Escola pública da periferia combate violência com jornal de boas notícias
- Professora e alunos de até 10 anos criaram o "Semeadores da Paz", que só publica histórias positivas e inspiradoras, tem tiragem mensal de 3 mil exemplares e é escrito coletivamente por famílias e moradores de um bairro rural de Itajaí (SC)
- Com reportagem de Monise Cardoso, especial para o Blog MULHERIAS
- Foi em um dia de aula, durante uma roda de leitura, que um dos alunos da turma do 4º ano de Ensino fundamental se assustou com uma notícia sobre briga de trânsito. Na sala de aula, repleta de crianças entre nove e dez anos de idade, estava a professora Patrícia Regina Wanderlinde Alves, de 45 anos e 28 de docência.
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- O caso repercutiu na classe e ela viu ali uma oportunidade de discutir violência. "Propus que cada um desenhasse seu significado de paz. A maior parte dos resultados se relacionava à ausência de guerra", explica. Para os pequenos da Escola Básica Professora Judith Duarte de Oliveira, em Itajaí (SC), paz era não haver armas, mortes ou brigas. Esse olhar precisava ser mudado.
Os alunos não estavam errados. Porém, há um longo caminho que separa a paz dos atos de violência extrema como um assassinato, por exemplo. Foi pensando nas nuances do tema que a professora resolveu abordar o tema cultura de paz. Segundo a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), o termo define um conjunto de valores, atitudes, tradições, comportamentos e estilos de vida baseados em valores como liberdade, justiça, democracia e tolerância.
O projeto teve início em 2017 e os primeiros passos envolveram muita teoria, leitura de textos, estudo de letras de músicas e rodas de conversas com os alunos. "O primeiro texto que li para eles foi 'O Jovem e a Estrela do Mar', que fala sobre fazer a diferença dentro das suas possibilidades, ainda que não seja possível mudar o mundo todo", lembra. A intenção de Patrícia era fazer os alunos entenderem que, mesmo sendo crianças, são capazes de impactar o meio onde vivem.
A professora usou boa parte de suas aulas para discutir temas como Direitos Humanos, respeito às diferenças e também grandes momentos da história como o Apartheid (sistema político de segregação da população negra comandado pela população branca na África do Sul durante 1948 e 1994), e a implementação da lei Maria da Penha (que criminaliza os crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher).
A escola onde Patrícia leciona está localizada em Itaipava, um bairro periférico e rural de Itajaí, e recebe crianças que vivem em situação de vulnerabilidade social. Muitas vezes, é no colégio que elas fazem a primeira refeição do dia e sabe-se que a comunidade enfrenta dificuldades financeiras e de relacionamento em casa. "Um projeto que amplie os horizontes de jovens que vêm de uma realidade de violência e pobreza sobre o que é paz pode ser crucial para mudar o destino deles", defende Patrícia.
Esquadrão da paz
Após estudar mais sobre cultura de paz, os pequenos tiveram contato com as ideias de pacificadores como Martin Luther King Jr (1929 – 1968, pastor protestante e ativista político americano que se tornou um dos maiores líderes do movimento de direitos civis dos negros nos EUA), Anne Frank (1929 -1945, de origem judaica, ela foi vítima do holocausto durante a adolescência e seu diário registrou sua experiências na Segunda Guerra) e Mahatma Ghandi (1869-1948, pacifista, e maior defensor da não agressão como um meio de revolução).
O resultado dessas pesquisas foi transformado em livros e audiolivros, o segundo formato proposto pela própria turma para tornar a obra inclusiva. "Havia 11 alunos com deficiência na sala por isso toda a discussão passava por como incluir todos", conta.
Com o projeto, Patrícia foi vencedora na categoria regional do Prêmio Professores do Brasil, uma premiação que há 12 anos é promovida pelo MEC (Ministério da Educação e Cultura) e tem como meta prestigiar o trabalho de professores de escolas públicas da educação básica que contribuem para a melhoria dos processos de ensino e aprendizagem desenvolvidos nas salas de aula. Patrícia apresentou seu trabalho em uma conferência internacional na Armênia e em um evento sobre educação, ensino e aprendizagem na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.
