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Um mês dos 80 tiros: perdi meu melhor amigo, meu amor e amante, diz viúva

Flávia Martinelli

08/05/2019 13h25

"No nosso último passeio fomos para Búzios passar o Carnaval juntinhos", diz Luciana Foto: Acervo Pessoal

 

Com reportagem de Hysa Conrado, especial para o blog MULHERIAS

Trinta dias depois do assassinato brutal de seu marido, a técnica de enfermagem Luciana Nogueira Rosa, de 41 anos, faz um pedido: "Preciso fazer uma homenagem a ele. Quero falar do grande amor da minha vida e da falta que ele me faz". A mensagem de texto que ela mandou para a reportagem trazia, além dessas palavras, dezenas de fotos ao lado de Evaldo Rosa dos Santos, morto depois que oficiais do Exército em Guadalupe, no Rio de Janeiro, desferiram cerca de 80 disparos de fuzis contra o carro que a família estava.

Quando começamos nossa conversa com Luciana pelo telefone, sua voz estava embargada e trêmula: "Ele não merecia o que aconteceu. Muitas vezes, meu Duda não deixava nem eu ter atitude de mãe [risos], porque ele queria estar à frente de tudo. Em sete anos, nunca levei meu menino no médico sozinha porque o Duda estava junto em todo o momento. Ele ia na reunião de escola e meu filho falava: 'nossa mãe, mas lá só tem mulher'. Eu respondia que isso só mostrava que ele tinha um pai presente. "

Nove militares atiraram contra o carro em que Evaldo estava com a mulher, o filho de sete anos, uma afilhada do casal, de 13, e o sogro dele. A família estava indo para um chá de bebê. Nesta entrevista exclusiva ao blog MULHERIAS, Luciana precisou fazer longas pausas para conter o choro. "Você alguma vez sentiu o seu coração doer de sofrimento? O meu dói muito."

Além de tocar cavaquinho, Evaldo, cujo apelido no meio musical era Manduca, trabalhava como segurança e foi camareiro no Projac, da Rede Globo, nos programas "A Grande Família", "The Voice" e em algumas novelas. Foto: Arquivo pessoal

Luciana, sinta-se à vontade para prestar a sua homenagem.
Eu perdi o grande amor da minha vida. Eu e o Duda nos conhecemos quando eu tinha 14 anos. Ele foi o meu melhor amigo, meu grande amor, cúmplice, amante, parceiro. Durante os 27 anos que ficamos juntos, nunca nos separamos, nunca ficamos sem nos falar. O Duda fazia tudo por nós. Ele me deixava todos os dias no metrô, me fazia homenagem quando a gente ia no pagode, ia levar e buscar nosso filho no colégio todo dia. Imagina uma criança de apenas sete anos diante de tudo isso? Meu filho me diz, com os olhos cheio de lágrimas, 'mamãe, eu vi tudo e eu sei de tudo'. Tenho que ter forças para engolir o choro e dizer 'filho, nós estamos juntos até o fim'.

"Aos poucos fomos amadurecendo. A gente juntava dinheiro pra poder comprar lanche no Dia dos Namorados. Nosso primeiro carro foi um Chevette, que compramos com um  dinheirinho muito suado" Foto: Acervo Pessoal

Duda cuidava muito de mim, eu não podia dar um espirro. A gente sabe que uma hora vai morrer, de doença, de infarto. Essa perda te dói, lógico. Mas perder da forma como eu perdi? Tão violentamente, do meu lado, e eu não poder fazer nada… Fechar os olhos e reviver aquele momento do jeito que foi, do lado do meu filho! A minha vida nunca mais vai ser a mesma. Agradeço a Deus todos os dias por ter colocado a melhor pessoa do meu lado. 

O governo do Rio de Janeiro está prestando assistência à família da senhora?
Não, não. Tenho apoio dos amigos, dos colegas de trabalho e da família; a base de tudo. São essas pessoas que estão me dando  forças para caminhar e não adoecer.

Nesses 30 dias, o que mudou na rotina da sua família?
Não consigo mais morar na casa em que eu vivia com ele. Parei de trabalhar e estou fazendo tratamento psiquiátrico e psicológico. Estou tomando remédio controlado para dormir, mas mesmo assim, tenho insônia. E o nosso filho pediu pra ficar longe da escola por uns tempos.

O que vocês gostavam de fazer juntos?
A gente corria contra o tempo para estar junto. Para dormir nós três juntinhos, agarradinhos, se cheirando. As festas da família, os aniversários, Páscoa, Ano Novo, era tudo na nossa casa. No Dia das Mães, meu marido sempre organizava tudo, saía para comprar as coisas, preparava a churrasqueira, a cerveja. E hoje não tenho mais nada… Tô falando isso e tremendo. No nosso último passeio fomos para Búzios passar o Carnaval juntinhos. A gente gostava muito de ir ao pagode da Tia Doca, no Cristo, de ir para Rio das Ostras e ao cinema com nosso filho. 

