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Rita, a assistente social que encara a Covid-19 nas ruas das periferias

Flávia Martinelli

12/06/2020 04h00

Cara a cara com a covid-19 há 95 dias nos bairros mais infectados da cidade

Cara a cara com o coronavírus há quase 3 meses nos bairros mais infectados da cidade (Foto: Acervo pessoal)

Por Fernanda Almeida, especial para o blog MULHERIAS

Desde 16 de março, há exatos 89 dias, Rita de Cássia Fernanda da Silva, de 32 anos, enfrenta a Covid-19 nas ruas da periferia. Enquanto a população foi convocada a se isolar dentro de casa, ela praticamente só entra na dela para dormir. "Tive que deixar meu filho de 13 anos morando com minha mãe que tem diabetes e pressão alta e ela ainda está com meu irmão caçula, tipo um filho também."

No trabalho, Rita mal senta na cadeira do escritório do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) da região dos bairros periféricos da Casa Verde, Limão e Vila Nova Cachoeirinha, na Zona Norte de São Paulo, alguns dos mais infectados da cidade. "Tenho que estar em contato com as famílias para acessar os 40 programas sociais disponíveis. Muitas nem sabem que têm esses direitos."

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Supervisora de uma equipe de cerca de 100 funcionários, Rita atende uma área de 26,7 km2, quase duas vezes o tamanho do município inteiro de São Caetano do Sul, na grande São Paulo. "A pandemia intensificou problemas já existentes e trouxe novos desafios. Os casos de violência doméstica são dobro de antes", conta a profissional que atende a população de 309.376 habitantes da região.

É ela quem recebe ou encaminha para atendimento pessoas de qualquer idade ou famílias que se encontram em situação de privação, vitimização, exploração, vulnerabilidade, exclusão pela pobreza, risco pessoal e social. Com a Covid-19, passou a fazer campanhas de conscientização sobre a doença nas ruas e receber emergências de doentes em casa. Rita sabe que a morte ronda seu território mais do que nunca.

30 quilomêtros de distância e décadas de vida a menos

 O Mapa da Desigualdade de 2019 apontou que em "tempos normais", antes da pandemia, a idade média ao morrer de um morador do bairro de Moema, na área nobre da cidade, era de 80,57 anos, enquanto que em Cachoeirinha, 63,01 anos. Os quase 30 km que separam os dois distritos já faziam com que a morte chegasse quase duas décadas mais cedo.

Agora, com o coronavírus, Moema se destacou por estar na lista dos cinco bairros com as mais baixas taxas de mortalidade em toda a capital. Lá, são 15 mortes a cada 100 mil habitantes. Em Cachoeirinha, o índice sobe para 68 mortos, o quinto maior da cidade, que recentemente caiu para sétimo lugar, de acordo com pesquisa do Observatório Covid-19 BR.

Em ação: uma moto leva a caixa de som e ela manda o recado sobre a importância dos cuidados para evitar a Covid-19 no bairro do Jardim Peri Peri. Ela ainda atende as comunidades de Peri Alto, Vila Amália, Gervásio, Favela dos Tubos, Lidiane, Favela do Boi Malhado, Agreste e Favela do Jardim Antártica (Foto: Acervo pessoal)

A rotina de Rita tem sido muito mais intensa que o normal. "É emergência direto. O telefone toca e você tem que sair correndo, em alguns casos até de madrugada. Em outros, como em situações de denúncias anônimas de violência doméstica, é preciso ter cautela para não expor a vítima a nenhum risco", revela.

A equipe liga antes, avisa que vai fazer triagem para cesta básica e faz um atendimento com a mulher em outro espaço. "É nesse momento que muitas desabam." A vítima pode optar por ir para um local sigiloso que informa a família depois de 15 dias. "Então, elas têm a chance de viver uma segunda vida e sair dessa situação". 

Os chamados à supervisora chegam tanto de secretarias de outras áreas quanto da equipe de 15 funcionários que recebem diretamente os telefonemas. Outra parte do pessoal cuida de questões burocráticas. Rita é a única que, de fato, tem contato com as famílias, entra na casa das pessoas e presencia casos de extrema necessidade de fraldas, materiais escolares e alimentos.

Tem dia que de tão preocupada perco o sono. A gente faz muita coisa, mas queria fazer mais. Assistência social não é assistencialismo. É trabalho de fortalecimento de vínculos. A a gente constrói algo com a população"

Cara a cara com a doença

Sempre equipada com luvas, máscara e capacete de proteção, Rita sabe que diariamente fica cara a cara com a Covid-19. O número crescente de mortes a desanima e o descaso do governo federal a revolta."Mas aí eu levanto e sacudo a poeira. Tenho uma equipe por trás que e um monte de pessoas que dependem da gente". 