O projeto foi batizado de "Juntos Pela Paz: é tempo de semear" e as turmas envolvidas nas atividades eram chamadas pela professora de esquadrão da paz. "Eles se tornaram responsáveis por replicar as ações e mensagens aprendidas", conta. E o comportamento dos jovens realmente mudou."
As crianças passaram a intervir nos casos de desrespeito na fila do ônibus escolar, denunciavam casos de brigas entre os alunos, e por entender que paz também é sobre respeito ao meio em que vivem, passaram a sinalizar sobre torneiras abertas e lixo fora do lugar.
No ano passado, o projeto cresceu e virou o "Semeadores da Paz", um jornal de doze páginas que pública apenas boas notícias.
Hoje em dia os veículos só noticiam coisas ruins, isso faz os jovens naturalizarem a violência, meu sonho era poder mostrar que tem gente boa por aí", diz a professora
Graças ao sonho e à garra de Patrícia, que bateu de porta em porta nos comércios da região, o circular tem patrocínio de 20 empresários e uma tiragem de três mil exemplares por mês. O jornal é escrito coletivamente por todos os alunos da escola e também por familiares, que passaram a estar mais presente nas reuniões e atividades desenvolvidas no ambiente escolar.
Voluntários da comunidade também se dispõem a escrever suas histórias no jornal. É o caso de um empresário do bairro que já foi morador de rua e de um ex-aluno que perdeu a perna em um acidente de trabalho e refez sua vida. O jornal também tem uma sessão focada em orientar os pais a como estudar com os filhos – escrita pelos próprios pais. Há ainda o espaço sobre qualidade de vida, histórias inspiradoras e divulgação de concursos e oportunidades para os estudantes.
Militarizar é solução?
Para a professora, evitar tragédias como a ocorrida na Escola Estadual Raul Brasil, de Suzano (SP), que foi palco de uma chacina no dia 13 de março, é responsabilidade de todos: estado, professores, famílias e sociedade em geral. "É necessário políticas públicas que deem alternativas para os jovens, que amparem as famílias e que tornem a escola um ambiente atrativo. A educação integral precisa ser repensada, não basta deixar o aluno horas na escola, jogado. O tempo passado ali deve ser preenchido com atividades que façam sentido pra vida dele" analisa.
Patrícia tem muito claro qual é o seu papel na vida dos alunos:
Não posso modificar a vida do estudante, mas posso tentar fazer com que ele mude o olhar sobre a própria vida, posso deixar uma marca fundamental que é fazer aquele sujeito saber defender seus direitos e reivindicar as suas ideias."
Há propostas do Ministério da Educação para militarizar o ensino na Raul Brasil e em outras escolas. O modelo que compartilha a gestão entre civis e militares é aposta do governo Jair Bolsonaro para combater a violência nas escolas. Patrícia, que vive a realidade da educação no país todos os dias, defende que medidas radicais podem não ser a melhor solução. É preciso equilíbrio para chegar a um modelo de ensino que contribua para que os alunos se tornem sujeitos transformadores de suas histórias.
"A escola é movimento, qualquer tentativa de encaixar crianças em caixas padronizadoras de comportamento têm grandes chances de surtir efeito contrário ou efeito nenhum. Além disso, essa proposta dificulta a percepção do professor sobre a subjetividade dos estudantes. Como vou identificar um pedido de socorro embutido em determinado comportamento se sou eu quem define como aquele aluno deve falar, agir e se portar? Respeito e limites são necessários, claro. Mas precisamos dar espaço para a fala dos alunos, para que eles construam o diferente", defende.
Para saber mais:
O trabalho e a metodologia do projeto "Juntos Pela Paz: é tempo de semear" é recomendado pelo MEC e pode ser replicado por professores em todo o Brasil.
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