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"As ruas estão manchadas por sangue inocente", diz manifestante chilena

Flávia Martinelli

01/11/2019 04h00

(Foto: Liss Fernandéz/Acervo pessoal)

Cinco mulheres explicam os motivos dos protestos e contam o que viram nas manifestações do país vizinho

Com reportagem de Amanda Stabile e Renata Leite, especial para o blog MULHERIAS

Martina foi voluntária nos primeiros-socorros das vítimas da violência do governo no Chile. Além dos 20 mortos oficiais, ela conta que há desaparecidos, houve tortura, roubos e até estupros cometidos por policias. A fotógrafa Liss testemunhou a manipulação da mídia que difundiu o pânico – usado pelo governo para justificar a extrema brutalidade das forças armadas contra a população. Camila, que é cadeirante, não se intimidou e foi para as ruas protestar porque "já não temos mais nada a perder". A designer  Pâmela acompanhou o movimento feminista cada vez mais organizado em seu país. A antropóloga Francisca fala em raiva, esperança e um novo sentimento que a une os chilenos na busca por mais igualdade. O Chile vive dias de revolução.

O aumento do preço da passagem do metrô foi a gota d'água. No último dia 6 de outubro, em Santiago, a capital do Chile, quando o presidente Sebastián Piñera deu a notícia de que 30 centavos seriam acrescidos ao bilhete, a população tomou as ruas em protesto. Além de questionar a tarifa do transporte público, que em média consome 30% do salário dos trabalhadores, o povo foi reivindicar direitos negligenciados há mais de 30 anos.

A maior marcha do Chile já dura quase duas semanas e chegou a reunir cerca de 1 milhão de pessoas, o que equivale a 15% da população da capital chilena, no que já é o maior protesto na cidade desde a redemocratização do país  na década de 1990.

Nos dias que se seguiram, a situação foi de terror. A televisão passou o dia mostrando saques em mercados como se o país inteiro estivesse em chamas. Foi o suficiente para o presidente colocar na rua um enorme aparato policial e militar para reprimir as manifestações. Também decretou estado de emergência. A violência, então, tomou conta do país com a repressão do Exército. A população, no entanto, não recuou. Os protestos passaram a pedir a renúncia do presidente e melhores condições de vida no país. 

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Desde a ditadura implantada no país por Augusto Pinochet, que durou de 1973 até 1990, a maioria dos serviços públicos no Chile é privatizado. Um exemplo, são as universidades públicas que não tem ensino gratuito, ou seja, funcionam nos moldes das universidades privadas, onde os estudantes precisam pagar mensalidades. A  Constituição vigente no Chile, de 1980, da ditadura e a lei máxima chilena permite que tudo seja privatizado e esteja em mãos de grupos empresariais que defendem, acima de tudo, o lucro e não o bem-estar social.

Os atos de protesto, esquematizados por meio das redes sociais, fizeram com que o povo chileno despertasse para os problemas do país, pondo na mira assuntos ligados à educação, economia, gestão governamental entre outras insatisfações da população com o Estado. Acompanhe os relatos de mulheres chilenas que estão nas ruas e são testemunhas do que está provocando as manifestações e luta por direitos no nosso país vizinho. 

"Há casos de estupro e tortura de mulheres por militares! Policiais roubaram uma colega que é uma enfermeira voluntária como eu"

Martina (20), estudante de obstetrícia e enfermeira voluntária nas manifestações preferiu ter a identidade preservada por medo de represálias

(Foto: AFP)

"Vi coisas muito feias por estar no posto de primeiros socorros na praça principal, onde as pessoas se reúnem aqui em Santiago. É forte. Há muita repressão policial, ferimentos por 'perdigones' – um tipo de munição – no rosto. Trauma ocular, pessoas que perderam os olhos por causa dessa munição do Estado, tentando desligar as bombas de gás lacrimogêneo.

O exército dos primeiros dias foi violento e já surgiram muitas queixas de atos de tortura também cometidos pela força policial. Eu testemunhei, no posto de primeiros socorros a repressão com gases lacrimogêneos. Tivemos que adotar medidas de segurança usando escudos que nos doaram. Temos preservar nossa integridade para ajudar as pessoas.