Da dor de uma grande perda, ela tirou disposição para realizar o projeto "Higienizando os bairros", de lavagem e pulverização nas ruas e divulgação sobre como limpar as casas na quebrada. "Meu querido tio, de 54 anos, foi vítima da Covid-19 e faleceu no dia do meu aniversário, 2 de maio. Foi o momento mais triste da minha vida". Também a única vez em que Rita questionou se todo seu esforço valia a pena. "Lembro que olhei pro céu e perguntei: 'o que estou fazendo? Abri mão de tudo, da presença do meu filho comigo, e meu tio morreu.' Mas enxuguei as lágrimas e continuei." 

Movida pela perda do tio pela Covid-19, ela fomentou um programa de higienização de ruas que, além do objetivo da desinfeção, também foi mote para chamar a atenção da comunidade (Foto: Acervo pessoal)

O tio Paulo César, o Paulinho, era como um pai para Rita. Comerciante, muito conhecido na comunidade, "era um homem, pai e avô incrível", diz emocionada. Ela lembra que sempre será grata pelo apoio que recebeu dele enquanto estudante. "Tio Paulinho tinha uma máquina copiadora e imprimia toda as minhas apostilas da faculdade de graça para eu não ter que gastar dinheiro. Naquela época, eu só tinha para condução e lanche."

Apesar de toda boa vontade do programa de higienização nas comunidades, não foi fácil. Ao entregar máscaras e orientar sobre a doença, "algumas pessoas xingavam, falavam que não iam usar nada, que estávamos loucos e que era para eu parar de encher o saco." 

atitude negacionista ela entende como uma tentativa de proteção: "dá um pouco de estabilidade emocional não reconhecer o perigo". Apesar desse comportamento, ela considera que, após mais de um mês e novas ações no território, como a ida em comunidades com microfone em punho e caixa de som na garupa de uma moto, "a galera entendeu o recado". 

Se no começo da pandemia Rita ganhou xingamentos ao entregar máscaras, depois de mais de um mês sentiu a adesão da comunidade. "A população percebeu que estava sendo atingida. Ou eles trabalhavam com a gente ou iam ficar à mercê da doença" (Foto: Acervo pessoal)

Existe isolamento social na periferia?

Rita reconhece a dificuldade de manter muitas pessoas dentro de casas pequenas – dinâmica da maioria das residências periféricas. Em vez de recriminar quem encontra na rua, passou aplicar a metodologia de redução de  danos. "Estamos em época de pipa. Aí, a gente fala: 'vai ficar na rua? Usa máscara então."' Nas rodinhas da moçada, ela puxa conversa e recomenda a também não compartilhar narguilé, cigarro, baseado, corote ou cachimbo.

A especialista ainda percebe grande quantidade de pessoas nas ruas, principalmente após a flexibilização da quarentena, mas acredita que elas estão se cuidando mais. "Os comércios têm termômetro na porta e não pode entrar nenhum lugar sem máscara. As pessoas esquecem o óculos mas já não esquecem a máscara", sorri. 

Distribuição de máscaras: "em uma das atividades, foram mais de duas mil entregues em apenas duas horas de trabalho"  (Foto: Acervo pessoal)

"Não se deve culpar a população. É comum esse olhar marginalizado para a comunidade, mas erro não é só na periferia. Se você olhar, lá no Morumbi [bairro rico da cidade] a galera está na rua, nos seus condomínios, fazendo suas festas", critica. 

Mulher indígena na linha de frente

Rita tem percepção afinada. Mesmo diante de tantas dificuldades, notou também que a população está mais consciente de seus direitos como cidadãos. Acredita que, antes da pandemia, um boa parte da comunidade havia comprado o discurso de que não precisa da assistência pública e via direitos como "esmola".

Porém, "nesse momento, com o tanto de gente em situação de risco e desempregada, se a gente não tivesse esses programas sociais estaríamos em uma situação de calamidade muito maior". E reconhece que há falta visibilidade das iniciativas de assistência e investimento na área e nos profissionais. Além disso, problemas estruturais seguem afetando as profissionais mulheres, entre eles o machismo. 

Orgulho de suas origens e do enfrentamento do machismo (Foto: Acervo pessoal)

"As pessoas não curtem mostrar o trabalho de uma gestora mulher na linha de frente. E sou nova, tenho firmeza nas palavras. Muitas vezes os homens tiram credibilidade do meu trabalho", diz. Ocorre até mesmo diante da conquista do respeito dos assistidos. "As pessoas admiram minha etnia indígena e minha origem humilde", afirma. Como mulher periférica, ela se reconhece nas demandas e nos sofrimentos das comunidades. E isso, de fato, faz toda a diferença. Quem é da quebrada vai entender.

Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.