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"Por que toda vez que uma mãe vai comer, a comida já está fria?"

Flávia Martinelli

07/08/2020 04h00

"Muitas reflexões profundas sobre a vida nascem na cozinha", diz a escritora e poeta pernambucana Jenyffer Nascimento, de 36 anos. Ativista, feminista, mãe solo há 12 anos, moradora da periferia da zona Sul de São Paulo, ela escreve desde a adolescência e por meio da cultura hip hop se encontrou no movimento literário dos saraus das quebradas de São Paulo. Suas poesias estão publicadas em diferentes coletâneas e seu primeiro livro, Terra fértil (Editora Mjiba, 2014), é obra reconhecida como das mais inquietas da nova geração de literatas negras no Brasil. A convite do blog MULHERIAS, ela compartilha uma crônica que remexe com nossos pensamentos, estômago e alma. 

Por que toda vez que uma mãe vai comer, a comida já está fria?"

Por Jenyffer Nascimento, especial para o blog MULHERIAS

Muitas reflexões profundas sobre a vida nascem na cozinha. Não sei se os intelectuais concordam com essa afirmação porque isso que vos escrevo é apenas uma observação (ou será um insight, frase de efeito?) de minha mente inquieta e literariamente viva. Já digo aos intelectuais que tal pensamento não tem fundamentação teórica, nem tenho ninguém para citar, a não ser as próprias conversas que tenho na cozinha com outras amigas, observando esse grande laboratório de vida muito habitado pelas mulheres de minha família, geração após geração…

Voltemos ao foco. A pergunta é outra. Você já experimentou comida fria? Aposto que há quem goste, há gostos e esquisitices para tudo nesse mundo, mas imagino que no Brasil, no mínimo 87,5% das pessoas preferem que sua comida esteja quente (obs: consta que nenhum instituto de pesquisa foi consultado para essa estatística, puro palpite!). Ora veja, se o fogão está lá, bonitinho e com botijão, cozinhando e esquentando tudo que pode, e em 2020 tem microondas na casa da dona de casa, na casa das trabalhadoras moradoras da quebrada e não somente na casa das patroas, então qual o motivo para não comer uma comida quente?

Vamos voltar no tempo. Desde a manipulação do fogo pelo Homo Erectus há 7.000 anos AC e hoje (que maravilha!), cá estamos na modernidade podendo desfrutar de suas vantagens, com apenas um clique: tenemos fuego. Se for a lenha é ainda mais gostoso, a quentura aquece a comida que aquece o coração e a barriga da gente.

Pois bem, eu nunca li, em lugar nenhum, um artigo falando sobre a comida fria que as mães comem e acho isso um absurdo. Devia ser denunciado nos noticiários e jornais para ver se as pessoas se chocam.

Onde já se viu? Antes fosse uma vez ou outra, mas é quase todo dia que a comida fica fria. E as mães lá, indignadas e quietas. Quietas não, porque elas reclamam, mas não são ouvidas.

Tudo começou porque eu, Jenyffer, que agora vos escrevo, odeio comida fria. E para constar, eu não gosto de comida requentada no microondas. Não tem nada a ver com o lance da radioatividade, é só porque muda o gosto do arroz, muda a textura das coisas, é algo que, ao meu ver, precisa ser aperfeiçoado, mas as empresas de microondas devem estar pensando nisso (assim espero). Só para fechar o cenário, a verdade mesmo é que eu nem tenho microondas e, mesmo com as críticas que tenho a esse eletrodoméstico, se eu o tivesse, usaria. Mas, quer saber de uma coisa? A mãe pode até esquentar a comida dela no microondas, mas quando for sentar para comer, a comida vai estar fria.

Senta que lá vem história. Mães são umas criaturas com oito braços e três cabeças, todas invisíveis, nem mesmo os inteligentes ou as crianças conseguem ver. Ela lava louça, varre a casa, estende a roupa e atende o telefone ao mesmo tempo. Isso não é legal, não é um super atributo, é arrancar o couro.

Ninguém quer ser uma super mãe. Porque a super mãe é essa que come a comida fria."

Eu nunca quis ser super mãe e sempre fui a mãe que deu pra ser, mas, de um tempo pra cá, a maternidade tem me trazido muitas reflexões que deslocam minha órbita. Como pode? Imagina, uma mãe de férias do trabalho, fazendo café da manhã, almoço e janta, cozinhando pra todo mundo da casa… Digamos que ela está fazendo tudo com prazer e sente aquele cheiro do alho subindo, cantarolando, fica feliz de ver a alquimia se realizando na panela, sente um prazer imenso quando apaga todas as bocas do fogão, afinal, está pronto. E de repente… a comida dela está fria!

