Escola de Anittas: como vivem as funkeiras numa casa dedicada ao pancadão
Com reportagem de Marina Azambuja, especial para o blog MULHERIAS
A vida da ex-cantora gospel Jiheslen Moraes nunca mais foi a mesma depois do baile funk. "Fiquei enfeitiçada quando ouvi o batidão e o vi o jeito do público se expressar, dizer o que pensa e o que quer. Aquela liberdade a igreja não me dava", diz a jovem de 23 anos que aos 18 se casou com o pastor de sua congregação evangélica. Hoje, já separada, ela responde pelo nome de MC Baronnesa e deixou a faculdade de Direito, a casa e o emprego no salão de cabeleireiros em São Bernardo do Campo para se dedicar 24 horas por dia ao sonho de ser Anitta, "a musa das funkeiras".
Baronnesa participa das atividades da Morada da Liga, um casarão com estúdio profissional e piscina no bairro da Penha, na Zona Leste de São Paulo, totalmente dedicado a quem quer se profissionalizar para o mercado do funk. Dos 24 funkeiros, 20 dormem e acordam na casa que promove vivências de um mês de duração. Lá, todos assistem aulas de canto, dança, oficinas de música, postura no palco, audiovisual, manejo de redes sociais, produção cultural, entre outros. Por cotas, metade da turma deve ser mulher.
"A mais santa entre as piranhas"
"Anitta é a referência de todas nós, as minas do funk, ela é nosso espelho. Essa música e esse clipe que ela acabou de fazer [Vai Malandra], essa volta às origens, acrescenta muito pro nosso movimento", diz MC, sigla para mestre de cerimônias, Baronnesa. Ela explica: "as pessoas pensam que artista começa no funk e abandona porque o ritmo não é bom, que não é referência musical. Não! Isso é puro preconceito!", diz a cantora, autora dos versos "Xiu, não explana, que eu tenho que manter a minha fama. Sou moça de família, a mais santa entre as piranhas".
MC Baronnesa: "É hipocrisia essa classe alta criticar nosso comportamento no pancadão! Em balada sertaneja, por exemplo, todo mundo bebe, beija na boca, usa roupa curta e transa no final da noite! Tenho que fotografar?"
Aos olhos da cantora, o "som de preto, de favelado" passa pelo mesmo estigma que o samba viveu no passado, quando chegou a ser criminalizado e não era visto como manifestação cultural mas coisa de malandro. Neste ano, o funk foi alvo de um abaixo-assinado que solicitava ao Senado a proibição dos bailes. O pedido foi rejeitado mas funkeiros sabem que a tentativa não vai parar por aí.
"Tudo o que vem da perifa, da quebrada e de preto é ruim. Só muda quando a elite se apropria dessa cultura, a 'embranquece' e diz que é dono dela", analisa Rosa X, ex-Shirley Rosa Arantes, de 22 anos, que abandonou o primeiro nome da certidão de nascimento mas manteve o segundo para prestigiar a mãe, "uma guerreira", e acrescentou o X em homenagem ao ativista da luta por direitos civis dos negros norte-americanos Malcolm-X. "O rap e o hip hop só não são mais criminalizados porque os intelectuais e a indústria os assimilaram. O funk ainda não chegou nessa massa."
Enquanto muitos criticam as letras que falam de violência, Rosa X defende que o funk só registra a vida dos moradores das periferias. "A realidade está nas músicas". Baronnesa prefere rebater quem fala mal das roupas ou do jeito das mulheres dançarem. "Só vejo liberdade no funk. No baile posso agir como eu bem entender, sabe? Pra mim, é empoderamento assumir minha sexualidade, minha identidade, botar pra fora minha ironia pra me livrar das amarras da sociedade."
Imperatriz Furiosa de Baixa Renda: "As músicas da Beyoncé são vulgares e escrachadas, mas ninguém diz nada porque é em inglês e é pop. O funk não é só baixaria, temos o funk consciente que, assim como o rap, mostra as dificuldades de viver na favela"
Luana Ferreira, de 21 anos, que está na casa para aprender a ser produtora cultural, concorda: "a gente pode dançar até o chão e tomar a frente na escolha ou na recusa do cara que quer beijar. Já que não tem equilíbrio por aí, no baile a gente busca a igualdade."
