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Mesa, arte e afeto: almoço na Ocupação 9 de Julho dá lição de amor a SP

Flávia Martinelli

23/08/2019 04h00

Cozinha Ocupação 9 de Julho

Moradores e apoiadores do movimento de moradia transformaram a cozinha coletiva numa verdadeira incubadora de projetos de cultura, educação, trabalho, renda e de soluções afetuosas para construção de uma cidade mais diversa, solidária e menos desigual (Foto: reprodução Facebook)

 

Ela é sempre o coração da casa. Não seria diferente na cozinha coletiva da Ocupação Nove de Julho, no centro de São Paulo. Há dois anos e 10 meses, o edifício é lar de 122 famílias. Do prédio que pertenceu ao INSS, desabitado por mais de três décadas, foram retiradas, pela própria comunidade que hoje o ocupa, mais de 15 toneladas de lixo e entulho. Além dos 11 andares usados como moradia, há uma área comum que abriga duas cozinhas e refeitórios com mesas forradas por toalhas de chita. E é ali onde tudo pulsa.

De oficinas de culinária à organização de projetos culturais, shows, mobilizações por direitos e gestão participativa do espaço com voluntários e moradores, dezenas de atividades e eventos nasceram em meio ao cheiro do café coado no 3º andar, onde fica a cozinha e o acesso do prédio ao pátio principal da ocupação. E será dali mesmo, entre as panelas areadas e os dois fogões industriais de bocas grandonas, que sairão no domingo (25) cerca de 800 pratos fartos e perfumados de maniçoba paraense, em mais uma edição do Almoço de Domingo, projeto que mensalmente abre as portas da Ocupação 9 de Julho para toda a cidade.

Almoços começaram com 40 pessoas e em julho mais de 800 pratos foram vendidos (Foto: reprodução Facebook)

"É sempre muito trabalho e muita animação. Pensa comigo: faz pouco mais dois anos que a cozinha foi montada e começaram as oficinas de culinária. Vieram os almoços para umas 40 pessoas e, agora, estamos pensando até em plano de negócio", diz a garçonete Maria da Conceição de Oliveira, de 33 anos, moradora da ocupação que participa da equipe da cozinha. Conce, como é conhecida, olha para o horizonte enquanto conta que, em um futuro próximo, deseja ser fornecedora de produtos para o patrão no restaurante onde trabalha há mais de uma década.

"É sonho, né? Tive aula de fermentação aqui com um chef que ensinou a fazer conserva de chucrute, com o repolho. Meu patrão paga uma fortuna por um vidrinho do tamanho daqueles de palmito por esse prato alemão. Estou aqui pensando… Acho que vai dar certo, sim", explica, pausadamente, e logo volta a falar apressada dos preparativos do domingo. "Além de trabalhar na cozinha, para o prato de maniçoba, vou cuidar da venda na barraca de bolo da minha amiga Sheila que também mora aqui. Tudo isso gera renda extra e é um aprendizado que ninguém nunca vai me tirar."

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Espécie de feijoada indígena com carne de porco e bovina (ou em versão vegana com jaca e legumes), a maniçoba tem como principal ingrediente a maniva, folha moída da mandioca-brava que passa até quase uma semana em cozimento para perder a toxicidade. O capricho extremo, vindo direto do Pará, vai ser servido a quem se dispõe a alimentar não apenas o corpo mas experimentar, e com todos os sentidos, o ritmo da ocupação que é uma das mais ativas da cidade. A programação inclui um dia inteiro de atividades culturais (veja flyer abaixo).

No Almoço de Domingo, haverá também barracas de churrasco, acarajé, pastel, brigadeiros, hambúrguer, fondue e cachorro-quente. Tudo feito por moradores. Muitos já estão engajados no Empoderacoletivo, projeto que nasceu na cozinha da ocupação e começou a oferecer pratos sob encomenda para eventos, como quiches francesas, o que o mercado corporativo gosta de chamar de catering gastronômico. "Muito chique, né?", pontua Conce, orgulhosa. 

Um núcleo de venda de produtos orientados pelos princípios da economia solidária também acaba de se esboçar no amplo pátio da ocupação, com a oferta de camisetas, objetos de artesanato, bijuterias e até vestidos e bonecas afro produzidas por empreendedoras da periferia. Geração de trabalho e renda tem sido mais um alicerce da ocupação 9 de Julho.

Conce com a amiga Sheila na barraca de bolos (Foto: acervo pessoal)

Outro pilar, já consolidado, é o incentivo à cultura. Todo Almoço de Domingo conta com shows, espetáculos de dança, de teatro, exposições e o que mais a ampla rede de artistas colaboradores inventar. "A cozinha da ocupação nasceu do encontro entre moradores e artistas. Em 2017, foi realizado um leilão independente de obras de arte para fomentar projetos e ações contra o fim do Ministério da Cultura, promovido pelo governo de Michel Temer. Desse leilão, fizemos mais de 40 atividades e uma delas foi o investimento de R$ 10 mil na cozinha da ocupação", lembra o fotógrafo Edouard Fraipont, um dos artistas da rede. 

Cena de show na quadra da ocupação (Foto: reprodução Facebook)

Cerca de 20 apoiadores, entre artistas e profissionais da área da cultura, acompanharam a compra de bancadas, geladeira, utensílios e foram atrás de doações de chefes de cozinha e restaurantes. "Mas o ganho principal foi a construção conjunta do projeto da cozinha com os moradores e as pessoas de fora da ocupação", diz a artista visual Cacá Mousinho. O encontro provocou, de fato, o deslocamento de papéis entre todos os envolvidos. Trocando em miúdos, todo mundo teve de sair de sua zona de conforto e, enfim, conviver.

