Professora de escola pública cria jogo de cartas com heróis negros
Perla Santos trabalha a história e a cultura negras junto ao conteúdo didático por meio das cartas que criou com os alunos
Por Ariane Silva, especial para o Blog MULHERIAS
E se ao em vez de um jogo com heróis e heroínas fictícios americanos, as crianças pudessem brincar de salvar o mundo sonhando em ser personagens reais aqui do Brasil? Essa é a proposta da professora da rede municipal de Porto Alegre, Perla Santos, que leciona em uma escola na periferia de Restinga. A educadora uniu a didática à brincadeira preferida dos pequenos e o resultado foi Teresa de Benguela, Zumbi dos Palmares, Dandara e mais uma série de ícones negros sendo representados como heróis num divertido jogo de cartas.
A ideia do jogo de heroínas e heróis negros surgiu quando a professora notou que a nova febre dos alunos dos 1º e 2º anos da EMEF Mario Quintana nos intervalos era a brincadeira de bater cartinhas. Na atividade popular entre os estudantes, os personagens eram os mesmos presentes no universo de games e desenhos, com habilidades que passam longe das possibilidades humanas. "São figuras muito distantes da realidade deles. Eles não precisam abandonar suas cartas, o importante é a partir desse jogo feito por eles, eles conheçam e se identifiquem com a história negra, que é ainda muito ausente nos bancos escolares", defende a professora.
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E a troca de saberes realmente foi mandatória na criação do novo jogo. Os alunos entraram com as regras e a habilidade do "bater cartinhas", já a educadora escolheu os personagens e redigiu a mini-biografia que estaria presente em cada card. Reunida, a turma recortou e pintou as novas peças do baralho. "Foi o momento em que pude explicar pra eles sobre as personalidades brasileiras presentes ali. E eles me ensinaram tudo sobre a brincadeira. A troca é essencial porque inverte a lógica de que só o professor detém conhecimento", defende.
Autoestima de super-herói
Desde 2003, as diretrizes e bases da educação nacional estabelecem que os livros didáticos e as atividades em sala de aula falem sobre História e Cultura Afro-brasileira e indígena. "A obrigatoriedade existe nas formas das leis 10.639 de 2003 e 11.645 de 2008, mas as escolas ainda estão longe de incorporar essas narrativas no dia a dia dos estudantes", diz Perla, ressaltando que isso impacta diretamente na maneira como as crianças, a família e toda a comunidade escolar lidam com a questão racial.
A educadora conta que assim que chegou à Restinga percebeu o quanto o racismo estava presente ali e dentro da escola. "Me lembro que precisei ajudar a tirar uma aluna da sala de aula porque ela estava muito nervosa, gritando e, enquanto conversávamos, ela me disse que há dois anos, todos os dias, um aluno debochava da sua cor de pele e cabelo, e que ela havia perdido a paciência naquele dia. Lembro de ela me olhar e concluir: 'depois de tudo isso, quem foi expulsa da sala? Eu!'", relata.
Iniciativas como a de Perla e de outros professores ajudam a romper com o silêncio em torno do racismo. "Eu sou de uma geração que enfrentava calada, eu não tinha coragem de falar nem para os professores nem para minha família. Sei o quanto isso foi perverso e me prejudicou. E o quanto eu tive que lutar pra me tornar uma mulher negra consciente da minha raça", desabafa.
Por isso, o jogo das cartinhas também tem sido essencial na construção da autoestima dos estudantes. Conhecendo a história, os pequenos passam a compreender a trajetória dos negros para muito além da narrativa clássica que se limita a falar dos africanos como escravos. "A partir do momento que uma das cartinhas é sobre Kimpa Vita, que foi uma rainha congolesa, eles pensam 'não, mas pera aí, existia uma nobreza na África'", conta a professora.
Além do jogo das cartinhas, Perla e um grupo de mães também criou o Movimento Meninas Crespas, onde é coordenadora, e que também rendeu a ela o título de uma das cinco mulheres que fazem a diferença no Brasil, premiação do grupo O Boticário.
Hoje, o Meninas Crespas da Restinga existe para além dos muros escolares e trabalha em prol da valorização da cultura, estética e história negra. "Estamos construindo uma biblioteca comunitária afrocentrada para a comunidade, nosso acervo já tem cerca de 100 livros. Além disso, damos aula de dança, poesia e Iorubá, idioma nigero-congolês", conta.
Bora pro jogo?
As partidas são em dupla, duas cartas devem ficar viradas para baixo sobre a mesa, e um jogador por vez deve espalmar a mão sobre a cartinha. Quem conseguir virar primeiro, pontua. No final, quem tiver mais cartas viradas, ganha. Ah, quem garantir mais figuras femininas leva a melhor. Isso porque a valorização da mulher também é regra no jogo dos heróis e heroínas negros. "Expliquei pra eles que nós, mulheres pretas, sempre fomos negadas, esquecidas, por isso era justo darmos um valor maior para as personagens femininas e acrescentar mais pontos às cartinhas que tem elas", explica a professora.
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