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Mc, professora e duas deputadas contam como vivem o legado de Marielle

Flávia Martinelli

13/03/2019 04h00

Com reportagem de Victória Durães e Hysa Conrado, especial para o Blog MULHERIAS

14 de março de 2019 marca o primeiro ano sem a vereadora e militante Marielle Franco. Mas sua trajetória em prol dos Diretos Humanos não acabou naquele assassinato. Marielle virou símbolo de busca por justiça e luta por dignidade e políticas públicas nas favelas e periferias. Ela vive em Dani Monteiro, a mais jovem deputada estadual eleita no Rio de Janeiro. Marielle vive em Mc Martina, a poeta do Morro do Alemão que denuncia o cotidiano de violência nas quebradas. Vive em Lucia Cabral, a professora que trabalha para mostrar aos moradores do Alemão que eles têm direitos. Vive também em sua amiga e militante Renata Souza, a primeira mulher negra a presidir a Comissão de Direitos Humanos da Alerj.

Mulher negra, periférica, mãe e LGBT, a socióloga assassinada aos 38 anos lutou contra as desigualdades vividas na pele de quem, como ela, nasceu e cresceu nos morros cariocas. Cria da favela da Maré,  iniciou sua militância em direitos humanos após ingressar no pré-vestibular comunitário e perder uma amiga, vítima de bala perdida, num tiroteio entre policiais e traficantes na Maré. Eleita Vereadora da Câmara do Rio de Janeiro pelo PSOL com 46.502 votos, Marielle foi assassinada em um atentado em 2018. Treze tiros atingiram o carro em que ela se encontrava e tiraram não só a vida dela como de seu motorista, Anderson Pedro Gomes.

Um ano após sua morte, centenas de manifestações que cobram justiça e esclarecimento do assassinato também tratam Marielle como "semente". A menção diz respeito às militantes que seguem os passos da vereadora na luta pelos direitos de mulheres negras, periféricas, lésbicas e bissexuais. Marielle vive!

"Eu vejo Marielles todo dia. Vejo na minha mãe, na minha avó, nas professoras pretas, nas mulheres faveladas, em mim", diz Mc Martina, 21 anos, idealizadora do Slam Laje, a primeira batalha de poesia do Conjunto de Favelas do Alemão.

(Foto: Douglas Lopes/Divulgação)

Foi para Marielle o primeiro voto de Sabrina Martina, a rapper Mc Martina. "Lembro que conheci a vereadora em um evento na favela em 2016. Minha identificação foi imediata. Primeiro porque é preta. Segundo, pela coragem. E falo que ela é porque Marielle ainda vive, está presente", completa a jovem.

A Mc jamais vai se esquecer que Marielle foi  uma das pessoas que colaborou com uma vaquinha para arcar com seus custos de alimentação e transporte para frequentar um cursinho pré-vestibular de alto custo onde ganhou bolsa de estudos."Quero fazer o mesmo curso universitário que ela. Marielle era socióloga e vou fazer Ciências Sociais", diz a rapper, também participante do grupo Movimentos, formado por jovens de varias periferias do Rio que discutem e acreditam em uma nova política de drogas – pauta que Marielle também defendia.

Martina é fundadora do coletivo Poetas Favelados, que realiza saraus itinerantes em transportes e espaços públicos do Rio de Janeiro. "Nossa tarefa principal em ataques poéticos é 'furar a bolha"', explica Martina, que no ano passado participou do TED Ex Laçador, em Porto Alegre (RS).

A gente quer impactar a tia que sai cansada do trabalho e nunca ouviu falar em sarau, às vezes não tem tempo de ler um livro mas se interessa. A gente quer impactar o menino que acha o colégio um saco e quer matar a aula e em uma poesia percebe que boa parte da aula pode estar naqueles versos."

Marielle está presente, segundo Martina, não apenas em seus poemas que denunciam a condição da população negra Brasil, onde uma pessoa negra é assassinada a cada 23 minutos, totalizando 71 mortes de pessoas negras por dia.

Para a Mc, Marielle é como Dandara dos Palmares, a guerreira que lutou ao lado de Zumbi pela libertação dos negros no período colonial. E também como Carolina Maria de Jesus, uma das principais escritoras negras do Brasil, que escreveu sobre sua vida na comunidade do Canindé, em São Paulo no começo no século passado. Mc Martina sabe, também, que é semente do legado de todas essas mulheres.

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"Meu papel era estar ao lado da Marielle e eu não tinha pretensão de me candidatar, mas o feminicídio político dela e o chamado da própria Mari para a ocupação da linha de frente da política me convenceu", conta Renata Souza, 36 anos, nascida e criada na Favela da Maré. Renata foi amiga, assessora de Marielle e hoje é deputada estadual do Rio de Janeiro pelo Psol.

Renata Souza e Marielle Franco cursaram juntas um cursinho pré-vestibular comunitário no ano 2000 e não se largaram mais. Moradoras da Favela da Maré, encontravam muitos pontos de militância em comum: a luta contra o racismo, o machismo e a pauta da segurança pública – que posteriormente marcou a trajetória de ambas nos movimentos sociais, na política partidária e na universidade. Renata foi  ex-chefe de gabinete da vereadora e fez doutorado UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) sobre a resistência da juventude frente à militarização da vida na Maré.

