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Minas da periferia levam prêmios por apps de educação e contra violência

Flávia Martinelli

08/11/2018 04h00

Por Gabriela Rodrigues e Stefanni Mota, especial para o Blog MULHERIAS

Hackathon é uma maratona de programação, dessas em que o pessoal da tecnologia, designers e geniozinhos da informática passaram horas ou dias a fio criando sistemas lógicos e organizando dados para desenvolver projetos para patrocinadores sedentos por inovações. Dessas competições saem protótipos de aplicativos, softwares ou criação de produtos. É comum em lugares como o Vale do Silício, na Califórnia, o celeiro tecnológico mundial que reúne empresas modernas e milionárias ávidas por lucros milionários. E é também um ambiente bastante masculino. Mas o que se viu no bairro de São Miguel Paulista, na periferia da Zona Leste de São Paulo, há cerca de três meses, foi bem diferente. Numa região ainda carente de questões básicas de sobrevivência e alto índice de vulnerabilidade, foram as mulheres periféricas que se destacaram.

Idealizado pelo Fundo Zona Leste Sustentável, o hackathon Inova ZL conectou  investidores e empreendedores e reuniu moradores  da periferia sensibilizados e engajados, para prototipar soluções socioambientais através do empreendedorismo e tecnologia. Foram mais de 60 participantes, dentre eles 23 mulheres, distribuídos em 19 times que trabalharam durante 48h  para desenvolver alternativas tecnológicas para as favelas.

"Foi a primeira vez que vimos um hackathon pensado por pessoas da periferia, para pessoas da periferia e com as pessoas da periferia", conta Jéssica Osko, integrante do coletivo Minas Programam, formado por mulheres, e que foi um dos três grupos vencedores da competição Inova ZL. Elas criaram o projeto "Violências Invisíveis", um aplicativo para a criação de petições para denunciar casos de violência, pressionar o poder público, transformar a realidade do local em que vivem. Os outros premiados com R$ 10 mil e participação de um ano de um processo de aceleração numa incubadora da Universidade de São Paulo (USP) também eram formados por garotas ou tinham uma mulher na dianteira. Não é pouca coisa.

Liderada por Aline Coimbra, estudante de administração pública de 21 anos, a equipe do Ajudaí foi outra premiadas. O grupo idealizou um projeto para conectar estudantes universitários e graduados e escolas públicas, onde os estudantes de graduação e alunos de escolas na periferia trocam experiência e conhecimento  através de processos de mentoria. "A ideia inicial do projeto é criar um programa que ajude alunos e professores a resolver dúvidas, numa plataforma digital, como um site, que servirá como intermediador entre escola e monitor", conta Aline.

O Violências Invisíveis, aplicativo para celular idealizado pela plataforma Change de petições online em colaboração com o Minas Programam, coletivo que discute a tecnologia e ensina programação com foco em mulheres negras e periféricas, foi outro projeto premiado. A ideia é levar o universo das petições online como ferramenta de denúncia para as mulheres periféricas, portadoras de alguma deficiência limitadora ou não-alfabetizadas de forma tão acessível e prática quanto enviar um áudio por WhatsApp, 

"Com a premiação, montaremos uma equipe com 7 mulheres, todas formadas em edições dos cursos do Minas Programam para criar um app a partir da coletividade feminina", conta Jéssica, a direita na foto (Foto de Gabriela Rodrigues)

Já o projeto Júpiter, liderado pelo pequeno Ezequiel Garcia, de 10 anos, contou a participação de sua mãe, Rosana Garcia. Juntos, eles desenvolveram com a equipe um projeto de brinquedos educativos feitos a partir de material reciclável, transformando lixo em tecnologia a partir dos conceitos de programação e robótica. Rosana acabou assumindo a liderança da equipe

Conheça as histórias inspiradoras das mulheres que "reprogramam" o mundo da tecnologia a partir do universo periférico.

