Carmen, mãe de Preta, líderes de sem-teto: por que nos querem presas
Carmen Silva comanda um dos maiores movimentos organizados de moradia urbana do Brasil, o Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC), de São Paulo. Ela teve a prisão provisória decretada na semana passada, junto com os filhos Sidney Silva e Preta Ferreira, que também fazem parte do movimento. Os irmãos foram detidos –juntamente com outra militante e uma líder de outra organização de mesmo foco –e seguem em busca de habeas corpus para se defender em liberdade.
Os advogados de Carmen dizem aguardar o acesso ao inquérito investigativo para que ela apresente para esclarecimentos. Ela concedeu algumas entrevistas a Universa, todas há cerca de seis meses. Na época, respondia a um outro processo com acusações semelhantes às de agora. Foi inocentada. Trechos das conversas estão publicados aqui.
Veja ainda a história dessa retirante baiana, que chegou a morar na rua em São Paulo e hoje está à frente de cinco ocupações. O MSTC, do qual é presidente, conta com 2 mil membros que já foram contemplados com casa própria e outros 5 mil associados. Juntos, todos fazem parte da Frente de Luta por Moradia, que reúne outros nove movimentos, e ao todo, se organiza em quase 30 mil pessoas.
Outra saga nordestina
Poderia ser mais uma história severina de moradora de rua: cansada de ser espancada por mais de uma década pelo marido alcoólatra e ciumento, mulher negra nordestina deixa os oito filhos com parentes e vai para São Paulo ganhar a vida. O sonho é trazer suas crianças para a metrópole, mas ela se vê desamparada, sem sequer ter lugar para morar.
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O roteiro trágico e previsível, no entanto, teve uma virada quando Carmen Silva Ferreira participou da reunião de um grupo de defesa do direito à moradia. "Fui no encontro de um Fórum de Cortiços por insistência de uma senhora que conheci num albergue. Eu trabalhava de dia e ia dormir lá. Estava em situação de rua, como ela", diz Carmen. Era 1996 e Carmen falava que "que aquele negócio de ocupação era tudo besteira e mentira".
Mas a migrante, vinda da Cidade Baixa de Salvador aos 35 anos, viu gente como ela naquela reunião: mulheres pretas, mães solo, trabalhadores que tinham que escolher entre comer ou morar. "Eram famílias inteiras mostrando as cartas de ordem de despejo, contando que viviam em beira de córrego e lugar com risco de morte. Era todo mundo arrebentado como eu, sem saída."
Enquanto isso, o centro velho de São Paulo estava despovoado, com centenas de edifícios abandonados e quase nenhuma política pública de moradia voltada para a população de baixa renda. "Por que o trabalhador não podia morar ali no centro, ué? Existiam centenas de prédios vazios e proprietários que tinham mais de 200 imóveis que não davam conta de cuidar e pagar imposto. Isso, fora os edifícios que eram do Estado por causa das dívidas que superavam os valores dos imóveis."
São Paulo possui 1.385 imóveis ociosos, que estão abandonados, sem função social, subtilizados ou terrenos sem edificações, de acordo com o último Plano Municipal de Habitação, de 2016. O déficit habitacional é de 358 mil novas moradias e a cidade ainda tem outros 830 mil domicílios localizados em assentamentos precários nas margens de córregos, palafitas e construídos por madeiras, por exemplo, que necessitam de regularização e melhorias.
Hoje, 23 anos depois da primeira reunião para discutir o direito à moradia, garantido pela Constituição de 1988, Carmen lamenta ser ainda chamada de "invasora ou vândala" por parte da sociedade. Aos 59 anos, a líder orgulha-se de ser a "Dona Carmen, entre autoridades, artistas, jornalistas independentes, cartórios de registro de imóveis e até policiais."
Na semana passada, ela recebeu ordem de prisão temporária em operação de buscas e apreensões em endereços de 17 dirigentes de diferentes movimentos de moradia. Todos, de acordo com a polícia, são suspeitos de associação criminosa e extorsão, por cobrarem "aluguéis" entre R$ 200 e R$ 400 nas ocupações que coordenam.
A investigação diz respeito à tragédia ocorrida no dia 1º de maio de 2018, quando o edifício Wilton Paes de Almeida, ocupado por sem-tetos, desabou depois de um incêndio que deixou nove mortos. O coordenador do prédio, Ananias Pereira dos Santos, alvo de mandado de prisão ainda não cumprido, comandava a ocupação no Wilton Paes, que, segundo Carmen, nada tem a ver com o seu movimento. "É uma arbitrariedade da justiça", diz o advogado de defesa do MSTC, Ariel de Castro.
