nós duas fazíamos a limpeza do lugar. A gota d'água foi quando reclamamos e eles disseram que nosso papel era limpar. Se tornou um ambiente tóxico e depois de algumas discussões, acabei saindo".

Atitudes machistas que vão de assédio à subestimação do trabalho também vêm dos clientes. "Tem cara que me manda mensagem nas redes sociais, perguntando sobre meu trabalho e, de repente, tá falando sobre como eu sou bonita ou algo tipo".

Larissa já ouviu inúmeros relatos do espanto das pessoas ao saberem que uma tatuagem tão bem feita tem a assinatura de uma mulher. Apesar de ficar incomodada, ela conta que algumas histórias rendem boas risadas. "Eu fiz essa tatuagem na minha mão, e lembro de um cara no ônibus olhando fixamente pra ela até soltar: 'Caramba! O cara que fez esse trampo manja demais!'. Eu ri, falei que o cara era eu mesma, tirei um cartão do bolso e dei pra ele".

Realidades diferentes

Larissa também já tatuou em Pinheiros, bairro de classe média alta de São Paulo, em um estúdio de amigos, e vê claras diferenças no público. "Em Pinheiros, as pessoas têm muita abertura pra trabalhos autorais. Elas levam referências, ideias novas. É um trabalho mais complexo", conta.

Já em Guarulhos, são comuns os clientes que querem um desenho exatamente igual àquele encontrado na internet, símbolos da moda, palavras e nomes que homenageiam alguém e coberturas de tatuagens mal feitas.

"Em geral eu não nego trabalho. A não ser que fuja muito do meu estilo, que eu não domine a técnica ou que seja muito feio. Nesses casos, converso e dou ideias novas. Ah, também não tatuo nome de namorado no rosto. Inclusive, sempre tento convencer as clientes a não tatuar o nome do parceiro ou, ao menos, fazer em um lugar discretinho".

Preço e qualidade se cruzam na realidade de quem tatua em lugares de realidades sociais diferentes. Se em Pinheiros um preço baixo pode ser interpretado como pouca qualidade, na periferia, o preço alto é visto como absurdo. "E o cenário piora por sermos mulheres. Já tiveram pessoas que questionaram meu preço, dizendo que o cara X cobra menos".

O próximo passo de Larissa é dividir a agenda entre Guarulhos e um estúdio novo na Vila Mariana, também um pico de classe média, onde só haverá profissionais do sexo feminino. A artista conheceu as novas parceiras em um grupo do Facebook exclusivo para tatuadoras e clientes mulheres. A comunidade forma uma rede de apoio intenso entre as profissionais. "Participo de um grupo com homens também, e a diferença é gritante. Entre mulheres, o apoio é contínuo, até workshops gratuitos nós promovemos. Já entre os homens, rola mais rivalidade e ataques ao trabalho".

Black Work e Pontilhismo, conheça as tattoos de Lariink
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Katy @Katyblasich

"Minhas clientes fazem tatuagem por amor e não por rebeldia", diz Katy, de 32 anos, que tem estilo, público e endereço definidos. Dona de um estúdio no Jardim Iguatemi e outro no Jardim Vila Formosa, ambos na região leste de São Paulo, a artista, que tatua há três anos, começou no mundo das artes num curso prático, dado por um tatuador do bairro onde mora. Em seguida, passou a trabalhar como recepcionista no lugar, logo depois, conseguiu uma vaga como tatuadora e, simultaneamente, abriu o próprio estúdio, em cima da casa da mãe. "Estava muito focada em aprender. Ele me deu muitas dicas, me ensinou técnicas e em pouco tempo, pude sair de lá e me dedicar ao meu próprio negócio".

Trabalho de mulher pra mulher

Katy conta seu público é 99% feminino. "Não me nego a atender homens. Mas o meu traço é super delicado, ninho, são desenhos pequenos. Artes que, de acordo com a minha experiência, são de interesse majoritariamente feminino".

Estou aqui para aquela mulher que trabalha muito e não tem como gastar R$1.500 em uma tatuagem, já que esse é o salário dela. Para as mães, que depois de muito tempo desejando, enfim, poderão fazer uma tatuagem

Sabendo quem iria atender e carregando a experiência de ser mulher e mãe, Katy planejou tudo para receber o seu público da melhor maneira: o espaço tem uma paleta de cores claras, sala de espera, lousa, brinquedos e lanchinhos  para os filhos das clientes, sofá para as amigas que vão fazer companhia, e que também faz as vezes de fraldário. "Diferente de boa parte dos estúdios, gostaria que o meu fosse um lugar acolhedor para essas mulheres. Nada de música alta, decoração escura e agressiva. Não gostaria que elas se sentissem deslocadas, como já me senti dentro dos estúdios".

Menos rebeldia, mais amor

Katy nunca tatuou fora da região leste, mas já frequentou estúdios em regiões centrais e percebe grandes diferenças entre os públicos e espaços. "São lugares pensados pra uma galera jovem, descolada, que tem grana pra bancar toda aquela estrutura, sabe? Não são ambientes muito convidativos para pessoas que não conhecem esse universo".

A tatuadora enxerga diferença de público até mesmo entre os seus estúdios. "No Jd. Vila Formosa, atendo senhoras que conseguiram uma condição melhor na vida, e agora vão fazer o que sempre desejaram. Elas vêm bastante por indicação. Já no Jd. Iguatemi, minhas clientes são meninas novinhas, que engravidaram cedo, ralam pra caramba e decidiram que querem cobrir o nome do boy, cuidar do baby e seguir a vida".

Bairros diferentes, machismos iguais

Assim como Larissa, Katy já viu muita cara de espanto com um trabalho bem feito por uma mulher. "É engraçado, as clientes me contam em tom de elogio. 'Nossa, ele não acreditou que foi uma mulher que fez'".

Das poucas vezes que homens estiveram em seu estúdio, situações constrangedoras se repetiram. Desde piadinhas como "Faz ela sentir dor mesmo!", até assédios explícitos por WhatsApp. "Um cara teve a coragem de fazer uma tatuagem de casal com a namorada e depois me mandar mensagem chamando pra sair".

Metade tatuadora. Metade terapeuta

"Costumo dizer que cobro mais pela terapia do que pela tatuagem. Sobre tatuar nome de namorado, por exemplo, às vezes sinto que a mulher não quer, mas como o boy fez, ela se sente pressionada. O que faço é tentar dar conselhos sobre o lugar do desenho. No dedo, por exemplo, é a maior roubada, porque é difícil cobrir depois; então, nem faço. Elas costumam me ouvir".

Autodidata, a artista planeja se tornar especialista em tatuagem de aureola e cobertura de estrias. Ela quer atender gratuitamente. Katy garante que não pretende sair dos bairros onde atende porque encara seu trabalho como uma missão. "Nao é só um desenho. É cobrir uma cicatriz de parto, de algo que deu errado e ajudar essas mulheres a se sentirem mais bonitas e confiantes. É sobre cuidado. Se precisar fazer escambo, mudar o desenho pra reduzir o valor, não me importo. Não é desvalorizar meu trabalho, e sim, valorizar o salário delas".

Linhas finas, reformas e coberturas, conheça as tattoos de Katy
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Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.