(Foto: Liss Fernandéz/Acervo Pessoal)

Uma colega enfermeira estava voltando para casa e num posto de forças militares e policiais foi agarrada pelos braços e tornozelos. Roubaram o salário do mês dela. Aconteceu também de um colega enfermeiro levar um tiro no dedo quando atendia uma pessoa ferida perto de um parque. Recebemos ameaças. Essa e outras denúncias já foram feitas aos representantes de direitos humanos.

Somos muitas mulheres nos protestos. Nosso grupo de enfermagem foi organizado por uma, aliás, pelas redes sociais. Os movimentos feministas das universidades também estão fazendo atos simbólicos nas ruas. Mas importante dizer que não existe uma voz no comando das manifestações, não há cores políticas nas ruas, não tem nada além da sociedade civil, pessoas que têm um interesse comum em acabar com toda essa violência que estamos sofrendo.

As pessoas não respeitaram o toque de recolher porque estão cansadas de serem reprimidas, de ter medo. E mesmo quem não quis sair em marcha foi punido nesses dias. Houve altas prisões! Há notícias de houve tortura e até estupro cometido pela polícia e militares! 

(Foto: Reprodução Facebook)

Os direitos dos trabalhadores no Chile, em uma palavra, é zombaria. Nossa contribuição para aposentadoria têm rentabilidade baixa e o lucro para a empresa privada que cuida desse serviço é imenso. Estamos pedindo a redução horária do dia de trabalho para 40 horas por semana pois não existem leis para isso e a carga de trabalho é excessiva. O fardo que carregamos é evidente na saúde mental da população. Na semana passada, o presidente aumentou o salário mínimo mas pedir um empréstimo no mesmo valor não dá para nada.

Por tudo isso, digo que estamos nos manifestando porque estamos cansados. Cansados de não ter uma vida que valha a pena, de ver nossos idosos de mais de 80 anos trabalhando para pagar contas e comer. Cansados de ver ricos cada vez mais ricos. 

O governo tapou os ouvidos. Na realidade, essas são questões reivindicadas há muito tempo e que as pessoas vêm exigindo há anos nas ruas de maneira pacífica. Agora tudo explodiu. Iremos continuar lutando para também mostrar às gerações futuras que devemos ser corajosos. Como diz nossa moeda chilena 'pela razão ou pela força'!"

 

"É complicado me proteger dos policiais e militares com cadeira de rodas, eles não respeitam nada. Mas lutamos porque já não temos nada a perder"

Camila Herrera (29), comunicadora social e atriz de dublagem, é cadeirante, portadora de osteogenesis imperfeita

"Neste momento estamos sentindo muito medo por tudo que está acontecendo, medo da polícia que está reprimindo os manifestantes, medo pelos casos de violações dos direitos humanos, como tortura e desaparecimentos. É um momento difícil mas também entendemos que não temos nada a perder, literalmente.

Não temos seguro social, nem casa própria ou educação de qualidade. O Chile tem uma constituição criada por Pinochet na ditadura e 30 anos depois, com a democracia, seguimos com a mesma Constituição. É um grave problema, porque a lei máxima do país permite que tudo seja privatizado. Precisamos seguir."

 

"Não queremos uma aposentadoria miserável nem ser o primeiro lugar em suicídios de idosos na América Latina por falta de dinheiro para a saúde"

Liss Fernandez, 32 anos, fotógrafa e cinegrafista

"Há menos de duas semanas ninguém ia imaginar que o Chile mudaria para sempre. Tudo começou com o aumento das passagens do metrô, os estudantes se juntaram e saíram para protestar pulando as catracas em grande parte nas estações do metrô de Santiago. No mesmo momento os cidadãos foram chamados para o famoso "cacerolazo" (bater panela). Eram  nove da noite e dava para escutar o som do que seria o início da revolução por todas as ruas da capital.

A mídia, como era de supor, começou a difundir o pânico na população, falava-se de mercados saqueados e queimados, de falta de abastecimento e inclusive de vandalismo e assaltos em propriedades privadas. Mas a realidade era outra; armazéns e locais pequenos não demostravam o Chile que estava sendo transmitido pela televisão. Feiras locais, alguns mercados e inclusive restaurantes funcionavam com total normalidade.