Carmen foi inocentada no início deste ano em outro processo baseado em acusações semelhantes. Na ocasião, o juiz Marcos Vieira de Morais, da 26ª Vara Criminal de São Paulo, afirmou ausência de provas por parte dos acusadores e baseou o veredito na apresentação de notas fiscais e atas que a líder do movimento encaminhou. Segundo a sentença, elas comprovavam prestações de contas que colaboraram com a manutenção e restauro das ocupações. "A defesa anexou aos autos notas fiscais e atas de assembleias demonstrando a destinação das contribuições individuais que cada família deveria pagar para suportar as despesas mensais do edifício", escreveu o juiz na decisão.
Carmen aguarda o desenrolar do processo atual. Em uma entrevista no Departamento Estadual de Investigações Criminais (DEIC), o delegado André Figueiredo, responsável pelo inquérito, explicou que as prisões foram requisitadas pelo Ministério Público, e o juiz plantonista Marco Antônio Vargas, da 26ª Vara Criminal de São Paulo, entendeu que as detenções seriam necessárias.
Na porta da delegacia onde Preta e Sidney se apresentaram e foram presos, manifestações ocorreram ao longo de toda a semana. Nas redes sociais, o apoio de famosos se intensifica. Já se manifestaram sobre o caso dezenas de artistas, tais como Caetano Veloso, Criolo, Mariana Aydar, Marcelo Janeci, Cleo Pires, Duda Beat, Leticia Letrux, Maria Gadú, Ana Cañas, Lua Leça, Spartakus, Mel Lisboa, Jean Wyllys, Mônica Benício, Chico César, Emicida, Bruno Gagliasso, Clara Averbuck, Maria Casadevall, Otto, Erica Malunguinho, Paulo Miklos, Preta Rara, Fioti, Karina Buhr, Bia Ferreira, Doralyce e Monique Evelle.
Mumunhas do mercado
Carmen conhece o submundo do mercado imobiliário paulistano como poucos. Aprendeu a levantar o histórico de edifícios largados à fedentina com dívidas de IPTU que superam o valor dos imóveis. Descobriu o que dizem as papeladas que comprovam o abandono de prédios públicos.
"Já tiramos mais de 50 toneladas de lixo em uma única ocupação", lembra, ao falar do antigo prédio do INSS na avenida Nove de Julho, há dois anos ocupado novamente. "Faço o serviço que a prefeitura não faz. Não só identifico imóveis sem função social como os transformo em moradia popular saudável e centro cultural para a cidade."
Foi a terceira vez que o local foi ocupado. A primeira foi em 1997 e o edifício estava abandonado havia 20 anos. Foram refeitas as instalações elétricas e hoje o foco de cuidado é a hidráulica. Há laudos de segurança e vistoria do local, além da brigada de incêndio treinada. Vivem no prédio 123 famílias, cerca de 500 pessoas, entre 66 crianças, que contam com cursinho pré-vestibular, biblioteca, brinquedoteca, aula de música, terapia, dentista e visitas regulares de médicos de família e campanhas de vacinação própria.
Aqui, um pouco de sua trajetória, em vídeo do canal Mídia Ninja que a reportagem do UOL acompanhou na gravação:
O edifício já sediou três bienais de arquitetura: Amsterdã, São Paulo, Veneza e este ano terá a de Chicago. Um dos moradores foi eleito para o Conselho Tutelar da região. A professora e pesquisadora da Unesp, Cássia Felet, fez uma tese de mestrado que defende que a saúde mental das crianças da ocupação é melhor que a da média das crianças da cidade de São Paulo.
Carmen também se aprofundou na dinâmica de incorporadoras, milionários ou fundos de investimentos que lucram com a demolição ou com o abandono dos prédios do centro. "Sem gastar um tostão, eles aguardam incentivos fiscais e têm acesso privilegiado a projetos públicos de revitalização ou requalificação. O mercado imobiliário aquece e lucros de mais de 1000% borbulham nesses empreendimentos onde pobre não entra", diz ela.
Ela enxerga a falta de moradia para pobres "como uma continuidade urbana do regime escravista". "Abolição nunca existiu. Foi negado o acesso à moradia e à terra aos ex-escravizados. Também aconteceu com os índios e acontece hoje com todos os excluídos desse sistema que não quer perder sua mão-de-obra barata", diz. E completa, com uma risada solta e sem meias-palavras: "O que querem de nós? Que a gente se contente com fome e favela? É ruim, hein!".
Na esfera da administração pública, ela foi coordenadora do Conselho Participativo da região da Sé na cidade por dois biênios e hoje é conselheira municipal e estadual de Habitação e das políticas públicas para mulheres. Ainda coordena o conselho de gestão de duas quadras que ficam bem o meio da Cracolândia.
Em tempo: Carmen trouxe seus filhos para São Paulo ainda nos anos de 1990. Entre eles, Preta Ferreira e Sidney que seguem presos. Em São Paulo, além liderar o movimento de moradia, fez carreira por 20 anos na mesma empresa de corretagem de seguros. Foi seu primeiro emprego na cidade e ela segue como prestadora de serviços do empresário. Palestrante em cursos de arquitetura e urbanismo, também é atriz. Interpretou a si mesma no filme "Era o Hotel Cambridge", de Eliane Caffé, que ficou 20 semanas em cartaz, foi assistido por mais de 30 mil espectadores.