Aplicativo acessível de petições online para mulheres periféricas

Pensando em desconstruir o senso comum de que os homens é que são os bons na tecnologia, em 2015 nasceu o Minas Programam, que realiza cursos anuais para compartilhar conhecimento técnico e político com mulheres interessadas em programar. "Nosso foco é nas mulheres negras e da periferia, que querem aprender a programar, queremos incluir estas mulheres na computação, na programação", conta Jéssica Osko, de 24 anos, e moradora do Butantã, em São Paulo.

"Acreditamos que o maior diferencial do projeto seja a inclusão dessas mulheres no universo da organização coletiva através de petições. Estamos em uma era em que se faz muito através da mobilização online, fornecer ferramentas acessíveis de organização coletiva também é uma forma de inclusão social", conclui Jéssica. (Foto de Gabriela Rodrigues)

O projeto realiza anualmente cursos que introduzem mulheres de diversas áreas ao universo dos códigos e da programação. Em 4 edições do curso, o projeto formou cerca de 200 mulheres. Na última edição surgiu a equipe de 7 mulheres que competiram no hackathon com o projeto  "Violências Invisíveis", aplicativo que auxilia mulheres a abrirem suas próprias petições online, com acompanhamento passo a passo durante todo o processo.

"As petições online são uma possibilidade de dar voz às violências invisíveis que as mulheres, sobretudo as pretas e pobres da periferia, sofrem diariamente. Nosso papel é torná-las acessível, por isso pensamos num app que ajude mulheres a coletar assinaturas online independentemente de seu nível de instrução", explica Jéssica.

As petições, diferente dos abaixo-assinados, são iniciativas individuais de coleta de assinaturas. Assim cada mulher periférica que identificar um problema (individual ou coletivo) pode recorrer a uma plataforma online para mobilizar pessoas em busca de uma solução. A finalidade do aplicativo é ajudar essas mulheres a criar petições para denunciar casos de violência, pressionar o poder público, transformar a realidade do local em que vivem. Para isso uma inteligência artificial auxilia a usuária da ferramenta em cada passo do processo. "O maior diferencial do Violências Invisíveis é a sua acessibilidade. Queremos construir um aplicativo acessível para a mulher com algum tipo de deficiência visual, a não-alfabetizada ou mesmo aquela que não tem familiaridade com ferramentas online", explica Jéssica.

Para isso, identificado o problema, a mulher que desejar iniciar uma petição pode recorrer ao app e ser guiada através de comandos de voz para destacar para quem aquela petição é direcionada, qual sua finalidade, quem pretende pressionar, quantas assinaturas pretende coletar, entre outras etapas do processo. "Caso não saiba ler ou tenha algum tipo de deficiência visual, basta tocar em um canto da tela para que a inteligência artificial explique o que acontece caso aquele botão seja clicado. No caso das não-alfabetizadas, a petição pode ser ditada por voz e o próprio app transforma a solicitação em texto". Além de criar suas próprias petições, o aplicativo facilita a vida de quem quer contribuir assinando petições já criadas, guiando a usuárias de forma acessível.

Uma plataforma para construir pontes entre a escola pública e a universidade

A estudante de Administração Pública, Aline da Silva Costa, de 21 anos, nunca havia se imaginado programando um website até participar do Inova ZL. Moradora de Ermelino Matarazzo, bairro da Zona Leste de São Paulo, Aline soube do hackathon através de um professor da faculdade. De cara não imaginou que sequer pudesse compreender o mundo dos códigos e telas, mas resolveu participar. "Cheguei ao hackathon meio tímida, pensando em um projeto voltado para a educação, não queria me embrenhar muito pela tecnologia", brinca a estudante, "mas fui recebida por um grupo de mediadores que me ajudaram a desenvolver o meu protótipo de site e foi ai que eu vi que a tecnologia tinha tudo a ver com a minha ideia".

