A escola que revolucionou a educação de adultos na periferia
Como a diretora de escola Eda Luiz e suas alunas inspiradoras revolucionaram a educação de jovens e adultos na periferia de São Paulo e se tornaram referência internacional de ensino
Com reportagem de Juliana Avila Gritti, especial para o blog MULHERIAS
A educadora Eda Luiz tem sorriso largo e aberto assim como a porta do Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos (CIEJA) do Campo Limpo, na periferia da Zona Sul de São Paulo, onde ela é diretora há quase 20 anos. O bairro está entre os primeiros lugares no índice de famílias em situação de extrema pobreza (que recebem até um quarto de salário mínimo) mas a escola foi reconhecida pela UNESCO como referência mundial de Educação de Jovens e Adultos.
Eda criou um oásis educacional na região que contabiliza o terceiro maior número absoluto de mortes na cidade, sem contar mortes praticadas por policiais em confrontos. Aos 70 anos de idade, ela já deu palestras na França, país reconhecido por sua excelência em educação básica, na prestigiada Universidade de Paris. Quando o governo francês precisou de orientação sobre como lidar com a educação de refugiados e imigrantes não-alfabetizados, foi dona Eda uma das educadoras exemplares que foi dar dicas sobre pedagogia inclusiva.
"A mulher casou, teve filhos, viveu praticamente a vida inteira com um salário mínimo e fez com que os meninos e as meninas crescessem muito bem e realizassem uma porção de sonhos… E ela diz que vira gente quando aprende a assinar seu nome. Não é muito forte?" (Eda)
O resultado vai além da alfabetização. A diarista Cecília Santos, de 60 anos – 25 deles fora da escola –, por exemplo, conta que melhorou da depressão e da dor da traição do marido com aulas de História. A escola também deu novo horizonte à Maria Theresa, de 81 anos, que acaba de aprender a ler, escrever e dedilhar acordes do violão cor-de-rosa que sonhava tocar. Conheça mais sobre o trabalho revolucionário da educadora Eda e as mudanças nas vidas de suas alunas.
Como tudo começou…
Escola sem carteira, aulas em passeios e assembleias com a comunidade
Quando assumiu a escola do Campo Limpo, depois de uma longa carreira como professora no ensino primário e fundamental, dona Eda ficou incomodada. "Não fazia sentido oferecer a pessoas crescidas e com experiência da vida as mesmas técnicas usadas com crianças." A diretora chamou toda a equipe e criou uma grande articulação para ouvir pais, alunos e comunidade para saber como as pessoas interagiam entre si e com órgãos públicos e privados.
"Descobri que os alunos não queriam carteira, professor ou aulas de 45 minutos. Disseram que queriam sentar um na frente do outro e trocar experiências, tendo o professor como um guia incentivador e não uma figura hierárquica acima deles"
E assim foi feito. As carteiras passaram a ser para seis alunos, em uma espécie de roda. Foram abolidas disciplinas tradicionais como Matemática e artes. O aprendizado passou a ser por quatro áreas do conhecimento que comunicam, com módulos de cerca de um mês de duração.
No Cieja os alunos decidem o que estudar. Se querem aprender sobre reciclagem, por exemplo, ficam quatro ou cinco semanas debruçados sobre o tema – com possibilidade de passeios externos. Nas salas, o costume é ter dois professores juntos para atendimentos individualizados. As decisões são tomadas coletivamente em assembleias com os alunos, para que todos decidam até o rumo das verbas, distribuição de horários e administração do espaço.
A aluna de 81 anos e seu violão cor-de-rosa
No geral, escolas para jovens e adultos só têm cursos no período noturno. O CIEJA abre às 7 da manhã e fecha só dez da noite. Tem seis opções de horário de aulas, chamadas de módulos. Cada um tem duas horas e meia de aula e se o aluno faltar de manhã pode repor a aula em outro período.
Essa liberdade fez com que, aos 81 anos, Maria Thereza de Camargo Oliveira, perseverasse no sonho de se alfabetizar. "Na outra escola, noturna, eu chegava em casa com bandido esperando para me pegar". Hoje a perua escolar a busca em casa cedinho. "Eu queria entender as coisas. Porque você analfabeta não entende nada, é cega".
