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Festival da periferia traz música, economia criativa e comida sem veneno

Flávia Martinelli

13/12/2019 04h00


O vídeo do Festival no ano passado é inspirador: vale a pena conferir o Percurso no próximo fim de semana!

Com reportagem de Monise Cardoso, especial para o blog MULHERIAS 

Palco histórico da periferia da Zona Sul de São Paulo, a praça do Campo Limpo, pertinho do terminal de ônibus do mesmo nome e a 25 km do centro da cidade, vai receber neste fim de semana mais uma edição do Festival Percurso. É a sexta vez que o evento acontece e traz como atração principal o cantor Rael, artista da produtora de Emicida, o Laboratório Fantasma. O evento é um dos principais da agenda das periferias e já ficou famoso por levar não apenas música, atividades culturais, feiras de economia solidária e comida orgânica para os moradores locais. "Atraímos público que se desloca de diferentes pontos da cidade para curtir a programação que, de fato, é uma verdadeira maratona e mostra muito a força da periferia", diz um dos organizadores do festival, Thiago Vinícius, de 30 anos,  articulador local que está à frente da Agência Popular Solano Trindade.

Thiago e sua mãe, Tia Nice, no Festival do ano passado: feira gastronômica com barracas de alimentação saudável.

Thiago e sua mãe, Tia Nice, no Festival do ano passado: a praça terá novamente feira gastronômica com barracas de comida saudável. "Lutamos pela democratização do ato de comer bem na quebrada", diz a matriarca (Foto: Divulgação/CdeCultura)

Localizada a poucos metros da Praça do Campo Limpo, a agência é símbolo do poder transformador da quebrada que, praticamente sem incentivos públicos ou privados, transformou uma casa térrea antiga e alugada numa produtora cultural que fortalece os coletivos e artistas da região, um coworking, uma rádio, uma venda de produtos orgânicos e um restaurante inaugurado em outubro no bairro e que é comandado pela matriarca Tia Nice, Cleonice Maria, mãe de Thiago.

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"É uma luta antiga tudo isso, um sonho realizado com muito esforço", diz a chef que tem como bandeira a democratização do ato de comer bem e vai revelar os segredos de seu ceviche de manga numa aula aberta no festival no domingo. No mesmo palco com fogão e panelas, a famosa chef Bel Coelho, do restaurante itinerante Clandestino, também irá ensinar a cozinhar com aproveitamento total de alimentos e falará sobre as PANCS (plantas alimentícias não-convencionais).

Kondizilla no Perifa Talks, o TedTalks da quebrada

Mas acolhida aos visitantes no Percurso começa antes do rango, no sábado (14), a partir das 10hs, com rodas de conversa na Agência Solano. O chamado Perifa Talks, uma versão da série de conferências TedTalks, apresentará relatos e depoimentos inspiradores sobre negócios, propósitos, saúde mental e juventude nas periferias. Entre os convidados estão o super produtor musical e empresário do funk Kondzilla, o ativista cultural Raull Santiago, a jornalista Marcia Marci, o pesquisador de cultura popular Leo Mello e a articuladora Simone Guimarães, do movimento Lab+60, que tem como missão a busca pelo bem-estar na velhice.

O cantor e MC Rael, do Laboratório Fantasma, escritório de Emicida. (Foto: Reprodução Facebook)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A programação se estende por todo o domingo na praça, a partir das 8 horas da manhã até 22h, com shows de Rael, passando pelo samba da velha guarda, o hip hop do lendário grupo Z'África Brasil, som do Dj Thaíde e até maracatu, coral indígena. O projeto Ajayô Samba do Monte, que mescla samba de raiz e manifestações ancestrais africanas se apresenta com as presenças ilustres da sambista Raquel Thobias, da roda Samba de Todos os Tempos, e Silvio Modesto, da velha guarda da Pérola Negra. O Maracatu Baque Mulher chega pra somar com a participação da Cris SNJ e o tradicional Sarau do Binho também agita o público da Praça, que poderá ouvir ainda a fala afrofuturista e  do mestre do candomblé Aderbal Ashogun.

