Casa ecológica em favela é exemplo de solução ambiental em SP
Com reportagem de Victória Durães, especial para o blog MULHERIAS
Em vez de muros, são bambus espaçados que margeiam a rua de terra batida do acesso principal da favela. Entre as cercas, é possível antever a horta. Há pés de couve, taioba, quiabo, todo tipo de temperos, legumes e umas abóboras grandonas. A trepadeira de flores cor-de-rosa enfeita o portão principal da casa de 100m2 que deixa à mostra estruturas de paredes feitas com barro, garrafas de vidro e erigidas com o suor dos moradores da favela Vila Nova Esperança, onde moram 600 famílias, no extremo oeste de São Paulo, já na divisa com o município de Taboão da Serra.
Ali funciona o espaço sustentável da comunidade, ou seja, um complexo composto por áreas de plantio e de convivência, com brinquedoteca, biblioteca e cozinha industrial. Tudo foi feito com técnicas de bioconstrução que, segundo o Ministério do Meio Ambiente, adota tecnologias de mínimo impacto ambiental por meio de técnicas de arquitetura adequadas ao clima, que valorizam o tratamento correto de resíduos, o uso de recursos matérias-primas locais e o aproveitamento dos conhecimentos das próprias pessoas da região. Saberes ancestrais de construção de pau-a-pique, também conhecida como taipa de mão, por exemplo, é bioconstrução.
"Na Bahia tem muita casa de barro, é difícil ver de madeira, papelão. Quando a pessoa não tem condição, ela constrói com a terra e foi isso o que fizemos aqui", relembra a moradora e líder comunitária Maria de Lourdes Andrade de Souza, mais conhecida como Dona Lia.
Baiana de Itaberaba, ela aprendeu a técnica quando criança, vendo a família e vizinhos construindo moradias. Para fazer um muro, ela conta que o primeiro passo é fazer a estrutura de hastes de madeiras na vertical, fixas no chão. Depois, deve-se entrelaçar o bambu na horizontal. Aos poucos, os quadrados vazios são preenchidos com barro.
"É um erro associar a bioconstrução à pobreza, e à falta de estética", diz a paisagista Angélica Brückner. "Precisamos transformar esse olhar, em nome do resgate da cultura e para reduzir a nossa produção de lixo no mundo."
Sim, é seguro!
O bioconstrutor formado em Edificações e Saneamento Ambiental Rodrigo Calisto, de 31 anos, foi voluntário técnico na obra e explica que a técnica "é segura, durável e uma possibilidade real em muitos casos de moradia na periferia, porém ela gera autonomia e não interessa para a indústria."
Especialista em perícia de avaliação de imóveis, ele lembra que já no ano de 1554 tínhamos em São Paulo o Pateo do Colégio, que foi construído pelos jesuítas em pau a pique. "Dá pra perceber que são técnicas utilizadas há séculos e que funcionam". A construção foi demolida em 1896, mas até hoje é possível ver uma parede da antiga edificação no jardim do Pateo, no centro da cidade.
O metro quadrado saiu por menos da metade do preço
De acordo com o Sindicato da Indústria da Construção Civil, o valor médio de um metro quadrado de obra erigido com materiais convencionais é de quase R$ 1.400 no Brasil. Em todo o complexo construído na Vila Nova Esperança, Lia acredita que gastou, ao longo de mais de dois anos, no máximo, R$ 600 por m2.
A verba veio por meio de doações e venda de marmitas e produtos da horta. Foram construídos: 15m² da biblioteca, 36m² da cozinha, 8m² da brinquedoteca e área de convivência interna e 35m² na área de convivência externa.
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"Por aqui, grandes construções jogam no lixo o pontalete [madeira utilizada para fazer escora em construções com materiais industrializados] e aproveitamos isso para fazer a estrutura da casa." Além da escolha de materiais, mão-de-obra influencia muito na conta. Para construir o centro comunitário, de 2015 até hoje Lia organizou mais de 50 mutirões. "Se for fazer as contas, mais de mil pessoas ajudaram a levantar esse espaço. Da comunidade mesmo tem umas 40 pessoas que sempre vem ajudar."