Trailler oficial do filme em que Carmen interpretou a si mesma:
Abaixo, clipe de Preta Ferreira, que é cantora, atriz, publicitária e articuladora cultural:
A primeira ocupação hoje é referência cultural
Foi em em 1997 que Carmen participou da primeira ocupação ao lado de outras duas mil pessoas, no imponente prédio público do INSS no centro de São Paulo. O local estava imundo e sem utilidade havia 21 anos. Na época, foi considerada a maior ocupação da cidade. "Foi um estardalhaço. A imprensa nos chamava de vândalos, nem nos ouviam."
Mas Carmen passou a ter CEP e comprovante de residência, ainda que provisório. "Faz muita diferença! Sem endereço você não é nada. Não consegue abrir conta no banco, mandar currículo, fazer uma prestação de geladeira, nada." Sem a angústia de ter de decidir entre pagar o aluguel ou colocar comida no prato, é possível viver para além da sobrevivência. "Eu me lembro do horror que foi morar de favor. Quando cheguei, fiquei quase um ano procurando emprego. Quando arrumei, tava com tanta dívida que não dei conta nem do aluguei da pensãozinha do Pari. Quando vi, eu estava em situação de rua", conta a líder que sempre ouve histórias parecidas nas ocupações.
"Me querem presa porque sou muitos"
Carmem lembra da vergonha, solidão e desespero de dormir ao relento. Como muitos, ela escondeu a condição da família porque não queria "retornar mais derrotada do que saí". Na rua, descobriu que existia albergue e lá encontrou todo tipo de gente. "Gente boa e ruim. O que me salvou foi ter foco: eu tinha que buscar meus filhos. Aprendi também a outra lição importante: sozinho ninguém é ninguém."
Foi no movimento por moradia que a Carmen individualista morreu. "Nunca mais pensei no meu emprego, minha casa, na minha vida e no eu, eu eu… Reaprendi a viver com o foco no coletivo. Sou muitos. Por isso me querem presa. Eu e todos que estão comigo."
A ocupação que virou projeto de moradia
Hoje, Carmen divide as contas entre cinco familiares. Eles pagam um aluguel de R$ 1800 num apartamento no centro. "Já não tenho mais necessidade de morar em ocupação e tirar lugar de quem precisa", diz ela. Ela aguarda financiamento de uma moradia própria no antigo Hotel Cambridge, um dos prédios que ocupou e viveu em condições precárias por quatro anos.
Em 2015, o projeto de moradia feito pelos ocupantes com assessoria técnica da ONG Peabiru venceu o edital de chamamento do Programa Minha Casa, Minha Vida. O hotel vai virar moradia popular a ser financiada em banco, com escritura, documento habite-se e tudo regularizado pela prefeitura para 121 famílias que ocuparão os antigos quartos de 27,5 m² e 55m².
O sonho da casa própria, a ser realizado daqui a um ano de reformas (que eles chamam de retrofit, ou seja uma readequação completa), é resultado coletivo de centenas de embates nem sempre amigáveis com o poder público, incluindo reintegrações de posse com policiais e bombas de gás de pimenta e lacrimogênio, e preconceito da sociedade.
Não é fácil lidar com o povo nas ocupas
Carmen é famosa por ser durona em todos esses espaços. "Tenho que ser firme mesmo. Muita gente depende de mim." Acontece de tudo numa ocupação. "Teve um que quis usar o espaço pra droga e foi corrido do movimento, outra se dizia funcionária da prefeitura e queria mesmo é guardar cigarro de contrabando no prédio."
Existe um coordenador para cada andar do edifico e essa pessoa precisa até intermediar briga boba de vizinho. "Sabe por que eu sou grossa muitas vezes? Porque esse meu ouvido aqui é surdo pra fofoca. É tanta gente que eu esbarro que conheço as manhas e os oportunismos de uma pessoa. Tem de tudo nesse mundão. Mas aqui ter regra é essencial. Lá fora, podem fazer o que quiser mas dentro de ocupação não! Aqui homem não bate em mulher, criança tem que estudar e não fica sozinha em casa, não tem barulho depois das 22 horas e limpeza é assunto de todos", delibera, serena, mas com sobrancelhas arqueadas.
"Jamais imaginei que uma mulher como eu, que chegou aqui estropiada, destruída de corpo e alma, estaria lutando pelo direito à moradia de tanta gente." Gente com história severina como a dela: 60% das ocupações sob os olhos – sempre maquiados – de Carmen abrigam mães solteiras. O movimento, por sua vez, conta com 80% de força feminina, inclusive despontando como lideranças. É a tal da vida que, como no poema "Morte e Vida Severina" do nordestino João Cabral de Neto, "nela mesma, teimosamente, se fabrica".
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