E foi nesse momento que o Estado decidiu apagar o fogo com gasolina decretando "toque de recolher" em Santiago, militares nas ruas e helicópteros de madrugada 'velando' pela nossa segurança.  A "doutrina do choque" começou a se espalhar pela capital e não contentes com isso essas políticas foram implementadas nas outras regiões do país. Após dez dias do início das manifestações o governo propôs vagas soluções para tranquilizar o povo, mas os chilenos, descontentes, não aceitaram.

(Foto: Liss Fernandéz/Acervo pessoal)

As ruas estão manchadas de sangue inocente, as redes sociais estão explodindo com vídeos que mostram abusos por parte da polícia e das forças armadas do Chile. O governo depois se apropriou do maior protesto da nossa história, um milhão de pessoas marchando de forma pacífica, quando em realidade a gente já estava fazendo isso há dez dias.

O Chile está cansado dessas políticas neoliberais, não queremos uma aposentadoria miserável, não queremos ter o primeiro lugar em suicídios de idosos na América Latina, não queremos um sistema de saúde no qual você morre esperando para ser atendido e ainda ter que pagar por isso, não queremos nos endividar para conseguir estudar, não queremos que sigam matando e destruindo nossos povos indígenas e acima de tudo não queremos continuar com uma constituição feita durante a ditadura militar. Nossos avós foram reprimidos com metralhadoras e não vamos aceitar que isso se repita. Tudo isso ficou conhecido no estrangeiro como "o protesto dos $30 pesos" porém a gente prefere dizer: 'CHILE DESPERTÓ'."

 

"Ficamos sem liberdade de movimento, de ação; helicópteros passavam muito perto de nossas casas, polícia cercou as ruas com tanques"

Pamela Ipinza, 38 anos, é designer, feminista, trabalha no Museu da Memória e dos Direitos Humanos e moro com uma filha

(Foto: Acervo pessoal)

"O Chile está impactado em todas as dimensões possíveis, desde o espaço íntimo da família, amigos e trabalho, até nas ruas ocupadas por militares com violência e repressão. O país que conhecíamos não existe mais.

O toque de de recolher trouxe de volta um trauma histórico da ditadura. É uma situação que impacta fisicamente, pela violência direta dos agentes de repressão, e também psicologicamente. Ficamos sem liberdade de movimento, de ação; helicópteros passavam muito perto de nossas casas, polícia cercou ruas com tanques. Tenho certeza de que tudo isso afetou no ambiente íntimo de todas as famílias no Chile. Foi muito forte. 

Edifício de 2019 traz a mesma campanha contra a militarização da época ditadura. O cartaz (à dir.) é de 1983 (Foto: Acervo pessoal)

Participei da maioria das manifestações e no dia 29 de outubro, eu e todo o meu círculo de amigos não apenas saímos juntos às ruas como convidamos pessoas para dialogar e pensar de maneira coletiva, em comunidade, sobre o que vamos propor ao Estado. Queremos uma sociedade justa e igualitária.

Há um sentimento geral de que por tempo demais suportamos um sistema sem acesso à educação, saúde ou moradia. A constituição da ditadura de 1980 diminuiu o poder dos sindicatos e por isso os direitos dos trabalhadores são constantemente violados. A elite tem poder absoluto na economia. Enfrentamos dias de trabalho árduo, trabalho brutalmente precário com tudo o que implica nesse modelo neoliberal que não tem foco no bem estar social. 

Sou feminista e o movimento já chegou muito ativo e organizado nas manifestações, com agendas estaduais. Mais de 400 mil marcharam. As mulheres sofrem repressão e violência política sexual por agentes do Estado. O impacto é em nossos corpos e estamos denunciando, nos protegendo. 

A polícia, os soldados e as forças de investigação têm sido violentas e estão agindo impunemente. Há muitos casos de tortura, detentos que ainda não apareceram, abuso sexual e até estupro. Foi  repressão brutal, fora de qualquer estrutura da lei." 

