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Professora de escola pública cria jogo de cartas com heróis negros

Flávia Martinelli

20/12/2019 04h00

Perla Santos trabalha a história e a cultura negras junto ao conteúdo didático por meio das cartas que criou com os alunos

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O aluno de Paula ensinando a "bater cartinha"

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Por Ariane Silva, especial para o Blog MULHERIAS

E se ao em vez de um jogo com heróis e heroínas fictícios americanos, as crianças pudessem brincar de salvar o mundo sonhando em ser personagens reais aqui do Brasil? Essa é a proposta da professora da rede municipal de Porto Alegre, Perla Santos, que leciona em uma escola na periferia de Restinga. A educadora uniu a didática à brincadeira preferida dos pequenos e o resultado foi Teresa de Benguela, Zumbi dos Palmares, Dandara e mais uma série de ícones negros sendo representados como heróis num divertido jogo de cartas.

Professora Perla Santos mostra algumas das cartinhas com figuras históricas negras, pintadas pelos próprios alunos

A ideia do jogo de heroínas e heróis negros surgiu quando a professora notou que a nova febre dos alunos dos 1º e 2º anos da EMEF Mario Quintana nos intervalos era a brincadeira de bater cartinhas. Na atividade popular entre os estudantes, os personagens eram os mesmos presentes no universo de games e desenhos, com habilidades que passam longe das possibilidades humanas. "São figuras muito distantes da realidade deles. Eles não precisam abandonar suas cartas, o importante é a partir desse jogo feito por eles, eles conheçam e se identifiquem com a história negra, que é ainda muito ausente nos bancos escolares", defende a professora.

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E a troca de saberes realmente foi mandatória na criação do novo jogo. Os alunos entraram com as regras e a habilidade do "bater cartinhas", já a educadora escolheu os personagens e redigiu a mini-biografia que estaria presente em cada card. Reunida, a turma recortou e pintou as novas peças do baralho. "Foi o momento em que pude explicar pra eles sobre as personalidades brasileiras presentes ali. E eles me ensinaram tudo sobre a brincadeira. A troca é essencial porque inverte a lógica de que só o professor detém conhecimento", defende.

Os alunos recortaram e pintaram as cartinhas enquanto aprendiam sobre os personagens da vida real

Autoestima de super-herói

Desde 2003, as diretrizes e bases da educação nacional estabelecem que os livros didáticos e as atividades em sala de aula falem sobre História e Cultura Afro-brasileira e indígena. "A obrigatoriedade existe nas formas das leis 10.639 de 2003 e 11.645 de 2008, mas as escolas ainda estão longe de incorporar essas narrativas no dia a dia dos estudantes", diz Perla, ressaltando que isso impacta diretamente na maneira como as crianças, a família e toda a comunidade escolar lidam com a questão racial.

A educadora conta que assim que chegou à Restinga percebeu o quanto o racismo estava presente ali e dentro da escola. "Me lembro que precisei ajudar a  tirar uma aluna da sala de aula porque ela estava muito nervosa, gritando e, enquanto conversávamos, ela me disse que há dois anos, todos os dias, um aluno debochava da sua cor de pele e cabelo, e que ela havia perdido a paciência naquele dia. Lembro de ela me olhar e concluir: 'depois de tudo isso, quem foi expulsa da sala? Eu!'", relata.

Cartinha que homenageia João Candido, um dos grandes líderes da Revolta da Chibata em 1910. Atrás, a carta de Dona Beatriz Kimpa Vita, profetiza e líder política congolesa

Iniciativas como a de Perla e de outros professores ajudam a romper com o silêncio em torno do racismo. "Eu sou de uma geração que enfrentava calada, eu não tinha coragem de falar nem para os professores nem para minha família. Sei o quanto isso foi perverso e me prejudicou. E o quanto eu tive que lutar pra me tornar uma mulher negra consciente da minha raça", desabafa.

Por isso, o jogo das cartinhas também tem sido essencial na construção da autoestima dos estudantes. Conhecendo a história, os pequenos passam a compreender a trajetória dos negros para muito além da narrativa clássica que se limita a falar dos africanos como escravos. "A partir do momento que uma das cartinhas é sobre Kimpa Vita, que foi uma rainha congolesa, eles pensam 'não, mas pera aí, existia uma nobreza na África'", conta a professora.

 

Além do jogo das cartinhas, Perla e um grupo de mães também criou o Movimento Meninas Crespas, onde é coordenadora, e que também rendeu a ela o título de uma das cinco mulheres que fazem a diferença no Brasil, premiação do grupo O Boticário.

Hoje, o Meninas Crespas da Restinga existe para além dos muros escolares e trabalha em prol da valorização da cultura, estética e história negra. "Estamos construindo uma biblioteca comunitária afrocentrada para a comunidade, nosso acervo já tem cerca de 100 livros. Além disso, damos aula de dança, poesia e Iorubá, idioma nigero-congolês", conta.

Bora pro jogo?

As cartinhas foram feitas por Perla e recortadas e coloridas por alunas e alunos

As partidas são em dupla, duas cartas devem ficar viradas para baixo sobre a mesa, e um jogador por vez deve espalmar a mão sobre a cartinha. Quem conseguir virar primeiro, pontua. No final, quem tiver mais cartas viradas, ganha. Ah, quem garantir mais figuras femininas leva a melhor. Isso porque a valorização da mulher também é regra no jogo dos heróis e heroínas negros. "Expliquei pra eles que nós, mulheres pretas, sempre fomos negadas, esquecidas, por isso era justo darmos um valor maior para as personagens femininas e acrescentar mais pontos às cartinhas que tem elas", explica a professora.

Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.