"A proposta é colocar em contato jovens já formados que moram ou moraram próximos à escola do aluno que vai até o site buscar ajuda ou tirar uma dúvida", explica Aline que vê a aproximação das duas pontas como uma possibilidade de despertar sonhos em alunos do ensino médio. (Foto de Fundo Zona Leste Sustentável)

Aline liderou um grupo de 4 pessoas, em sua maioria mulheres, responsável por criar o "Ajudaí", projeto educacional para construir pontes entre os estudantes faculdade e universidades, com os alunos de escola pública. A ideia é criar uma plataforma de monitoria online, onde universitários ou já graduados tiram dúvidas e trocam conhecimento com alunos da rede pública de ensino, como uma espécie de reforço online, atendendo suas demandas acadêmicas específicas que nem sempre podem ser supridas em salas de aula super lotadas. O foco é agrupar jovens formados dispostos a trocar o trabalho voluntário por horas extracurriculares, no caso dos que ainda não se graduaram, e certificados, no caso dos já formados.

A proposta também é estimular alunos do ensino médio das escolas públicas a sonhar com o a possibilidade de ingressar no ensino superior, seja em uma universidade pública ou privada. "Quando adolescente, eu não via sentido na educação, hoje quero que nos ensinem a sonhar. E quando digo nós, me refiro aos jovens de periferia, quero os meus amigos da minha quebrada na faculdade comigo".  Atualmente, o projeto está sendo desenvolvido junto à incubadora da USP e no ano que vem será divulgado em escolas públicas e universidades da Zona Leste.

Transformar lixo em brinquedo também é de tecnologia

A engenheira Rosana Garcia, de 42 anos, foi ao hackathon da Inova ZL com o filho Ezequiel, de 10, para apresentar um projeto de aplicativo de realidade virtual em 3D, a ideia era levar a periferia para as telas de celulares dos grandes empresários e atrair os investimentos, que hoje se concentram nas regiões centrais, para a favela. Mas o menino também tinha o seu próprio plano de criar brinquedos a partir de materiais recicláveis. "Ele quer ser astronauta, sonha e é criativo. Vi o seu projeto e me encantei de cara, fui para a equipe dele para liderar e acabamos vencendo a maratona de programação", conta Rosana que mudou de equipe para desenvolver um novo projeto e dar suporte ao filho.

Rosana com o filho Ezequiel, que foi um dos vencedores do primeiro hackathon feito pela periferia e para a periferia. A engenheira tentou por 8 anos entrar na faculdade. Hoje, já formada, garante "se você me fala que é difícil, ai é que eu quero mesmo". (Foto de Fundo Zona Leste Sustentável)

A mudança de projetos levou Rosana a transformar lixo em tecnologia. Trabalhando juntos, mãe e filho desenvolveram um projeto de brinquedos de baixo custo e acessíveis, feitos a partir de material reciclável e que estimulam o fazer tecnológico desde à infância ao trabalhar conceitos de programação e robótica.

Além do prêmio de R$ 10 mil, mãe e filho agora tem seu projeto acelerado pela encubadora da USP Leste, onde terão aulas de programação, tecnologia e empreendedorismo, além de frequentar palestras e outros cursos. "Se você me fala que é difícil ai é que eu vou querer. Quero ser doutora, quero ir além", resume a engenheira que só aos 37 anos entrou na sala da faculdade de Engenharia Civil e enxergou 300 homens e sete mulheres. Cinco anos depois foi a única mulher do grupo feminino que se formou no curso.

"Pra quem dormia num colchão de folha de bananeira quando nasceu eu sonho bastante, né?", brinca. Cursando pós-graduação em empreendedorismo, Rosana é versátil: tem um escritório próprio de engenharia, uma loja de embalagens, é mãe e avó e dá aulas de reforço de matemática em uma escola pública. "Na faculdade tive muita dificuldade, então fui numa escola próxima da minha casa e pedi alguns livros de matemática emprestado. Voltei para devolver três anos depois. Já formada, fui dar aula de reforço para adolescentes porque minha graduação não serviria se mudasse somente a minha vida".

 

Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.