 

Há uma indignação e uma raiva que mobiliza e liberta. O sentimento de injustiça e impunidade só nos faz lutar ainda mais

Francisca Vidal Gajardo, 25 anos, antropóloga social e feminista 

(Foto: Acervo pessoal)

"A vida cotidiana em Santiago está em pausa. Há uma mistura de emoções que estamos arrastando dia após dia entre constante incerteza, raiva, medo, fadiga e também esperança de que a revolta possa mudar nossa vida. Sinto que muitos e muitos de nós já vivíamos com diferentes feridas e dores pessoais que, devido a esse surto, foram colocadas na rua e à serviço da indignação coletiva. Entre desconhecidos, compartilhamos arrependimentos e injustiças que o modelo de vida no Chile protege e reproduz.

Acredito que, como no slogan desse movimento [O Chile Acordou], houve um despertar. Há um impacto que se manifesta em diferentes escalas. Tenho amigos e conhecidos que antes não se  interessavam por questões sociais e hoje se sentem comprometidos com o que o povo chileno exige. Fomos questionados e 'forçados' a nos informar e saber sobre a Constituição, decretos, a maneira pela qual a política institucional funciona. O viés e a manipulação da mídia no Chile nos chamou a buscar e gerar informações por outras frentes, principalmente nas redes sociais.


Nos primeiros dias, quando a revolta tomou conta das ruas, saí de casa para ver o que era e me  juntei a um grupo, numa praça, que batia panelas fazendo barulho. Com o passar dos dias, comecei a participar de diferentes espaços. Fui a marchas, manifestações, panelaços e vigílias noturnas em memória dos que foram mortos pela polícia e forças militares. E também a outros lugares de organização e diálogo; como conselhos abertos feministas e grupos de orações comunitárias.

Eu, como outros tantos, ainda estou processando tudo o que acontece no Chile. Para resumir o que estou sentindo em uma palavra, diria que estou esperançosa. Há uma indignação e uma raiva que mobiliza, liberta. Sinto solidariedade e um senso incomum de comunidade em diferentes áreas da cidade. Há desejo de mudança e desejo de se mobilizar para alcançá-lo. É uma experiência que nos transborda e ao mesmo tempo nos contém. Há muito cansaço físico e mental e, ao mesmo tempo, um entusiasmo para permanecermos mobilizados até que uma mudança substancial seja alcançada.

Os direitos dos trabalhadores no Chile são, como em toda ordem de coisas neste país, atravessados ​​pela desigualdade e pela classe. Nesse território, quem tem seus direitos garantidos é quem pode pagar por eles. Há um nível importante de insegurança no emprego e as condições de trabalho de grande parte da população permitem práticas de exploração e abuso por parte dos empregadores. Neste país, por exemplo, existe uma demanda histórica por parte dos professores, que têm salários de fome e carga horária exaustiva, sem mencionar que, além disso, a História e a Educação Física foram recentemente removidas como disciplinas obrigatórias na rede escolar.

(Foto: Liss Fernandéz/Acervo pessoal)

O governo de Sebastián Piñera e todo o seu banco, ainda enfrentando o clamor e a massa desse movimento unificado, subestimam, humilham e violentam o povo chileno. Sua resposta às demandas ainda é nula. Ele se refugiou em sua obsessão de devolver a ordem pública às ruas para não prestar atenção à demanda por justificativas e à rejeição de todos pelo modelo econômico que perpetuam. Exigimos, protestamos, pacificamente ou ofensivamente, e apenas recebemos repressão e violência institucionalizada.

O exército agiu com terrível violência e crueldade. O governo e a televisão manipulam informações com imprudência. Por trás dos números oficiais de mortes nas mãos dos militares, há uma longa lista de desaparecidos, torturados, abusados ​​sexualmente e psicologicamente.

Existem muitos registros de vídeo porque as pessoas não têm mais medo e foram responsáveis ​​por fazer o maior registro possível de abusos da polícia e das milícias. Na estação de metrô Baquedano, sabe-se que conduziram um centro de tortura clandestino, do qual existem evidências e testemunhos, mas isso foi negado no discurso oficial. Há um terrível sentimento de injustiça e impunidade que só nos faz lutar ainda mais."

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Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.