Batidão das feministas
Entre um pancadão e outro, elas participam de rodas de conversa para conscientização sobre machismo, feminismo, LGBTfobia, drogas e política. Não por acaso, letras de funk que diminuem ou tiram sarro das mulheres não são bem vistas na Morada da Liga. "Sei que vende muito mas não tolero nem acho legal", acrescenta Jaqueline Santos Moura, ou melhor, Imperatriz Furiosa de Baixa Renda, como prefere ser chamada. "Uma coisa é cantar putaria e outra é expor a mulher. As letras de homens não nos empoderam, muitas delas nos marginalizam. Isso é machismo, e machismo é violência", diz Furiosa. "Precisamos de mais minas no funk para virar o jogo."
Ela sabe que um dos caminhos para mudar o cenário é cuidar dos negócios, atrás dos palcos. Na vivência da Morada da Liga, tanto Rosa X quanto Luana e Imperatriz Furiosa estão aprendendo a agenciar e produzir artistas, negociar shows e entender como o dinheiro gira na rolê funkeiro. Nesse mercado há diferentes arranjos de remuneração. Uma produtora cultural pode ter emprego fixo numa equipe ou até mesmo ser autônoma e receber porcentagem quando fecha um espetáculo. Há casos em que o profissional leva de 10% a até 40% da bilheteria ou pagamento bruto.
Lanchinho da tarde todo dia
"O funk é uma alternativa de trabalho importante para toda a periferia", diz, Baixa Renda, a Imperatriz Furiosa, que é vendedora de loja em shopping e possui um brechó de roupas voltadas para quem quer dançar até o chão. "É roupa vulgar, que eu gosto de usar porque vem do termo vulgo, de popular, de povo. É roupa curta e decotada que podemos usar porque o corpo é nosso e ninguém tem nada com isso", define.
Já Luana vende brigadeiros e artesanato desde os 16 anos, quando saiu de Caçapava para morar com o pai em São Paulo. Hoje vive com o namorado mas continua precisando de bicos, às vezes como modelo, para pagar as contas. Rosa X, por sua vez, vende acessórios de sua marca mas não é suficiente para se bancar. Ela é de Parelheiros, periferia do extremo Sul de São Paulo, e tem planos de cursar moda ou artes gráficas para cuidar da identidade visual dos MC's, cantores de rap, hip hop e dançarinos "marginais".
Fomentar a renda, descobrir talentos e levar sustentabilidade a eles com inclusão social é, de fato, o pano de fundo do projeto social Morada da Liga. A iniciativa surgiu do coletivo Liga do Funk que desde 2012 promove discussões sobre como o funk é capaz de mudar a realidade das comunidades. A casa é fruto do primeiro edital de Fomento da Periferia, que ofereceu subsídio da prefeitura de São Paulo de R$ 300 mil para, ao longo de dois anos, custear cursos e despesas como aluguel do imóvel, água, luz, internet e comida aos jovens aprendizes.
"Aliás eu gosto de deixar bem claro que aqui nós somos muito bem alimentados. Fazemos todas as refeições, inclusive o café da tarde. Coisa que muitas vezes falta na periferia. Eu me lembro poucas vezes de ter feito lanche da tarde", pontua MC Baronnesa. Ela, como verdadeira mestra de cerimônias da casa, conta que o local tem regras bastante definidas.
Beijinho no ombro lá é o nome de quarto
A morada dos funkeiros tem duas alas principais. Na primeira estão o estúdio, a sala de espera, os escritórios administrativos do projeto e a produtora Galáticos, da Liga do Funk. Aos fundo, fica o sobrado onde se hospedam os estudantes. Tudo é muito bem organizado, com direito a plaquinhas de identificação de cômodos.
Tem o quarto "Beijinho no Ombro", com suas beliches e armários que devem ser divididos entre três pessoas, a cozinha carinhosamente chamada de "Bandeco", referência às marmitas e bandejões, e o banheiro que é o "Lava Risco". Entre uma ala e outra, fica a piscina perfeita para gravar clipes e um espaço de convivência ideal para aulas de dança.
Uma família unida
"É na sala que a gente determina as obrigações e resolve os conflitos", conta Baronnesa. Dali surgiu, por exemplo, a ideia de ter um sino para chamar a todos os funkeiros para fazer as refeições conjuntas e o quadro com os horários das tarefas do dia, como limpar, fazer comida e manter os cômodos em ordem. "Toda manhã uma planilha e cada um pega uma coisa diferente na semana. Quem não sabe cozinhar, faz parceria com quem sabe", explica. Tudo é organizado em duplas.
"Trabalhamos o companheirismo", ressalta Baronnesa, deixando clara a importância da união do grupo dentro da Morada da Liga. "Já somos chamadas de vulgares, super sexualizadas, drogadas e toda a fama de bandido cai pra nós. Sabemos, na verdade, que devemos estar juntos como uma família."
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