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No Jaçanã, artistas vencem disputa por centro cultural com a polícia

Flávia Martinelli

10/07/2020 04h00

Com reportagem de Antonia Sousa, especial para o blog MULHERIAS

Essa é a crônica de um "Trem das Onze" que um grupo de artistas independentes da quebrada não perdeu. No Jaçanã –bairro periférico mais conhecido pela música de Adoniran Barbosa do que pelos baixíssimos índices de qualidade de vida, longevidade e renda–, a disputa pelo uso de um galpão de 120 m2 abandonado pelo governo teve um raro desfecho feliz. Feliz, finalmente, para quem aposta no poder da arte, educação e ação social em vez do aumento da repressão da polícia no combate à desigualdade.

Para compreender a vitória é preciso voltar ao ano de 2003, quando um Telecentro foi criado no terreno de uma movimentada avenida do bairro. Naquela época, a prefeitura levantou uma estrutura quadradona de sala única com laje e dois banheiros para o abrigar o programa de popularização e acesso a computadores e internet. O local funcionou muito bem até 2010, quando foi desativado. Coincide com esse período a popularização dos aparelhos celulares com internet e, claro, o maior acesso aos computadores domésticos mesmo na periferia.

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Durante quatro anos, só mato alto e ninhos de ratos cresceram no terreno de cerca de 800m2 que fica em volta da edificação. Tudo ali permaneceu trancado, sem nenhum uso social. Uma parede quebrada deixava o abandono ainda mais explícito e provocava medo em quem passava por ali à noite.

Enquanto isso, porém, a subprefeitura do Jaçanã, que também inclui o bairro do Tremembé, com o total de quase 300 mil habitantes, seguiu produzindo cultura. Grupos de rap, samba, teatro, clubes de leitura, coletivos de dança se organizavam. Foram fomentados de maneira independente, na esteira de movimentos que cresceram com programas de acesso da população periférica às universidades.

Com tanto público para consumir, trocar e produzir arte, os equipamentos culturais da região não deram conta do recado. Ainda não dão, aliás. Se nas regiões centrais e nobres de São Paulo concentram-se dezenas, até centenas, de espaços voltados para as artes, no fundão da zona Norte existem só quatro centros de cultura.

Em um dia qualquer de 2014, então, diferentes galeras passaram a se reunir no galpão largado ao nada. A Casa Cultural Hip Hop do Jaçanã foi surgindo aos poucos, com o esforço coletivo e da comunidade, mesmo sem luz, água encanada ou dinheiro público. "Foi no braço que a moçada fez tudo", lembra Gabriela Santos, 23 anos, a Gaby.

Moradora do bairro e integrante da banda de MPB Matriarcas, Gaby conta com orgulho das atividades que viu nascer: "foi ação de muitos, juntos, transformando aquele abandono em local para ensaios e oficinas de tudo que é arte", diz a estudante do terceiro ano de pedagogia. De memória, ela cita capoeira, dança, canto, percussão, puxada de rede, maculelê, samba de jongo, literatura, hip hop e cinema. 

As atividades se ramificaram ou viram novas iniciativas como o Sarau Sons Periféricos com oficinas de produção musical para mulheres artistas independentes e para o público LGBTQIA+, o coletivo de contação de histórias Conto no Pé da Árvore e o projeto "Ensaião", que usando linguagens da dança, poesia, fotografia e audiovisual oferece oficinas de música tanto teóricas quanto práticas com a construção coletiva de composições de artistas da quebrada.

"Nossa, tanta coisa, né?", completa a parceira de Gaby no Matriarcas, Catarina Nogueira, 23 anos, estudante de psicologia e produtora da banda. "Ali virou um espaço para articular e reunir forças, onde fazemos arte periférica para a periferia, onde enriquecermos nosso bairro com partilha das nossas vivências e sabedorias", define.

Com a agenda de programação lotada e a casa "viva", as paredes ganharam grafites. O gramado seco virou uma horta comunitária com couve graúda para a comunidade. Um cursinho preparatório para o vestibular com formação política da UneAfro passou a rolar no galpão. E se faltava água e luz, nada como o velho "gato" de energia elétrica e o puxadinho hidráulico; tecnologias de sobrevivência que toda  favela conhece. Assunto resolvido. 

A escritora Carolina Maria de Jesus estampa o material de divulgação da oficina de redação feminina, uma das atividades do local que é realizada pelo coletivo Fala Carolina!  (Reprodução Facebook)

Mas quem nunca aparecia por lá resolveu colar: a polícia. "Em 2019, antigas ameaças de reintegração e remanejamento do espaço para outra função se concretizaram numa notificação que informava que o local passaria a ser uma base da Guarda Civil Metropolitana [GCM]", conta o professor de filosofia Davi Albuquerque, 36 anos, idealizador do cursinho pré-vestibular. "O argumento usado foi o de que o local estava abandonado e nenhuma atividade era realizada ali", lembra Davi. "Foi revoltante."

