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Enem para quem? Manter data da prova é excluir os pobres das universidades

Flávia Martinelli

15/05/2020 04h00

Com reportagem de Juliana Martins, especial para o blog MULHERIAS 

O Ministério da Educação insiste em não mudar o calendário de provas do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Mas seguir com as datas originais é condenar 7 em cada 10 brasileiros, das classes D e E, sem acesso à internet, ao fracasso na prova

 

Victória, de 17 anos, quer fazer faculdade de Sistemas de Informação e é aluna do cursinho popular da UneAfro: "os professores estão se mobilizando ao máximo para nos ensinar online, mas falta computador, acesso à internet, lugar para estudar em casa e até saúde mental para lidar com tudo isso" (Foto: Acervo pessoal)

As aulas presenciais de escolas públicas e particulares estão suspensas mais de dois meses e isso não é um mero  detalhe nesse inusitado ano letivo de 2020. A pandemia obrigou professores e alunos a concentrar aulas pela internet e, como em todas as esferas da sociedade, as desigualdades vieram à tona. Computador? Conexão? Espaço apropriado para estudo em casa? E  quem disse que os professores estão preparados para ensinar a distância?

Apenas 36% dos alunos da rede pública de ensino utilizam computador para acessar a internet, contra 75% dos estudantes das escolas particulares no Brasil, aponta a consultoria privada IDados, especializada em análise de dados e soluções para aumentar o impacto e produtividade de empresas, organizações públicas e do terceiro setor.

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Outro estudo é ainda mais explícito: quase 40% das casas brasileiras ainda não têm NENHUMA forma de acesso à internet! Os dados foram coletados pela pesquisa "TIC Domicílios 2017", sigla do capítulo sobre Tecnologia da Informação e Comunicação realizado pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, um órgão público.

É importante traduzir esses índices. Eles representam cerca de 27 milhões de residências desconectadas e, quando se coloca uma lupa no estudo entre os mais pobres, com o recorte nas classes D e E, a desigualdade é ainda maior: 70% estão afastados do mundo virtual. São sete a cada dez pobres que sequer puderam acompanhar aulas virtuais. Precisa desenhar? Ou está claro que não haverá condições de igualdade para disputar o exame?

 

O ministro da Educação, Abraham Weintraub, há semanas defende a manutenção da prova. Em uma transmissão ao vivo no dia 17 de abril, afirmou que "está difícil para todo mundo" e que o exame "é uma competição". Ele também desconsiderou o novo ambiente de aprendizagem. "Aula à distância é aula normal, é aula dada", vaticinou.

Os dados, porém, estão postos, é só se colocar no lugar dos estudantes.

Jessica Campos, de 20 anos, é coordenadora de um cursinho popular da periferia de São Paulo:

Jessica Campos, de 20 anos, é coordenadora de um cursinho comunitário Carolina de Jesus: "manter a data como se nada tivesse acontecendo é demonstrar que não há tentativa de promover igualdade na disputa de vagas nas universidades. Pelo contrário: isso é assinarmos 'Brasil' no atestado de país mais desigual da história" (Foto: Acervo pessoal)

"Os estudantes estão assustados", diz Jessica Campos, 20, coordenadora do cursinho popular Carolina de Jesus, um preparatório vestibular gratuito que é tocado por voluntários nos bairros do Capão Redondo e Jardim Ângela há mais de uma década. "As alunas e alunos nunca tiveram que estudar tanto tempo de casa, nunca tiveram tanto contato com conteúdos pela internet", diz a ex-vestibulanda que hoje faz Ciências Sociais com bolsa integral pelo Prouni graças à pontuação do Enem.

"A primeira barreira dos estudantes é conseguir organizar seus próprios estudos nesse novo cenário para dar conta de acompanhar todo conteúdo", explica Jessica, ressaltando que, dessa vez, a desigualdade de condições entre ricos e pobres está explícita como nunca na corrida por uma vaga na universidade. "É a verdade por trás do vestibular sabe? É  um choque de realidade maior do que já sempre foi, estamos trabalhando para confortar todos e mostrando que estamos com eles nesse momento também." Para ela, o Enem nunca foi um sistema justo, mas agora não fez questão nenhuma de esconder.