Pela primeira vez, a Radio Mixtura, instalada na Agência Solano, vai atuar no festival e  transmitir ao vivo, via streaming, toda a programação musical. Pelo endereço www.radiomixtura.com.br vai dar para todo mundo acompanhar e, depois, as atrações serão convertidas em podcasts. "Além de mostrar a qualidade e inovação dos palcos, que vão trazer diferentes ritmos musicais e parcerias únicas, é um registro é fundamental da nossa produção periférica. Sempre fizemos muito nas quebradas mas havia dificuldade de documentar tudo isso. Agora, não. Fazemos, gravamos, registramos. É a nossa história", diz o produtor cultural Jaime Diko Lopes, criador da rádio e empresário de artistas da quebrada.

Encontros: apresentações indígenas e de samba num palco destinado aos povos e culturas da periferia (Foto: Divulgação/CdeCultura)

Este ano, o palco principal homenageia a grande poeta Tula Pilar (1970-2019), mulher negra, mineira e trabalhadora doméstica que transformou a sua vida e a de todos que foram atravessados pela potência de sua poesia em apresentações em saraus em São Paulo. "Tula é uma referência para todos nós na periferia e representa milhares de mulheres da quebrada que se reinventam, questionam os lugares que querem nos colocar. É importante dizer, aliás, que quem faz o Festival Percurso acontecer são as mulheres", lembra Camilla Lima, de 33 anos, produtora das feiras de economia criativa do evento e moradora do Capão Redondo.

"Somos maioria absoluta entre os empreendedores, expositores e na produção do evento, organizando tudo, cuidando desde a captação de recursos aos camarins e atrações artísticas." Camilla cita que 42 mulheres fazem parte do grupo Maracatu Baque Mulher, a DJ Vivan Marques estará no palco principal e a Tenda dos Erês (para as crianças) é toda feminina. "Somos a potência da quebrada."

 

Camilla Lima, produtora do Percurso:

Camilla Lima, produtora do Percurso: "é festival de imensa maioria feminina" (Foto: Acervo Pessoal)

Além de muita música, haverá feira de artesanato, outra de agroecologia e as tradicionais barraquinhas de alimentação tradicional com empreendedores locais, além de aulas de gastronomia com chefs de cozinha e agenda completa de atividades infantis. "Tudo isso, importante destacar, é feito sob os princípios da economia solidária ou criativa", aponta o articulador Alex Barcellos, responsável por toda a dinâmica com os empreendedores locais.

O conceito e a prática, inventados por operários no início do século 20, negam a separação entre o trabalho e a produção dos produtos. No Brasil, o maior especialista no assunto, o economista Paul Singer (1932- 2018), valida a importância dessa dinâmica: "a Economia Solidária cresce em função das crises sociais", escreveu. Trocando em miúdos, o "compre de quem faz" tem tudo a ver com a "união faz a força". Cerca de 100 empreendedores locais estarão presentes no Percurso."Estudos comprovam que cada R$ 1 real gasto em incentivo com cultura movimenta de R$2,50 a R$ 3 da economia local", diz Barcellos.

Cultura que movimenta o bolso 

No ano passado, numa conta aproximada, o Festival Percurso fez circular mais de R$ 400 mil na região com contratações de mão-de-obra e talentos do território. O consumo movimentado pelo evento também mostra a força da quebrada: as feiras de economia solidária injetaram R$ 68 mil de capital em um só dia de vendas. Assim como em todas as edições do evento, toda a organização foi feita ao longo de meses por quem vive na periferia; o que gera renda direta ou indireta para no mínimo de 150 famílias.

É um feito e tanto. Principalmente quando se confrontam esses números com a alta vulnerabilidade da região. O índice de desemprego no Campo Limpo é dos mais altos da cidade e chega a 19,5%. Não por acaso a Economia Criativa é quem dá o tom ao Percurso e a organização do evento vai oferecer orientações sobre investimentos e crédito para os pequenos empresários locais.

Feira de orgânicos direto dos produtores da agricultura familiar (Foto: Divulgação/CdeCultura)

Aos consumidores, o festival é a chance de fazer compras de Natal conscientes, pautadas pelo preço justo da economia solidária e direto dos fabricantes. Haverá barracas de moda, acessórios, artesanato, alimentos, opções saudáveis e orgânicas, doces, cachaças, cervejas e muito mais.

FESTIVAL PERCURSO
Quando: 14 e 15 de dezembro
Endereço: R. Louis Boulanger SN – Praça do Campo Limpo. Próximo ao Terminal de ônibus Campo Limpo

Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.