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Feira Preta: evento do empreendedorismo negro vai até terça-feira

Flávia Martinelli

17/11/2018 14h02

A Feira Preta se consolida como o evento mais aguardado do país por quem consome, produz e admira a cultura e o empreendedorismo negro. Shows da diva Elza Soares e do rapper Rincon Sapiência fazem parte das dezenas de atrações

Com reportagem de Monise Cardoso, especial para o blog MULHERIAS 

Durante os dias 18, 19 e 20 de novembro acontece o maior evento da América Latina dedicado à cultura ao afroempreendedorismo. Em sua 17ª edição, a Feira Preta, criada por Adriana Barbosa, considerada uma das pessoas negras mais influentes do mundo, de acordo com a premiação do Mipad 10, entra em cena mais uma vez para levar arte, cultura, gastronomia, moda e um rico e vasto leque de produtos produzidos pelas mãos de pequenos empreendedores negros para o centro de São Paulo.

O que acontece nesta edição?

A Feira Preta já aconteceu no Anhembi Morumbi, na Casa das Caldeiras e no Centro de Exposições Imigrantes. Desta vez, dada as proporções que o evento tomou, um único espaço de atividades não daria conta de tamanha potência. Por isso, a programação da edição 2018 acontece simultaneamente por todo o centro de São Paulo, com uma curadoria que promete ser histórica. "Este ano, queremos evidenciar a diversidade de expressões da cultura negra para além da arte e discutir como a estética negra vem sendo entendida pela sociedade, marcas e empresas", explica Adriana Barbosa. Ela conta que no evento será possível compreender quais são os anseios de consumo dessa população, como ela se organiza para ganhar dinheiro, qual o seu potencial de mercado e como deseja se ver representada nos mais diferentes segmentos. "É no espaço do evento que tudo isso estará articulado e conectado", conclui.

Show de Rincon Sapiência será no palco Boulevard São João na terça-feria, 20, a partir das 17h20

Na terça-feira, dia 20, a partir das 12h, o palco Boulevard São João, na avenida do mesmo nome, contará com dois dos shows mais esperados da feira: o de Elza Soares (19h30) e o de Rincon Sapiência (17h20). ​Entre outros artistas confirmados estão as ​apresentações de Luedji Luna, Flavio Renegado convida Simoninha, The R.A.P Party (Rhythm and Poetry, do Reino Unido), Ismael Ivo e Ballet da Cidade, Baile Black Bom (RJ), Jah!spora e a festa Batekoo​.

Além disso, vale a pena assistir a série "Diálogos Criativos", com a participação das inglesas Reni Eddo-Lodge, autora de "Por que não falo mais com brancos sobre raça"; e Jude Kelly, fundadora do Festival Women of the World (WOW); a senegalesa Mariéme Jamme, fundadora da Accur8Africa; e a somali Edna Ismail, fundadora do Hospital Maternidade Edna Adan Ismail.

As narrativas negras irão figurar no circuito de grandes espaços culturais da cidade gratuitamente. O museu Thomie Othake e o Instituto Moreira Salles participam pela primeira vez e serão palco de atrações internacionais para apresentações artísticas. O Theatro Municipal também faz sua estreia na programação e recebe a peça "O Pequeno Príncipe Preto" no dia 20 de novembro.

O espaço dos pequenos produtores segue sendo o coração do evento, e este ano serão mais de 130 expositores dos mais diversos ramos. A programação completa da Feira Preta está aqui.

Um abaixo-assinado pediu para retirar a feira da praça de bairro nobre

Para além do caráter de evento, a Feira Preta sustenta uma história importante no capítulo do afroempreendedorismo de um país onde, desde sempre, a população negra empreendeu como forma de sobrevivência e estratégia para driblar a falta de oportunidades. Mas assim como não é fácil para quem, sem grana, precisa levantar um negócio da noite para o dia para pagar as contas de casa, também não foi fácil para o evento se manter de pé. E ainda não é.

Em 2002, ano de nascimento da Feira, o evento aconteceu na Praça Benedito Calixto, em Pinheiros. Cerca de 40 expositores do ramo estético estiveram presentes. No ano seguinte, a Feira Preta cresceu e cinco mil participantes, entre expositores e visitantes, em sua maioria negros, movimentaram um dos bairros mais nobres de São Paulo. Resultado: um abaixo-assinado com mais de 3 mil assinaturas pediu o fim do evento. Desde então, Adriana e os parceiros de trabalho se viraram nos 30 para driblar o racismo que impede grandes marcas de atrelarem seus nomes a um festival que tem capacidade de se comunicar, representar e emponderar diretamente 52% da população brasileira.

