Mais aceitas ou estigmatizadas? Como é ser sapatão na periferia
Com reportagem de Gabriela Rodrigues, especial para o blog MULHERIAS
Para além dos centros urbanos, das grandes paradas do Orgulho LGBT e do burburinho da rua Augusta em São Paulo, um dos pólos dessa comunidade, mulheres que amam mulheres existem e estão por todos os lugares. Nos becos, nas vielas, subindo e descendo morros, dentro do ônibus ou na fila do supermercado. Elas são irmãs, filhas, vizinhas, esposas. Parece óbvio. Mas toda lésbica sabe que a sociedade faz de tudo para torná-la invisível.
Desde sempre foi assim. Pesquisadores confirmam: há dificuldades até para se traçar a história do lesbianismo. Mesmo quando eram queimadas como bruxas na Idade Média, por falta de nome que as designassem, morriam pela acusação de serem "sodomitas". O termo foi usado primeiramente para definir sexo entre homens e, depois, como sinônimo de atos antinaturais e contrários à vontade de Deus. Diante disso, como fazer o registro de existências, movimentos e conquistas de algo que por séculos sequer teve nome?
Sapatões sempre foram ocultadas, silenciadas. A própria palavra sapatão, ainda hoje, é entendida como algo pejorativo, enquanto na comunidade lésbica é símbolo de resistência e identidade" (Vitória, criadora do sarau Existência LGBT)
Só na década de 1980, a invisibilidade lésbica passou a ser pauta em encontros mundiais de direitos da mulher e fez parte das causas do feminismo. "Ser sapatão é ser duas vezes estigmatizada: como mulher e como lésbica" é uma das mais famosas falas dos movimentos pela afirmação da homossexualidade feminina. Mas e se nessa somatória de exclusão entrar na conta o componente de classe econômica? No Brasil das desigualdades, a periferia traduz essa condição.
O Blog Mulherias ouviu três mulheres lésbicas de diferentes periferias e experiências em São Paulo. Se por um lado, a jovem Nayne, de 21 anos e filha de mães lésbicas, diz que é mais respeitada na favela do que no centro da cidade, por outro Natacha Dominguez, de 35 e mãe de uma menina de 12, conta que "tem tanta igreja em bairro periférico, que é bem difícil encontrar um casal de lésbicas de mãos dadas."
Há ainda quem busque saídas para lidar com a sensação de "ser a única pessoa a se sentir diferente no bairro", como diz a estudante de psicologia Vitória Helena, de 18 anos. Ela criou um sarau LGBT na biblioteca comunitária e nele encontrou acolhimento e amigos com histórias parecidas. "Minha escola não permitiu que eu fizesse o sarau lá. Mas fui em frente e com o grupo transformamos o sarau itinerante com numa proposta educativa."
Conheça as histórias de sapatonas orgulhosas de seu espaço no mundo, em sua cidade e seu bairro. Em comum, elas só querem ser felizes e andar tranquilamente na periferia onde nasceram.
"Na poesia encontrei a minha a (r)existência lésbica"
"Não vou sentar ao seu lado, tenho medo de que você tente me beijar", disse a professora à jovem Vitória Helena quando era secundarista numa escola pública da Zona Leste. "Eu me reconheci lésbica muito cedo, me sentia diferente e pouco acolhida naquele lugar," conta, hoje, a estudante de psicologia de 18 anos. Vitória ainda lembra dos ataques à sua aparência: "nem sempre fui muito feminina e isso era motivo de lesbofobia", recorda. Desde 2016, no entanto, a dor tem sido curada com poesia e música.
O primeiro Sarau Existência LGBT foi criado por ela e outros alunos que também sofriam preconceito e perseguição dentro da escola. Na biblioteca Solano Trindade, próxima ao colégio, o evento reuniu cerca de 100 pessoas. "Foi incrível. Todo mundo participou, contou vivências, tivemos músicas, peça de teatro e poesias. Todas vindas de artistas LGBTs. As histórias contadas ali….eram como se todos nós já tivéssemos passado por tudo aquilo, sabe?", diz, emocionada.
"Sempre amei poesia, arte, música… Morando na periferia, isso se tornou um refúgio para as coisas que eu passava", lembra a estudante. "Eu e uma amiga trans tentamos fazer o sarau na escola, montamos um cronograma, planejamos e tal, mas o diretor disse que nossas poesias afrontariam a religião."
Depois do primeiro evento na biblioteca, o sarau criou um grupo de estudos aberto à comunidade. A biblioteca, então, passou a receber cada vez mais pessoas, sempre aos domingos, para trocar ideias com a galera do Sarau Existência LGBT. "Já perdi a conta de quantos eventos fizemos, mas foram muitos. Sempre com participação popular, com as pessoas da periferia, da minha quebrada. Criamos nosso refúgio de poesia e arte". E hoje, o grupo faz visitas em escolas e outras bibliotecas das periferias da cidade.
