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Mulherias

Conheça os artistas que transformam as periferias e "exercitam a revolução"

Flávia Martinelli

01/03/2018 04h00

Colaborou Stéfanni Mota, especial para o blog MULHERIAS

Na quebrada, muros e intervenções artísticas mandam todo tipo de recado: de denúncias a propostas políticas, de valorização do próprio bairro a soluções para a violência. Com tinta e spray, há quem questione o racismo, defenda as causas LGBT e feminista ou proteste contra o consumo de carne. No fundo a busca é por uma cidade mais humana, pacífica e inclusiva.

O blog MULHERIAS traz aqui um passeio pela arte provocativa e transformadora das periferias. Nos extremos de São Paulo, à margem dos museus e galerias, artistas movimentam ações de moradores e mostram seu papel de "artista-cidadão". "Aquele que na sua arte não revoluciona o mundo, mas também não compactua com a mediocridade que imbeciliza um povo desprovido de oportunidades", como define o poeta Sérgio Vaz, ícone cultural das periferias, no Manifesto da Antropofagia Periférica. "Um artista a serviço da comunidade, do país. Que armado da verdade, por si só exercita a revolução".

 

Entre os becos e vielas, as paredes pintadas gritam na Vila Brasilândia. O projeto do coletivo espanhol Boa Mistura transformou o espaço a partir da convivência com a comunidade. A intervenção visual impressiona pela simplicidade.

A ideia é do coletivo foi imergir no bairro e aprender sobre ele. "Nos murais, tentamos sempre ver a coisa pelo lado positivo, criativo", contam os artistas no curta-metragem Luz nas Vielas, que traz a experiências do projeto.

Pincéis, rolos, spray e muita tinta são instrumentos da transformação local que foram parar na mão dos moradores, em sua maioria crianças. Todas as obras foram feitas coletivamente.

Úteros gigantes nos muros são a marca de Carolina Teixeira, de 34 anos. "É uma reintegração de posse de um espaço onde muitas vezes somos violentadas: a rua é hostil às mulheres" explica Carolzinha Itzá, como é conhecida. Da periferia da  Zona Leste, sua arte passeou pelas ruas de São Paulo, carimbou cidades do nordeste até chegar ao México.

Variando entre a força de um grito e um abraço de acolhida, o projeto #ÚteroUrbe é o processo de criação de arte criado por ela.  "É o que eu chamo de residência artística anônima", diz Carolina, que conversa com outras mulheres sobre processo colaborativo de trazer à tona a memória do corpo, das vielas, das violências e resistências. Só depois do diálogo  a junção de ideias se transforma num grafitaço coletivo.

O trabalho de Carolzinha nasceu e se fundamenta no movimento cultural da periferia. A artista ocupa as fachadas da cidade com um questionamento silencioso sobre a opressão e violência machista contra as mulheres.

A arte de Mauro Neri, grafiteiro de 36 anos, saiu do Grajaú e se espalhou por toda a cidade de São Paulo para torná-lo um dos artistas de rua mais conhecidos na capital paulista. Sua assinatura são as casinhas amarelas e os jogos de palavras. O graffiti de Mauro é acessível e busca pela simplicidade atingir todos os públicos, até os menos familiarizados com a estética das ruas. "O graffiti é uma arte democrática que não escolhe quem vai tocar."

Mauro questiona como enxergamos a cidade. Em tempos onde as ruas pertencem aos automóveis e à produção, a mensagem que a tinta pinta no muro é simples: permitir-se ver o humano, o simples e aguçar o olhar para que a cidade seja realmente vista e que possamos escolher e participar mais da paisagem de São Paulo.

"Busco o olhar voltado para o ser humano e às percepções do ser humano sobre a verdade: a verdade que está na rua, a verdade que a gente precisa ver, a verdade que a gente precisa saber", diz Mauro. O artista usa em suas obras diferentes trocadilhos e conjugações do verbo ver. "O que a gente pode ver?", "O que a gente precisa ver?", "O que a gente quer/escolhe/autoriza ver?" e "O que a gente quer ver nos muros da cidade?" são perguntas espalhadas tanto nas periferias quanto no centro.

Há 500 anos, onde hoje vemos asfalto, casa, indústria ou escritório era natureza. Os muros de Embu das Artes pintados por Mirage, de 39 anos, retratam o povo indígena que ali habitava. Descendente de índios Pankararu, de Pernambuco, o artista viu na arte de rua "a possibilidade de grafitar pelas causas dos povos indígenas e mostrar às novas gerações quem somos e de onde viemos".


Promover a interação entre indivíduos e sociedade é o que moveu os coletivos casadalapa, Transverso e Paulestinos com o painel da exposição "Vidas em Obras. "Aqui caberia um poema" foi parar nos muros da Cracolândia, uma das regiões do centro que mais tem sofrido com propostas higienistas.

Grafiteira desde de 1996, Nene Surreal é uma das pioneiras da arte de rua em São Paulo. Ela sabe o que é matar um leão por dia e lidar com o racismo, mesmo que sutil, que acompanha como sombra as mulheres negras. Por isso, usou seu talento para transferir para os muros sua história e provocar a reflexão sobre questões raciais e feministas na periferia.

Se nas galerias de arte as mulheres negras são a representação do exótico, os murais de Nenê Surreal são  a leitura da mulher negra pela mulher negra. Suas obras simbolizam a cultura da diáspora africana historicamente apagada dos livros, dos museus e dos meios de comunicação.

O grafiteiro Raul Zito homenageia o universo místico e religioso das culturas de matriz africana e os seus desdobramentos na vida cotidiana. Seu trabalho segue a linha da fotografia, impressão, colagem. A  mistura da peça fotográfica com a tinta do graffiti cria dimensões realistas e torna a obra ainda mais original.

Zito também questiona um tema fora do padrão: o consumo excessivo e a indústria da carne no Brasil. Ele relaciona a carne com a agressividade humana. Mas garante que a ideia não é doutrinar ninguém ao vegetarianismo, mas provocar a inquietação e reflexão sobre um consumo consciente.

Bea Corradi é artista plástica autodidata e a figura da mulher aparece em seus trabalhos como um símbolo de resistência.

Os relatos e histórias de mulheres fortes, que ousaram enfrentar o sistema lutando pela igualdade de direitos, são temas que servem como fonte de inspiração da artista. O mural com a poeta Carolina de Jesus está na sala de leitura da Fundação Casa.

 

Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.