Como tudo começou
A"era verde" de Vila Nova Esperança tem início em 2003, com a chegada de Dona Lia na favela. Ela foi morar na comunidade com um filho depois do divórcio e passou a fazer mutirões de limpeza de entulho e lixo. "Como o caminhão da coleta passa só uma vez por semana, fomos atrás da TETO [ONG que atua em 19 países na construção de casas ecológicas em zonas periféricas] e conseguimos uma verba para construir um abrigo pro lixo, pra não ficar tudo espalhado na rua."
A favela, que ainda hoje lida com inúmeras dificuldades de infraestrutura, quase foi desocupada por ser acusada de provocar danos ao meio ambiente. "Estamos localizados numa área preservação ambiental, sabemos disso e temos consciência da nossa responsabilidade. Mas nós não sujamos esse lugar, pelo contrário, limpamos!"
A história de Vila Nova Esperança é antiga. O terreno era parte de uma fazenda. Na década de 1960, a proprietária o transformou em pequenas glebas que viraram moradia de famílias. O bairro foi crescendo mas ficou esquecido pelo poder público mesmo com a urbanização chegando nos arredores.
Primeiro, foram levados à região conjuntos habitacionais populares. Em meados de 1970 e 80, a política municipal para lidar com o déficit de moradia era criar aglomerados urbanos o mais distante possível do centro da cidade. Depois, já nas mãos de construtoras privadas, a região passou a ser alvo de condomínios de classe média com muros altos para os que queriam conciliar a vida no campo perto da metrópole. Em três lugares diferentes da área de proteção ambiental, sugiram lixões, a maioria eram aterros ilegais de detritos de construção civil.
Dona Lia conta que mesmo com todo esse movimento urbano no entorno, a comunidade de Vila Nova Esperança permaneceu ignorada. Água encanada, por exemplo, só chegou em 2005. Luz? Só em 2014… A favela foi alvo de despejo em 2011, quando o ônus por toda a poluição e devastação da mata recaiu sob os moradores. "A polícia veio aqui retirar todas as famílias mas fomos buscar nossos direitos e o juiz decidiu que temos direito de estar aqui."
Foi então que a líder comunitária pediu autorização para usar um terreno público ao lado da comunidade, que era um lixão. Dali nasceu a horta orgânica comunitária e até uma moeda local, a esperança, que passou a remunerar com legumes e verduras os trabalhadores que cuidavam do plantio. Construída em 2013, a horta ganhou um prêmio Câmara Municipal da Prefeitura de São Paulo.
A construção da biblioteca foi em 2016. "Como a nossa horta tem muitas plantas medicinais que podem evitar idas ao médico, então pensei que seria bom para todo mundo encontrar livros que explicassem como usar as ervas", explica Lia. E assim a construção começou com barro, madeira reciclada e garrafas de vidro.
A necessidade de cozinhar o excedente de produtos da horta, por sua vez, trouxe no ano seguinte a mobilização pela cozinha comunitária que oferece refeições. "O escoamento de resíduos vai direto para uma fossa de bananeira", orgulha-se Lia. Tecnicamente conhecida como canteiro bio-séptico, a fossa trata a água com o uso de comunidades de bactérias que ficam aprisionadas numa caixa impermeável. É necessário plantar árvores que gostem de muita água, como bananeiras, para tornar sistema de tratamento auto-regulável.
No ano passado, o sucesso da cozinha impulsionou a construção de áreas de convivência, com mesas e espaços para aulas e cursos. Entre eles, claro, os de bioconstrução. "Aprendo muito com a natureza. No meio ambiente tudo foi feito para todo mundo andar junto, cada um respeitando a posição do outro e fazendo o planeta girar", acredita Lia.
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