A mudança na vida das afro-empreendedoras 

Espaço de troca, conhecimento e estímulos para empreendedores negros, o festival é parte da história de muitas marcas brasileiras, como a da Free Soul Food. Há dois anos e meio no mercado de alimentação, o delivery de marmitas saudáveis criado por mãe e filha, Maíra da Costa Pedro Nogueira Luz (36) e Janete da Costa Pedro Nogueira Luz (61) ganhou visibilidade através do evento. "Como mulheres negras afroempreendedoras, temos muitas dificuldades em encontrar pares. A Feira é o momento de conhecer pessoas com vivências e dificuldades de negócios parecidas com as suas. Além de ser um espaço onde o afroempreendedor pode captar as tendências do nosso mercado.

Negócio de família, a Makeda Cosméticos, empresa de produtos para cabelos crespos, já participa da Feira Preta desde 2012. Carregando o nome da rainha de Sabá, das terras de Axum (Etiópia), a marca é gerenciada por Shirley Leela (44), Sandra Antonio (67) e Sheila Makeda (41) e nasce da percepção da família sobre a falta de produtos para tratar dos cabelos crespos. "O empreendedorismo esteve em nós desde que, sozinha com duas filhas, minha mãe precisou vender bolo, cachorro quente e tudo o que podia na rua para nos sustentar. Mas nossa grande sacada veio do nicho de mercado que encontramos quando notamos a carência de nossas amigas na hora de cuidar dos cabelos", explica Shirley. Os produtos da marca esgotaram em poucas horas de evento e as empresárias tiveram a certeza de estar no caminho certo. "Ali pudemos validar que nossa marca tinha potencial. Posso dizer que a Feira Preta nos deu muita sorte e estímulo para pensar em ampliar a linha naquele ano", diz.

FREE SOUL FOOD

Da esq. Maíra da Costa Pedro Nogueira Luz Janete da Costa Pedro Nogueira Luz (61)

Esq. Maíra da Costa Pedro Nogueira Luz Janete da Costa Pedro Nogueira Luz

 

O delivery de marmitas saudáveis é comandado por mãe e filha e uma pequena equipe composta por mulheres imigrantes do Haiti, Reública Dominicana e Angola. Entre as opções do cardápio estão a carne louca de banana desfiada e as geleias de casca de fruta, produtos adquiridos diretamente do pequeno produtor orgânico e embalados em potes de vidro ou embalagens feitas de bagaço de cana

MAKEDA

Esq. Shirley Leela, Sandra Antonio e Sheila Makeda

Foi em 2006 que Sheila resolveu assumir seus cabelos naturais. Motivada pela falta de produtos, se dedicou a estudar tratamentos para fios crespos. A partir daí, começou a cuidar dos cabelos de amigas a domicílio e, junto com sua irmã, que já trabalhava com desenvolvimento de cosméticos, e sua mãe criou a Makeda. Mesmo com todas as dificuldades financeiras e preconceitos sofridos por parte das fábricas, em 2007 a família realiza o sonho de abrir a primeira loja da marca no Shopping Light, em São Paulo, e hoje conta com uma linha composta por 17 produtos.

 

O que você vai achar na feira

Preparamos uma galeria com um pedacinho do que poderá ser encontrado na Feira Preta e que dessa vez também estará à venda no site do Mercado Livre:

Uma história de resistência

2002 – A primeira Feira Preta foi na Benedito Calixto, em Pinheiros ." Pano de fundo: a black music bombando na casas noturnas do bairro "mas os dinheiro não ia para as mãos pretas no fim do expediente", lembra Adriana Barbosa.

2003 – Com 5 mil participantes em sua segunda edição, o evento incorpora o movimento norte-americano baseado no "Black Money", que estimula manter a circulação do dinheiro dos negros dentro da comunidade.

2004  -Um abaixo-assinado de moradores de Pinheiros solicita a saída da Feira Preta da praça do bairro. "Mesmo com mais de 3 mil assinaturas dizendo que aquilo era racismo institucional, afinal era uma praça pública, não conseguimos reverter a situação com a subprefeitura na época." O evento foi para o estacionamento da Assembleia Legislativa e choveu. Ainda assim, levou 14 mil pessoas à feira.