Em nota pública, alunos e os professores do cursinho popular mandaram recado para Weintraub. "O Ministro ignora sistematicamente as desigualdades estruturais do Brasil que refletem no ensino público e nas condições materiais necessárias que possibilitam uma rotina de estudos sem percalços". E completam: "essas desigualdades se intensificam com a quarentena". De fato, bairros periféricos  já são os mais atingidos pelo coronavírus, famílias inteiras estão sem renda e muitas ainda não receberam o auxílio de R$ 600.

"Aqueles que o Ministro afirma serem os melhores contam com toda a estrutura e proteção contra o COVID-19, saneamento básico, acesso à internet, local de estudo adequado e plataformas e professores sempre à disposição", diz o comunicado do cursinho Carolina de Jesus. "Ao manter a data de aplicação do Enem para novembro, o Ministro favorece quem sempre desfrutou de privilégios, fortalecendo escancaradamente a desigualdade educacional que, aparentemente, não está em sua lista de prioridades." (Foto: reprodução Facebook)

A incerteza tira as noites de sono da estudante Victória Alves dos Santos, 17, que quer prestar vestibular para o curso de Sistemas de informação. "Pra nós, pretos e pobres que viemos da periferia, nunca foi fácil conquistar o sonho de entrar em uma universidade pública ou com bolsa 100%. A pandemia e um Ministério da Educação que não reconhece as desigualdades são empecilhos que fogem do nosso controle", diz a aluna do cursinho comunitário UneAfro, rede preparatória de 1600 jovens de escolas públicas que, por ano, contribuiu para que 70% de seus alunos acessem universidade, concurso ou emprego. "Os professores estão se mobilizando ao máximo para nos ensinar online, mas falta até saúde mental para lidar com tudo isso."

A cientista social Regimeire Oliveira Maciel, doutora em relações étnicos-raciais e políticas públicas, concorda com a estudante. "Infelizmente, o governo federal há muito tempo tem adotado medidas que sinalizam uma falta de comprometimento com a educação pública, especialmente com o ensino superior".

Ela cita o corte de bolsas, a ausência de investimentos e vê na tentativa de manter o Enem na pandemia o sinal de uma administração que, "de forma muito consciente não reconhece que o acesso à educação superior pode alterar as diversas desigualdades que enfrentamos".

 Regimeire Oliveira Maciel, professora, especialista em relações étnicos-raciais e políticas públicas

A professora Regimeire Oliveira Maciel, especialista em relações étnicos-raciais e políticas públicas, analisa o episódio como uma forma consciente de o governo não reconhecer o quanto a universidade pode mudar a vida dos brasileiros (Foto: Acervo pessoal)

"A decisão pela realização do Enem é mais um exemplo da intransigência do governo Bolsonaro. É uma medida que reforça o descaso com a educação pública e que faz questão de ignorar que os estudantes brasileiros têm condições desiguais já na educação básica", analisa a especialista, que é professora de políticas públicas na Universidade Federal do Abc (UFABC).

"O território, a raça, o gênero, a classe social: tudo isso condiciona a forma como cada estudante se prepara para acessar o ensino superior. Realizar o exame durante uma pandemia é adicionar ainda mais variáveis a esse quadro. Com isso, já sabemos quem serão os mais prejudicados."

e organizações de defesa da educação e entidades estudantis convocam a campanha nacional pelo adiamento do Enem e pelo direito dos estudantes de escolas públicas a se prepararem para a realização dos exames. Saiba mais em https://www.semaulasemenem.org.br/

Organizações de defesa da educação e entidades estudantis se mobilizam pelo adiamento do Enem e direito dos estudantes de escolas públicas a se prepararem para a realização dos exames. Para pressionar deputados, qualquer pessoa pode criar uma campanha personalizada no site www.semaulasemenem.org.br

 

 

Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.