Curioso. O 73o. DP (Distrito Policial) da Polícia Civil fica a menos de 800 metros da Casa Cultural Hip Hop do Jaçanã. Na ocasião, em março do ano passado, mais de 20 coletivos parceiros se reuniram no local num fim de semana e promoveram o "Sarau Resistência". Cerca de 300 apoiadores assinaram um dossiê que descrevia as atividades realizadas e o documento foi encaminhado a advogados. "Mas, no final das contas, os profissionais não encontraram o processo de reintegração da GCM e o caso ficou por isso mesmo", informaram os articuladores da ocupação cultural em suas redes sociais.

Projeto da GCM para transformar a Casa Cultural em sede de uma inspetoria regional do agrupamento (Reprodução Ponte)

Até que veio a pandemia do coronavírus. Com a necessidade de isolamento e em respeito às normas sanitárias, as atividades presenciais da casa de cultura foram suspensas. "Permaneceram as campanhas de entregas de cestas básicas e de leite, como pólo de distribuição. O restante da programação passou a ser pela internet, em aulas de educação à distância, saraus em formato de live", explica Davi.

O susto foi imenso, portanto, quando oficiais da GCM arrombaram o cadeado e as correntes que fechavam os portões do espaço, no dia 17 de junho passado. Só no dia seguinte os articuladores do espaço cultural foram informados que o ato era parte de uma reintegração de posse em curso. "Por causa da pandemia, corremos com poucas pessoas para o local. Usamos nossas redes sociais e lançamos mão do nosso poder de articulação com os movimentos de reconhecimento de ocupações para nos defender", explica Davi. 

A defesa, porém, foi além. Na periferia ninguém anda só. Os articuladores do espaço no Jaçanã participam de um amplo movimento que reivindica segurança, respeito e apoio governamental às ocupações culturais. Desde 2013, o Movimento Cultural das Periferias reúne coletivos de toda a cidade que cobram reconhecimento por realizarem, de maneira independente e voluntária, ações que o próprio Estado deveria prover.

 

No dia 04 de julho, o diário Oficial da Cidade de São Paulo trouxe resultado do edital de Mapeamento de Ocupações Culturais do município. Entre as 17 ocupações reconhecidas está a do Jaçanã. A GCM arrombou o local mesmo assim. A prefeitura voltou atrás e comunicou que o espaço terá, sim, sua utilização mantida para fins culturais (Reprodução)

Como parte dessa articulação, meses antes da invasão da GCM a Casa Cultural Hip Hop do Jaçanã havia concorrido ao primeiro edital de Mapeamento e Credenciamento de Gestão Comunitária de Espaços Públicos Ociosos da cidade. E ganhou esse reconhecimento! O resultado foi publicado no veículo de comunicação oficial da prefeitura o dia 9 de junho, oito dias antes da investida da polícia municipal.

"A periferia enfrenta uma disputa simbólica contra o Estado, que só chega nos nossos territórios como força policial", analisa Davi. A tentativa de sufocamento da arte e da educação passa por essa violência. "Entendemos  a cultura como um elemento poroso, que abre pontos de respiros em direção à construção de outras formas de sociabilidade", completa.

E Davi explica: "a cultura dominante está baseada em processos competitivos e hierárquicos. Mas há espaços de contracultura, onde prevalecem a solidariedade coletiva e horizontalizada em ações simples, como o compartilhar de hortaliças com a comunidade. E é aí que reafirmamos a cultura como espaço de uma outra vida possível." A política real consiste na formação dessas outras possibilidades.

Como ação preventiva, está em curso um abaixo-assinado que precisa de 7 mil assinaturas de apoio para solicitar uma petição para resolver o caso. A intenção é solicitar ao prefeito Bruno Covas um decreto em que, além do reconhecimento dos espaços, mantenha a gestão compartilhada pelos coletivos com a secretaria municipal de Cultura. 6.176 pessoas já assinaram. Para acessar o documento, clique aqui.

Os articuladores culturais e a comunidade comemoram timidamente a vitória da Casa Cultural Hip Hop do Jaçanã. Sabem que a periferia não pode nunca perder o trem. Nem o das Onze nem qualquer outro.

O que diz a GCM e a Prefeitura 

A GCM encaminhou as perguntas do blog MULHERIAS, enviadas diretamente para sua assessoria de imprensa, para a Secretaria de Comunicação da Prefeitura, órgão que responde diretamente pelo Gabinete do Prefeito. Foram ignorados os questionamentos sobre os responsáveis pelo processo de reintegração de posse em plena pandemia ou esclarecimentos sobre a necessidade de mandados judiciais não apresentados aos articuladores da ocupação.

Em nota, o órgão público informou: "a prefeitura de São Paulo, por intermédio das Secretárias Municipais de Cultura  e Segurança Urbana, informa que a  Casa de Cultura Hip Hop do Jaçana, terá sua utilização mantida para fins culturais.  A SMSU  irá reanalisar o processo  que  previa a instalação de uma inspetoria regional da GCM no local."

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Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.