"Mãe-crecheira" da periferia é solução para falta de creche há 12 anos
Por Monise Cardoso, Stéfanni Mota (vídeo) e Leandro Silveira (fotos), especial para o blog MULHERIAS
A placa improvisada feita com papel sulfite plastificado colada no portão da casa na zona leste de São Paulo anuncia o serviço: "Cuido de crianças de 3 a 6 anos. Falar com Tia Jô". Jocedi Maria das Neves é mãe-crecheira há 12 anos e cumpre o papel de cuidar de crianças cujas mães não conseguiram uma vaga na creche e precisam trabalhar.
De acordo com a Secretaria Municipal de Educação, São Paulo fechou o ano de 2017 com um déficit de 44.094 vagas em creches
As mães-crecheiras também são solução para as mulheres que têm filhos matriculados, mas que penam para conciliar a vida profissional com a função materna – dupla insustentável para quem, das 24 horas do dia, dedica nove ao trabalho e até mais de quatro dentro do transporte público. Nestes casos, as crecheiras ficam responsáveis pela criança depois que ela é liberada da escola até o horário que mãe chega para buscar e também podem ser chamadas de "mães-olheiras"
As cuidadoras se veem no mesmo lugar das mães sem creche quando o assunto é amparo do Estado: sozinhas. Não existe nenhum tipo de regulamentação ou reconhecimento sobre o trabalho dessas mulheres que têm uma responsabilidade gigante nas comunidades periféricas de São Paulo.
A mãe-crecheira, no entanto, não é personagem exclusiva do Brasil. A diferença é que em países como Portugal e Colômbia a função faz parte de uma sólida rede de proteção assistida pelos Ministério da Saúde, Educação e da Assistência Social e Cultural. E, enquanto elas recebem treinamento do Estado, por aqui a rede de apoio é costurada pelas necessidades e pela força das próprias mulheres
Tia Jô, uma vida dedicada ao cuidar
É ajudando mães há 12 anos que Tia Jô ganha a vida. Hoje, prestes a completar 54 de vida, ela conta que desde a infância, em Pernambuco, já era responsável pela arrumação da casa, alimentação dos nove irmãos e ainda olhava os primos. "Meu pai dizia que eu fazia as coisas direitinho, era caprichosa, por isso, mesmo não sendo a filha mais velha, a responsabilidade de cuidar deles e da casa era minha."
Anos depois, uma de suas irmãs chega em São Paulo, grávida e sem condições de sustentar o filho. Dona Jô largou o emprego que tinha em uma fábrica de bolsas para se dedicar à criação do sobrinho. Desde então, passou a receber crianças em casa e trabalhar como mãe-crecheira. "Essa história dava um filme".
Tia Jô segue amparando aqueles que, depois da escolinha, ficariam mais da metade do dia sozinhos em casa esperando os pais retornarem do trabalho. Hoje, são sete crianças sob os cuidados experientes da mãe-crecheira que tem prática no belo e, muitas vezes, compulsório, ato de cuidar.
Preço na base da conversa de acordo com o bolso da mãe
A primeira turma de crianças chega às 7h da manhã. São três. Eles dormem mais um pouquinho e acordam para tomar café. O marido de Tia Jô é padeiro e faz questão de levar diferentes tipos de pães para os pequenos. Depois do café, por volta das 9h, é hora de encher as garrafinhas de água e subir para o pracinha do bairro para fazer exercícios e atividades ao ar livre.
Na volta para casa, a caixa de brinquedos e livros é liberada enquanto tia Jô vai pra cozinha preparar o almoço. O cardápio é simples, mas variado pra agradar o paladar das crianças. "Eles não gostam de comer a mesma coisa todo dia, mas comem tudo o que faço. Macarrão com molho e carne moída é o preferido. Ah, e aqui eles comem salada também. Teve uma que não comia nem pão quando chegou, hoje, se deixar, come até cenoura crua".
As despesas com alimentação são de dona Jô, embora algumas mães ajudem levando uma ou outra coisa, como frutas ou um pote de manteiga. A crecheira é quem se vira nos 30 para tirar os gastos do pouco que recebe por mês com o trabalho que faz. A mãe-crecheira não cobra um valor fixo de todas as mães, como ela diz, é na base da conversa, e cada uma dá o que pode, sendo o valor máximo recebido hoje de R$250 pelos trinta dias de cuidado.
Almoço pronto, é hora de receber a segunda leva de quatro crianças, aqueles que foram para a escola de manhã e chegam à casa da tia Jô para passar o restante do dia. Este é o momento em que os sete ficam juntos na pequena casa de três cômodos. Para almoçar, eles se espalham, os maiores sentam à mesa, outros puxam os banquinhos, sempre sobra um que senta no corredor do lado fora da casa, e assim a refeição é feita. A turma que chegou de manhã escova os dentes e espera a perua da creche buzinar.
É assim todos os dias, até a noite cair e a última mãe chegar para buscar o seu filho, por volta das 20h. Além das sete crianças que regularmente estão na casa da pernambucana, vez ou outra, ela cuida de mais duas cujas mães estão desempregadas e deixam os filhos para fazerem entrevistas de emprego. Pela diária, Jô cobra R$15. Nas férias, feriados e um dia de cada mês quando acontece a reunião pedagógica e não tem aula, a casa também fica cheia.
Perrengues de mãe-crecheira
Há dois anos, quando Jô ainda cuidava de bebês, se desdobrava para dar um auxílio ainda maior para todas as mães. Levava todos para a creche, para a escola, em endereços diferentes, e chegava na hora. "Nossa, de manhã a gente marchava naquele sol quente. E a tarde, nos temporais? Dava um medo!". Era ela que também frequentava as reuniões e acompanhava nas consultas médicas.
Sem poder abrir mão da renda, Jô também precisou se dividir em mil quando o esposo adoeceu e ficou internado, foi um dos períodos mais difíceis da carreira como crecheira. "Eu contava com a ajuda da minha afilhada, mas mesmo assim corri muito. Não cheguei a perder nenhuma mãe, elas foram muito bacanas e compreensivas comigo".
Mesmo desenvolvendo problemas de saúde pela profissão, Jô não se arrepende. "Eu quero continuar olhando até depois de eu me aposentar, sabia? Eu penso muito nisso. Não vou parar, só vou diminuir a quantidade. Eles são minha companhia".
Mãe-crecheira confidente
Nunca faltou diálogo entre a tia Jô e a criançada. Com os bebês, ela era sábia ao discernir choro de dor e choro de manha. "O de dor é mais sentido, né? Cai lagriminha, a gente sabe que tem algo errado", explica. Quanto ao choro de fome, Jô logo se adianta: "nunca teve, num deixo a fome chegar, não".
Já com os maiores a troca de ideias é constante e aberta. Tia Jô explica para os que ficam tristes com a falta da mãe que a ausência delas é necessária para eles poderem ter os brinquedos, as roupas e a comida na mesa. Para os que têm preguiça de fazer lição, Jô ensina que estudar é importante para o futuro. Sensível, não deixa passar um rosto fechado ou um olhar triste na volta da escola, percebe as mudanças de humor dos pequenos e tenta acalmá-los, conversa, ouve. "As mães me perguntam se o filho contou algo da escola, eu digo que sim, e elas se indignam porque eles não contaram nada dentro de casa".
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