Metáfora de quem sabe o que fala. Há onze anos Thereza começou a enfrentar um problema de visão, a catarata, que limitou sua vida a cada dia. Quando conseguiu a cirurgia e recuperou a visão, há três anos, resolveu que era hora de estudar: agora vai ao CIEJA duas vezes por semana. Chega 7h e só vai embora depois da 16h30.
Desde o ano passado, entrou nas aulas de música e anda pela escola com seu violão rosa. Ela também faz teatro e participa de grupos de reforço. Seus planos, porém, vão longe: "eu pretendo fazer uma faculdade, se Deus me der saúde. A cabeça, o equilíbrio do corpo, tá boa".
"Larguei meu marido assim que entrei na escola. Não aguentava mais a cachaça dele"
Mulheres são maioria no CIEJA, representam 60% dos alunos e têm os melhores desempenhos no curso. Muitas vezes, porém, a mudança vai além dos estudos. "Quando começam a estudar, a primeira coisa que fazem as que sofrem violência é separar do marido", conta Eda.
Foi o que aconteceu com Maria Zilda da Silva Rocha – a Dezilda -, de 58 anos. Em 2008, assim que começou a frequentar as aulas, tomou coragem. "Não aguentava mais a cachaça dele." Ela também reuniu forças para parar de fumar, algo que tentava há muito tempo sem sucesso. E, por fim, conseguiu um emprego no próprio CIEJA.
A oportunidade surgiu quando Eda perguntou por que Dezilda parecia tão triste. Ela desabafou. Contou que não arranjava emprego por não saber ler e escrever e que tinha chegado a uma idade ruim para o mercado de trabalho. A professora perguntou se ela queria ser auxiliar no CIEJA e, assim, começou uma jornada de companheirismo e confiança entre as duas.
Hoje ela é uma das líderes da escola; organiza o espaço, ajuda nos eventos e auxilia os professores nas tarefas diárias. Afirma e reafirma que faz tudo com muito amor e não se imagina em outro lugar. "Eu fico tão feliz quando alguém me pede um socorro. Quero ficar aqui até morrer!
"Eu não sabia pegar um ônibus"
Maria Vitória Genaro, de 66 anos, foi caseira em sítios do interior de São Paulo e teve que adiar o seu sonho de estudar por conta do marido. Nascida na Paraíba, veio com ele para a capital paulista logo após o casamento, aos 20 anos. Foram décadas "implorando para estudar e ele não deixava". Só depois que o esposo a abandonou Maria Vitória voltou às aulas. Passou a trabalhar como babá e nos últimos três anos de CIEJA conta que aprendeu muito. "Eu não sabia pegar um ônibus, não sabia andar pra lugar nenhum, não sabia nem ler uma placa direito."
Ouça Maria Vitória:
"Agora posso tudo: estudar, criar quatro filhos, marido, trabalhar e até ter amigos e religião"
Maria Juliete de Souza Araújo tem 28 anos e ficou fora da escola desde os 15. "Cheguei com medo de falar errado na aula, me sentia enferrujada." Ela conta que não culpa seus quatro filhos por ter abandonado os estudos. "Não, isso, não. Faltava escola perto de casa e um horário que me permitisse conciliar a vida". Hoje, mesmo com as crianças com 12, 9, 7 e 4 anos, ela vai à aula todo dia de manhã. O marido embarcou na mesma onda e chega na escola à tarde. Ela sai e ele entra no CIEJA. "De manhã coloco dois filhos na escola, venho estudar, volto pra dar almoço, coloco outros dois na escola e vou trabalhar no posto de saúde que fica perto de casa." O marido alterna nessa rotina.
Maria Juliete garante que dá conta de tudo, "até dos amigos e da religião". Na escola, ela se surpreendeu com a diversidade de vivências dos colegas de classe. "Aqui no CIEJA tem pessoas de várias idades e experiências. Tem as mais quietas, as mais velhas, as que tem mais ou menos dificuldade para absorver as aulas." É confortável ser diferente. Curiosamente, ela virou a falante da sala, aquela que gosta de apresentar os trabalhos. "Eu era tímida, agora sou aquela puxa a linha."
"Fui levar meu filho na escola para ele largar as drogas e decidi ficar por ali"
Maria do Carmo Ferreira de Souza, de 68 anos, descobriu o CIEJA quando tentou levar o seu filho mais novo para estudar. "Eu queria tirar ele das drogas." Nenhuma outra escola aceitava um jovem nesse perfil, só o CIEJA. "Vi que era um lugar bom."