É desumano deixar uma mulher sozinha nos parlamentos, um lugar historicamente negado para nós, em especial, mulheres negras e pobres. Marielle sempre fez ações para que mais de nós ocupassem esses espaços"

Renata está na política institucional desde 2007. No ano passado, candidatou-se e foi eleita Deputada Estadual do Rio de Janeiro com 63.937 votos. Foi a mais votada candidata do campo da esquerda na Alerj (Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro).

Atualmente, é presidente da Comissão de Direitos Humanos na assembleia e a primeira mulher negra a ocupar esse cargo. "É muito simbólica essa nomeação. Ter a vivência de mulher, negra e favelada me ajuda a ter um olhar diferenciado na construção de políticas públicas que atendam as reais necessidades dessa população", explica. "Marielle deixa como legado a necessária resistência para que a humanidade não se desumanize, uma luta universal contra as desigualdades sociais e pela democracia".

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"A favela ficou órfã sem Marielle. Mas ela sempre encontra um meio de existência e sobrevivência e estamos aqui na luta", afirma a professora e assistente social Lucia Cabral, de 52 anos, que há 11 fundou no complexo do Alemão o  Espaço Democrático De União, Convivência, Aprendizagem e Prevenção (ONG EDUCAP)

"Meu trabalho é mostrar aos cidadãos que moram nas favelas os direitos que ele têm e não conhecem", explica Lucia. Além de oferecer a jovens e adolescentes acesso à tecnologia e inovação, saúde, cultura, esporte e lazer, a ong EDUCAP  é uma voz importante na luta por direitos humanos e segurança pública no Morro do Alemão.

Foi essa a pauta que aproximou Lucia de Marielle.

Conheci Marielle em 2007 por conta da Chacina do Alemão, quando 21 jovens foram assassinados aqui. Ela acompanhou, escutou e lutou com a gente nesse momento triste e difícil, e todas as vezes que precisávamos era na porta dela que a gente batia, chamava no zap, ligava… Ela sempre esteve aqui presente de corpo e alma."

Para Lucia, a favela ficou órfã sem a vereadora assassinada. "Ela era a nossa porta-voz, e mesmo que o [hoje deputado federal] Marcelo Freixo esteja por dentro de tudo, ela era a grande referência. Marielle deixa um legado de força e coragem que eu nunca vi na minha vida".

Lucia acredita na potência econômica, política e de desenvolvimento das favelas, no poder reinvenção das comunidades e na solidariedade de seus moradores. "Marielle também enxergava o potencial da mulher, do negro, do jovem, do seu Zé da vendinha, daquela ONG que lá no fundo de quintal está dando reforço escolar, ensinando uma criança a ler. Pulsava nela esse desejo de ver a favela no brilho".

Força é o que não falta às mulheres que continuam resistindo e atuando em diversas frentes de militância nas comunidades espalhadas pelo país: seja nos movimentos sociais e associações de moradores, seja através da arte ou da política institucional e partidária, o espírito livre e de luta de Marielle Franco ecoa em todas elas. "O que nos fortalece é o desejo de mudar, de transformar. A favela sempre encontra um meio de existência e sobrevivência".

"Com a Marielle, nós pudemos enxergar a nós mesmas como corpos políticos, muito além da invisibilidade a que sempre estivemos expostas", lembra Dani Monteiro,  de 27 anos, a mais jovem deputada estadual eleita no Rio de Janeiro. "Tentaram calar Marielle, mas o crime ampliou o nosso grito."

A jovem negra, feminista e favelada, como se descreve, nasceu no Morro de São Carlos, no Estácio e é cotista no curso de Ciências Sociais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Antes de se eleger, trabalhou como telemarketing para sobreviver. "Foi quando me deparei com a realidade e passei a militar pelo direito à cidade, à educação e à mobilidade", lembra.

Dani filiou-se ao PSOL em 2015, construiu o setorial de favelas do Rio de Janeiro e participou da coordenação de mobilização da campanha que levou Marcelo Freixo ao segundo turno da disputa pela prefeitura do Rio, em 2016. Em janeiro de 2017, passou a trabalhar como assessora parlamentar da vereadora Marielle Franco. A deputada conta que sua candidatura foi definida bem antes da execução de Marielle.

Ela queria outras mulheres com as mesmas bandeiras que ela defendia"

Na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, busca estruturar seu mandato no feminismo, segurança pública, negritude, cultura, trabalho e educação. "Eu entendo a responsabilidade que assumi, quero contribuir para um novo jeito de fazer política", garante. "Há um espaço de poder que podemos e temos a responsabilidade de ocupar", afirma a deputada que tem como um dos pilares da sua atuação a luta contra as políticas de extermínio de jovens negros que vêm sendo postas em prática nas favelas e periferias do Rio de Janeiro.

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Caso Marielle 

Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.