Por que toda vez que uma mãe vai comer, a comida já está fria? O pior não é a comida estar fria na panela, se fosse esse o problema era só esquentar. Dá mais trabalho? Sim, mas esse é o falso problema. O verdadeiro problema é a lacuna, a interceptação que ninguém consegue ver e saber pra onde foi, pois entre a comida chegar quente no prato e a mãe conseguir dar uma garfada, a comida já estará fria. E às vezes, de raiva, ela nem come. A fome passa.

Eu fico pensando em uma assembleia só de mães, com as crianças correndo, algumas chorando, outras se mordendo, mas as mães estariam firmes para reivindicar que gostariam de ter tempo para sentar e comer sem que nada as interrompesse, para que conseguissem merecidamente desfrutar do sabor de um prato de comida quente.

Tudo começa muito remotamente quando os filhos ainda são bebês. Enquanto eles dormem, a gente tenta fazer duas coisas fundamentais, comer e ir ao banheiro. Hoje vamos ficar apenas com a opção da comida. Os bebês têm um despertador estranho, toda vez que a mãe senta para comer eles acordam e lá se vai nossa oportunidade de comer uma comida quente. Tudo bem, os bebês não têm culpa, são tão bonitinhos e cagões – e bonitinhos de novo. Ainda não tem consciência do que suas mães estão passando. Mas por que raios uma mãe com filho de 12 anos não consegue comer uma comida quente?

A verdade é que não importa o tamanho do filho porque a sobrecarga estará ali. E aqui tô falando de um tipo de mãe que é aquela que tem que se virar sozinha porque não tem quem faça nada além dela. Ou melhor, às vezes até tem, mas é como se não tivesse. Não há substituto hábil para uma mãe – pensam. Dizem "quem pariu Mateus que balance". Meu cu balançando pra quem disse isso! A verdade é que apesar do tom de humor e ironia, esse texto é um manifesto.

Eu disse que é na cozinha que nascem as grandes ideias para mudar o mundo. Ou melhor, não foi exatamente isso, foi quase.

A verdade é que uma mãe nunca consegue sentar e comer em paz sem que alguma preocupação ou importunação a atravesse. Estar em casa, tendo que trabalhar em plena pandemia e cuidar de uma criança me fez pensar o quanto é revolucionário ter dinheiro pra pedir um marmitex (que às vezes chega frio, mas aí já são outros quinhentos, ou seriam outros vinte?). Sentar e conseguir degustar um prato de comida quente deveria ser um direito materno, afinal precisamos nos manter bem alimentadas para dar conta de tudo que temos que fazer em um único dia, ao longo de toda uma vida.

Toda mãe que comeu um prato de comida frio e sentiu vontade de chorar (sim, nós queremos chorar muitas vezes e eu não conheço uma mãe que não tenha chorado enquanto tentava comer, talvez não exatamente por causa comida fria, mas por qualquer outro motivo) deveria ler esse texto e pensar em romper esse ciclo. E não posso considerar que uma mãe se acostume a comer comida fria e passe a achar normal. É digno e fundamental que a gente seja tão gente quanto qualquer outra pessoa.

Alguns de vocês lerão esse texto e vão achar engraçado, outros dirão que é frescura da minha parte, você talvez pare pra pensar e sinta vontade de chorar e uma parte considerável não vai fazer porra nenhuma pra essa realidade mudar. As intelectuais de gênero devem ter algo a dizer sobre as jornadas triplas de trabalho, as interseccionais sobre o quanto a raça, gênero e classe contribuem para a opressão que sentimos na pele.

É tudo muito válido, inclusive esse texto. Mas, eu fico no pensando o que muda na vida das mães e seus pratos de comida? Infelizmente, quase nada.

Então, como não sei exatamente como acabar essa crônica, porque eu ainda escreveria horas sobre esse assunto, mas preciso me organizar para dar conta dos outros afazeres acumulados enquanto eu sentava aqui pra escrever, vos deixo a pergunta, por que toda vez que uma mãe vai comer, a comida já está fria?

Muitas reflexões profundas sobre a vida nascem na cozinha.

Veja também: 

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Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.