"Só me assumi depois de casar duas vezes com homens"
Experimentar a própria aceitação costuma ser uma etapa difícil da vida de qualquer sapatão, mas passar pelo processo após os 30 anos, numa família preconceituosa e numa comunidade rodeada por igrejas tem suas peculiaridades. Natacha Dominguez, de 36 anos, acredita que a periferia é mais conservadora os bairros centrais. "A religião é algo forte aqui. É muito difícil ver lésbicas butch [que não performam feminilidade] ou casais de mulheres. Pelo contrário, homo e lesbofobia é algo aceito como normal", diz a cuidadora de idosos e moradora de Parelheiros, na Zona Sul de São Paulo.
Nesse cenário, Natacha passou uma vida com medo das consequências de se assumir. Ainda na adolescência, sua família foi a primeira pedra no caminho. "Meus parentes percebiam quando eu gostava de alguém e me punham pra fora de casa, inventando uma outra treta qualquer pra me corrigir." Ela conta que tinha só 13 anos quando foi expulsa pela primeira vez. Aos 20, acabou se casando. Com um homem.
Natacha vivou o que o movimento feminista e psicólogos chamam de "heterossexualidade compulsória": um comportamento condicionado por uma sociedade que impõe como aceitável e "normal" apenas a atração pelo sexo oposto. Como consequência, milhares de pessoas acabam seguindo aquilo que foram ensinadas ou obrigadas a aprender, negando ou rejeitando quem são.
Casei duas vezes com homens. As duas, logo depois de me apaixonar por mulheres. Depois de um tempo, me senti ainda mais insegura: preta, mãe e sapatão, parecia uma bizarrice sem fim"
Aos 29 anos, nove em casamentos heteroafetivos e com uma filhinha de cinco, Natacha decidiu parar de sofrer. "Conheci outras lésbicas e vi que eram mulheres que tinham família, amigos, crenças… Enfim, eram humanas como qualquer outra pessoa!"
Ter se assumido, mesmo de forma tardia, foi um alívio e trouxe novos desafios. "As lésbicas da minha idade, as que conheço, já estão casadas. As mais jovens nem sempre compreendem o papel da maternidade, ficam chateadas por não serem minha prioridade ou têm preconceito com mulheres com filhos. Acham que maternidade é contagiosa", ironiza. E logo completa, sem hesitar: "mesmo assim, é tudo muito melhor do que fingir o que eu não era".
"Sou filha de lésbicas, mas minha mãe biológica teve medo quando me assumi"
Nayne Corrêa, de 21 anos, cresceu vendo a dor do preconceito na própria família. Filha de um casal de lésbicas que hoje estão divorciadas, as mães tentaram esconder o relacionamento a sete chaves. "Elas não demonstravam afeto na minha frente. Descobri sozinha que eu tinha duas mães quando comecei a entender as coisas", conta a jovem que foi criada pela dupla dos 4 aos 14 anos. "Fui perseguida na escola. Só minha irmã mais velha entendia o que tava acontecendo."
Nayne compreende as dificuldades das mães em se assumirem. Ambas vinham de famílias de militares e muito religiosas. "Isso até reverberou em mim. Uma tia já me pegou pelo braço gritando para eu rezar e tirar de mim o espírito de sapatão da minha mãe." No bairro de Gopoúva, em Guarulhos, as mães também eram discriminadas e algumas amigas de Nayne se recusavam a brincar com ela.
Na adolescência, Nayne acreditou ser bissexual e passou por um momento de reclusão. Conta que sentia-se perdida, sofrendo preconceito por ser negra e sem se encaixar em padrões. Livros, cursos comunitários e amigos a reergueram. Com 17, assumiu ser sapatão. "Percebi que quando me dizia bissexual estava tentando diminuir preconceitos – talvez, como minha mãe, que se esforça diariamente para parecer heterossexual".
Ao contrário do que se imagina, a aceitação da mãe biológica, com quem vive até hoje, não veio de pronto. "Ela teve muito medo que eu passasse pelo ciclo de violência psicológica que ela passou. E não só. Não quis aceitar, por receio de eu apanhar na rua; foram mil preocupações." Nos últimos dois anos, a mãe lida melhor com a questão.
Parte da tranquilidade, curiosamente, vem da aceitação do bairro onde moram. "Hoje, acho que o cenário é muito mais tranquilo. Aqui na favela, posso andar de mãos dadas e exerço meu direito de amar livremente e sempre houve muito respeito a mim e às companheiras que tive", conta Nayne. Ela sente que na periferia olhares e julgamentos são bem menores inquisidores do que nos grandes centros.
Na periferia, acontece de duvidarem da minha sexualidade por acharem que ser sapatão é querer ser homem. Isso gera dúvidas, curiosidade"
Nayne acredita que ser uma lésbica feminina quebra o preconceito de que toda sapatão quer ser homem. Acha ainda que essa questão é fácil de lidar. "Na periferia, acho que ainda há chances de desconstruir esses equívocos. Nos locais mais nobres, onde todo mundo tem acesso à informação, noto o preconceito enraizado", opina
Observação: O Blog Mulherias tomou cuidado redobrado ao usar o termo "orientação sexual" em vez de "opção sexual" para designar o lesbianismo. Não há provas científicas de que a orientação sexual, seja heterossexual, homossexual ou de outra forma, seja uma escolha de livre arbítrio. "Somos orientadas conforme nossa atração sexual", explica a estudante Vitória.
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