Pode nos contar das recordações bonitas que a senhora tem do começo do relacionamento?
Me lembro perfeitamente do dia que ele foi em casa pedir minha mão em namoro para o meu pai. Ele estava com uma bermuda branca, ele adorava vestir branco e sempre foi muito estiloso, e uma blusa vermelha. Meus pais consentiram e a gente viveu cada momento intensamente. A gente juntava dinheiro pra poder comprar lanche no Dia dos Namorados. Nosso primeiro carro foi um Chevette, que compramos com um  dinheirinho muito suado.

No atual cenário de guerra no Rio, a senhora tinha medo que algo tão terrível pudesse acontecer com a sua família?
Nunca. De assalto todo mundo tem medo. Mas da forma como aconteceu? Nunca imaginei, meu Deus… chego a ficar tremendo. Onde eu moro não tinha Exército. Eu não vivia em comunidade e não era comum encontrar militares na minha rotina. O que aconteceu foi num bairro vizinho.

A senhora acha que a cor da pele da sua família, negra, teve alguma influência no ataque dos militares?
Por sermos negros, não. Acho que foi despreparo. Não tinha porque ter acontecido aquilo. A gente estava a 20 quilômetros por hora, um carro lento, não tinha nada contra a nossa conduta; nada que fizesse a gente parecer suspeito. Quando paro pra analisar… É uma coisa surreal o que aconteceu.

Existe um estudo que mostra que um homem negro morre no Brasil a cada 21 minutos e que o risco de um negro sofrer violência policial é muito maior do que no caso de homens brancos.
Nunca pensei sobre o assunto. Sabemos que o preto tem sua discriminação, mas isso nunca incomodou a gente.

O que a senhora pensa sobre a postura que o Exército tomou diante da tragédia?
Não tenho mais o pensamento de que eles [o Exército] estão para proteger a gente. Mas eu não tenho acompanhado nada, tenho procurado ficar longe. Não assisto mais televisão. Quando entro nas redes sociais é só para postar a minha tristeza e a minha saudade. Quando as pessoas mandam alguma coisa, excluo porque senão eu vou adoecer. A minha alma dói. Preciso de forças para seguir, caminhar e cuidar do meu filho. 

A senhora postou no Facebook sua indignação sobre a declaração do presidente Jair Bolsonaro, que disse que o "Exército não matou ninguém". Esperava outra postura dele?
Olha, eu acredito que às vezes a pessoa fala sem pensar e não se põe no seu lugar. Mas eu acredito que Deus está trabalhando e vai tocar no coração de cada um.

Post de Luciana no Facebook que comenta a declaração do presidente Foto: Reprodução

Que diálogos a senhora tem com Deus?
Eu questiono: "meu Deus, por que o senhor não me levou? Poxa, Senhor, por que me deixou?" Eu até peço perdão aos meus familiares quando tenho esse pensamento, mas acho que assim eu não teria tanta dor. Também fico pensando que eu e o meu filho poderíamos estar lá com nosso Duda. Porque eu e o meu filho e as pessoas que estavam comigo [no carro], nós somos um milagre. Mas, gente, dói muito, na alma. Vejo meu filho sofrer e sofro de novo também. Você alguma vez sentiu o seu coração doer de sofrimento? O meu dói muito.

A senhora está com algum tipo de assistência jurídica?
Estou sendo acompanhada, tudo direitinho. Tenho um advogado mas não posso declarar nada [o processo corre em segredo de Justiça]. Acredito na justiça divina e na dos homens. Minha certeza é que Deus está trabalhando por mim e pela minha família. Cada pessoa será responsabilizada pelos seus atos. Cada um vai responder pelo que fez. Porque isso que aconteceu é uma coisa nunca vista. Nunca.

O que a senhora consegue falar para seu filho, para tentar consolá-lo?
Tenho que dizer a ele o tempo todo que estou bem. Às vezes, deito um pouquinho e ele fala: "mamãe eu sei que você está com saudade. Eu também tô, meu coração tá doendo". Eu estou muito perdida ainda. Tem uma música que define muito minha relação com o Duda. Chama "Além do meu querer", é do Arlindo Cruz, e tem um trecho que diz: "Com você eu vivi o mais lindo sonho de amor e hoje eu vivo a chorar. Meu universo desabou". 

"Com você eu vivi o mais lindo sonho de amor e hoje eu vivo a chorar. Meu universo desabou'. Foto: Acervo Pessoal

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Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.