Ocupação Nove de Julho

A artista visual Cacá Mousinho: "o convívio entre apoiadores e moradores criou desdobramentos como a oficina de desenho. É bonito ver que tudo começou na cozinha, o melhor lugar da casa"  (Foto: reprodução Instagram)

Daí nasceram, por exemplo, a oficina de arte que é feita semanalmente com as crianças da ocupação e projetos contínuos de apoiadores que promovem exibição de filmes (Cineocupa), aulas de teatro e a criação e manutenção de uma produtiva horta comunitária. A 9 de Julho também já foi local de exposições da última Bienal de Arte de São Paulo, Bienal de Arquitetura, Bienal de Chicago e em setembro vai inaugurar mais uma exposição na Galeria Reocupa, espaço de arte e debate que fica no saguão no prédio, com obras de artistas locais e convidados.

Um pontinho verde: horta em forma de mandala da ocupação (Foto: Edouard Fraipont/reprodução Facebook)

Um pontinho verde: horta em forma de mandala da ocupação (Foto: Edouard Fraipont/reprodução Facebook)

"É muito legal perceber que a cozinha, esse lugar de intimidade, de afeto, de se fazer junto, gerou tanta potência", diz Cacá. A moradora Conce, que chegou na ocupação tendo de escolher entre colocar comida na mesa dos filhos ou pagar o aluguel de R$ 1.300 numa favela do outro lado da cidade, concorda. "Antes eu tinha tanta preocupação com o dinheiro do aluguel que não sobrava nem paz para fazer o que eu gosto. Eu amo cozinhar."

E Conce completa: "Aqui tudo é diferente, quem vive sabe. Eu aprendi a pensar como parte de um grupo e hoje sei do meu papel na cidade e da importância do meu direito à moradia num lugar digno e com acesso a condução, escola, tudo." Para ela, prédio abandonado e sem uso não faz sentido enquanto existir gente sem teto. "Não faz sentido…", repete, enquanto mostra no celular fotografias de seus filhos. Entre elas, estão desenhos que seu filho Davi, de seis anos, aprendeu com Cacá. "Ele é terrível de danado. Já meu outro menino, mais velho, o Guilherme, de 10, gosta de fazer teatro, acho um barato."

No domingo, ambos vão participar da programação cultural completa que começa às 11h30 da manhã com apresentação do núcleo Menos 1 Invisível, que traz práticas de improvisação e pesquisa em dança, música e outras linguagens. Haverá ainda música e performance com sucatas do grupo Embatucadores e até o bloco de carnaval Esse Ano Eu Morri Mas Esse Ano Eu Não Morro. "Olha, a comida vai estar uma delícia e tem muita coisa boa para essas crianças gastarem energia", garante Conce.

ENTENDA O QUE OCORRE NA JUSTIÇA

O Movimento Sem Teto do Centro (MSTC) é uma das principais entidades organizadas de luta por moradia de São Paulo e coordena a Ocupação 9 de Julho, assim como outras quatro ocupações e um empreendimento, o Residencial Cambridge – que foi uma ocupação e agora é um imóvel financiado pelo programa Minha Casa Minha Vida. 

Há dois meses, a líder do MSTC, Carmen Silva, teve prisão decretada a partir de um inquérito sobre o edifício Wilton Paes de Almeida, que desmoronou após um incêndio, em maio de 2018. Carmen nunca fez parte da organização do prédio que caiu, mas foi acusada de prática de extorsão de moradores juntamente com outros 19 membros de diferentes movimentos de moradia.

Os filhos da dirigente, a cantora Preta Ferreira e o educador Sidney Silva, também foram acusados de cobrar "aluguéis" de moradores e estão presos desde então. Outra filha de Carmen, que é pastora evangélica, teve prisão preventiva decretada recentemente, assim como sua nora. O caso tem mobilizado a sociedade civil: movimentos de luta por moradia contam com contribuições de moradores para realizar reformas e manutenção dos prédios em que ocupam. No MSTC, o valor definido em assembleia e de R$ 220 por família.

Carmen Silva, líder do MSTC (Foto: reprodução Facebook)

Artistas como Chico Buarque e Caetano Veloso, entidades de arquitetura e do Direito, jornalistas, políticos e até um ganhador do Prêmio Nobel da Paz, o argentino Adolfo Pérez Esquivel, arquiteto, escultor e ativista de direitos humanos, já se manifestaram a favor do movimento e da liberdade dos encarcerados. Também afirmam que o caso evidencia uma explícita perseguição aos movimentos sociais.

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O processo atual, assim como um outro, mais antigo e concluído em 14 de agosto, foram fundamentados em depoimentos e trazem as mesmas acusações. Carmen Silva foi absolvida em duas instâncias na peça judicial já encerrada.

Nessa semana, no dia 20, o MSTC formalizou junto à prefeitura um pedido de cessão do direito de uso do imóvel da Ocupação 9 de Julho por 30 anos. A proposta é fazer as obras de reparo necessárias e implantar um programa de locação social e de atividades culturais, como as que já ocorrem no local – caso do Almoço de Domingo e de todas as atividades da que nasceram no coração da Ocupação.

Serviço:
Almoço de Domingo na Ocupação 9 de Julho
Rua Álvaro de Carvalho, 427 – Centro de São Paulo

Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.