2005 – A Feira foi instalada num circo, ainda na nobre Zona Oeste de São Paulo. Foi preciso cobrar ingresso e o evento deu prejuízo. "Mas nos posicionamos: tínhamos que resistir e ocupar espaços além da periferia e das margens da cidade. Foi  uma questão de reafirmação de direitos. Temos direito à cidade como um todo."

2006 – Adriana e parceiros de trabalho foram vender quentão e vinho quente numa festa junina perto da Universidade Mackenzie para pagar a primeira prestação de 10% aluguel do Pavilhão do Anhembi.  "As marcas não enxergavam o valor de se comunicar com um público de 40 mil pessoas! O racismo encobria até a possibilidade do lucro."

2007 – A Feira vai se firmando como espaço de fortalecimento da cultura negra com extensa programação de shows, mostra de filmes e exposições. Apresentações de saraus da periferia e ato ecumênico intereligioso se tornaram assinaturas do evento, além de oficinas de artes plásticas, grafitti e percussão.

2008 – Como a cobrança de ingressos não trouxe resultados satisfatórios, a Feira passa a contar com eventos mensais voltados para a formação de público. Entre eles o projeto "Preta Qualifica", para a formação de afro-empreendedores, em parceria com o Sebrae. Essas "mini-feiras" ocorreram até 2014 e abordaram todo tipo de assunto: artes, economia criativa e racismo estrutural no Brasil.

2009 – É criado o Instituto Feira Preta com a proposta de criar um novo modelo econômico de desenvolvimento para a população afro-brasileira.

2010 – Com o dobro do tamanho, a Feira Preta vai para o Centro de Exposições Imigrantes. Recebeu mais de 50 artistas no evento, entre eles Emicida, já ícone do rap que acabara de criar a LabFantasma, o maior sucesso de economia criativa na música e que, mais tarde, inovou no mercado da moda com os desfiles que contemplam a diversidade. Surge a Casa da Preta, um coworking para abrigar projetos voltados para a valorização negra.

2011 – Na celebração de dez anos da feira, Mano Brown e Criolo lotaram o evento. O número de expositores de produtos e serviços chegou a 100. Pela primeira vez foi criado um roteiro étnico da cidade de São Paulo e uma edição da Feira Preta em Brasília.

2012 – Com novo formato, foram sete dias de programação num local menor, na Casa das Caldeiras, mas com mais espaço para mesas de debates e seminários e capacitação técnica e gerencial para empreendedores.

2013 – O evento virou a Feira Preta Week, com uma semana de atividades espalhadas por diferentes pontos em São Paulo e finalização no Anhembi. O formato trouxe à tona a discussão a ocupação do espaço público em prol da diversidade e a reafirmação de que a cultura negra também faz parte da agenda cultural e de consumo da cidade. A Feira Preta também foi realizada no Maranhão.

2014 – Uma pesquisa feita nesta edição apontou que 88% dos expositores eram mulheres e, na maioria, graduadas ou em formação. "Algumas com mestrado e até doutorado. Por um lado é muito legal esse dado mas, por outro, mostra a dificuldade da nossa inserção no mercado", diz Adriana. Ela, por sua vez, se viu obrigada a ter um emprego paralelo à feira porque o evento ainda não garantia seu sustento.

2015- Além de show de abertura no Ibirapuera, a novidade no Anhembi foi o Espaço Pret@ Digital, local de encontro entre formadores de opinião que se destacam na internet, entre eles os vlogueiros negros que viraram fenômenos nas redes.

2016 – A feira chegou ao Rio de Janeiro. A presença de autores de literatura negra foi destaque. Em São Paulo, houve incremento de financiadores mas, as vésperas do evento, dois patrocinadores deixaram de aportar recursos previstos. Ficou para Adriana uma dívida de R$ 200 mil. Paralelamente, surge o Afrolab, agência de desenvolvimento em inovação digital, aplicativos e soluções para os empreendedores, e a Black Codes, consultoria estratégica com foco para publicidade e negócios.

2017 – Evento ganhou formato de festival em diversos dias do mês. Além da tradicional feira de empreendedores, houve palestras, debates, exposições e shows. Uma das inovações foi o Festival do Livro e da Literatura realizado no bairro de  São Miguel Paulista, na periferia da Zona Leste de São Paulo.

 

Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.