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Sabedoria de curandeiras entra na moda com o apoio de médicos

Flávia Martinelli

24/07/2019 04h28

A "griô" Marilda Souza Francisco: ao fundo, um poema ilustrado de sua autoria ilustrado (Foto: Arquivo pessoal)

Com reportagem de Maria Carolina Farnezi e Monise Cardoso, especial para o blog MULHERIAS

Ressaca e má digestão? Dá-lhe chá de boldo! Para joelho esfolado, folhas de guaco amassadas ajudam na cicatrização. O velho xarope de hortelã com mel, então, é tiro e queda na garganta arranhando. Recorrer ao jardim para cuidar da saúde é uma prática ancestral. E, em 2006, o Conselho Nacional de Saúde adotou no SUS um conjunto de tratamentos à base de plantas medicinais e fitoterápicos, nas chamadas Práticas Integrativas e Complementares. Mas Dona Marilda Souza Francisco, de 57 anos, sabe de tudo isso desde pequena. E seus saberes estão cada vez mais na moda.

Já ouviu falar nos famosos encontros do "Sagrado Feminino"? As rodas de mulheres mesclam rituais de diferentes correntes espiritualistas com o uso de ervas e elementos da natureza. A promessa é fazer as pazes com o corpo e a alma e reconectar as participantes à sua própria essência. Parece novidade. Mas não tem nada de novo, não…

Dona Marilda, que é coordenadora da Associação dos Remanescentes de Quilombo de Santa Rita do Bracuí, em Angra dos Reis (RJ), é uma das "griôs" em sua comunidade. Ela é uma das responsáveis por preservar e transmitir os saberes de seu povo às novas gerações. É uma espécie de curandeira do corpo, que sabe dos parangolés da alma também. "As curandeiras existiram por necessidade, por falta de uma medicina mais abrangente; então, a medicina natural é muito forte, rica, nunca devemos abandonar ela", defende a sábia que hoje dá palestras sobre plantas medicinais e tem seu conhecimento amparado por médicos.

Entre eles, a pediatra Claudia Oliveira de Toledo, de 51 anos, diretora técnica do Hospital Municipal Hugo Miranda de Paraty (RJ) e que cuidou da implantação de uma farmácia viva, que hoje conta com cerca de 50 espécies plantadas. Por lá, os pacientes já se acostumaram a voltar pra casa com manjericão, saião, babosa e hortelã, colhidos nos fundos da UBS (Unidade Básica de Saúde).

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"A semeadura foi feita em conjunto com a comunidade. Até porque, muitas pessoas sabem mais que nós sobre este tipo de cuidado. A ideia é validar essa sabedoria, entrando com pesquisas e com as normas validadas pelo SUS", conta a médica Cláudia. Assim como Dona Marilda, ela já receitou babosa (Aloe vera) para queimadura de água-viva e a planta alfavaca-cravo (Ocimum gratissimum) para diminuir febre.

Ao centro, de camiseta rosa, a médica Claudia Oliveira de Toledo, uma das idealizadoras da horta daUnidade Básica de Saúde em Paraty (RJ). O plantio de sementes foi feito em mutirão (Foto: Acervo pessoal)

Ambas também sabem que em crise de bronquite ou asma infantil o sumo de saião (Kalanchoe brasiliensis) com melado é muito eficaz. "Melado é rico em ferro e a médica que atende a comunidade vai até a horta com o paciente fazer a colheita", explica. Entre outras indicações estão a melissa (Melissa officinalis), que é usada para combater a ansiedade e a insônia e a tanchagem (Plantago major), de efeito anti-inflamatório.

Saber feminino que vem longe

Dona Marilda lembra que alimentação também é tratamento de saúde. "Hoje as pessoas chamam a taioba de comida PANC (Plantas Alimentícias Não Convencionais), mas antes a gente comia que era pra funcionar o intestino mesmo. Fazia refogado, era gostoso, mas se alimentava sabendo que tava comendo como remédio. O caruru rasteiro (Amaranthus deflexus) por exemplo, a mãe da gente falava que tinha que comer porque era muito rico em ferro e a criançada precisava de ferro", lembra. Ou seja, um tratamento preventivo.

Católica, Dona Marilda se abstém de misticismos. Mas quem tem interesse em ir além, já pode se abastecer de informação no Youtube. A medicina natural aliada às terapias alternativas é tema de inúmeros canais na plataforma.

O Curandeiras de Si, por exemplo, é um projeto criado pela mineira Carolina Lana, de 29 anos. Terapeuta holística,  desde 2013, ela conta que se interessou pela ginecologia natural em 2015 e criou o canal para compartilhar com outras mulheres o conhecimento que aprendeu sobre ervas medicinais. "Em meus atendimentos, via o quanto as mulheres se sentiam desconectadas de si mesmas e o quanto a medicina tradicional não supria a necessidade delas", diz Carolina.

Apesar da terapia holística não ser uma profissão regulamentada, ela é reconhecida pelo Ministério do Trabalho, e recebe os nomes de terapia alternativa, terapia complementar, prática integrativa, cura energética, tratamento natural ou terapia vibracional. E faz parte da Política Nacional de Saúde do SUS, como as PICS (Práticas Integrativas e Complementares).

Uma das técnicas ensinadas por Carolina é o banho de assento. Ela tem o objetivo de tratar infecções vaginais e não requer nada além de ervas adequadas e água quente. Segundo a terapeuta, que chama o procedimento de vaporização do útero, o banho também "limpa memórias e energias que precisam fluir".

A prática de cura é antiga e bastante comum em culturas de países como Nigéria e Coreia do Sul. Dona Marilda, a médica Cláudia e a terapeuta Carolina, no fundo, seguem unidas pelo conhecimento. Uma ancestralidade cada vez mais científica.

Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.