Babá e empregada doméstica, no ano passado ela torceu o pé e não pode mais voltar a trabalhar com serviços pesados. Também teve que parar de viajar diariamente para a casa da patroa do outro lado da cidade – ela saia às 4h30 do Jardim Macedônia para chegar às 7h em Alphaville, distantes mais de 35 km. Aproveitou a mudança de rotina para se aposentar e voltar a estudar, depois de 50 anos fora da escola.
Maria do Carmo sempre priorizou o trabalho desde que o marido morreu aos 38 anos, deixando os três filhos pequenos para ela cuidar. Ela ainda alimenta um sonho antigo de ser advogada. E de, como um exemplo a ser seguido, ver o filho caçula ao seu lado no CIEJA.
"Na escola superei uma traição e melhorei da depressão"
"A psicoterapeuta me disse: 'dona Cecília, a única coisa que a senhora pode fazer para se ajudar é voltar para a escola'. Eu pensava… Ai, meu Deus, eu não quero! Já com 60 anos, né? Mas lá dentro do meu íntimo eu pensava: tu não quer sarar? E, aí, fui lá", conta a diarista Cecília Batista dos Santos. "Depressão é triste, horrível. E aí eu obedeci."
Na época, dona Cecília já não podia mais trabalhar. As articulações de seu corpo sofriam com a artrose. O fim de um casamento que só durou dois meses também foi um duro golpe. "Ele bebia muito. Acho que queria ficar livre e arrumou uma pingunça lá. Quando eu descobri ele já estava com ela." Orgulhosa, ela conta que apesar de toda a decepção e amargura, ia à escola. "Me animou muito mesmo. E olha que eu pensava que estudo não era para mim."
Aos 12 anos, ela saiu de Itabuna na Bahia para morar no Jardim Ângela, em São Paulo. O bairro só tinha escola até o quarto ano do ensino fundamental. "Minha mãe tentou arranjar outra mas era longe e ela então me mandou trabalhar. Me habituei a ficar sem estudo."
Depois veio o casamento, duas filhas, separação, o trabalho árduo de diarista. "Chegava em casa toda moída, quebrada de trabalhar o dia inteiro todo dia". Ainda assim, estudou mais um ano de noite. Na hora de renovar matrícula para o sexto ano, um despejo que fez Cecília mudar de bairro e a doença de uma das filhas desmoronaram sua rotina outra vez. "Foram sete meses de tratamento da tuberculose da minha menina, era todo dia no hospital no começo. Ai, se passaram 25 anos sem escola."
As filhas criadas, estudadas e encaminhadas são seu orgulho. Até que veio a depressão. "A psicoterapeuta estava certa. No dia que me contaram que eu ia me formar no ensino médio, chorei. Nunca imaginei. E agora eu tô pensando até em fazer faculdade."
Café Terapêutico para mostrar as eficiências dos alunos especiais para a sociedade
O chamado Café Terapêutico, inspirado no programa da TV Cultura "Café Filosófico", é um dos maiores destaques dentro do CIEJA. Idealizado pelo professor Severino Batista, o Billy, surgiu em 2007 em rodas de conversa com pais, alunos e amigos de alunos com deficiência para que eles se conhecessem melhor e pudessem compartilhar histórias e dicas de cuidado. "O desafio foi olhar e enxergar as muitas eficiências dessas pessoas tão marcadas pelo o que não podem fazer. Nesse projeto elas apresentam isso aos pais, comunidade e sociedade em geral", conta o educador que expôs sua trajetória no último TedEX, do dia 20 de novembro de 2017.
Entre os mais de 1400 alunos do CIEJA, mais de 300 têm algum tipo de deficiência. O projeto do Café Terapêutico tomou grandes proporções e pelo menos 60 pessoas comparecem a cada encontro que acontece duas vezes por mês.
Toda a escola é toda adaptada, repleta de rampas de acesso e com professores conhecedores de braile e linguagem de sinais. Não existe distinção alguma entre os alunos. Respeito é palavra-chave. E todos são bem vindos.
"Os alunos saem daqui só a certificação do ensino básico, sabe? Aquela que se consegue ainda criança… Mas o que aconteceu na vida de alguém que aos 50 anos ainda não chegou ai? Violência, descaso, retirada de direitos… Tem muita história" (Eda)
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