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Nas periferias, artistas plásticas reinventam o mercado da arte

Flávia Martinelli

01/03/2020 04h00

Cena do primeiro encontro do coletivo Pretas Ilustram: apoio mútuo para inserção no mundo da arte (Foto: Cynthia Mariah/reprodução Facebook)

Cena do primeiro encontro do @coletivo_ pretasilustram: rede de apoio para inserção num universo desconhecido (Foto: Cynthia Mariah/reprodução Facebook)

Com reportagem de Martha Raquel Rodrigues, especial para o blog MULHERIAS

Longe do mundinho institucionalizado das artes plásticas, com suas galerias, exposições sofisticadas, estratégias de investimento, apadrinhamento e agentes de vendas, pulsa, freneticamente, um mercado independente de mulheres artistas nas periferias. São ilustradoras, designers, desenhistas, grafiteiras, quadrinistas e criadoras de artes plásticas que conquistaram prestígio não apenas em seus territórios mas também nas redes sociais, na publicidade e no mercado editorial.

Organizadas em coletivos ou com a explícita proposta de fortalecer suas colegas de ofício, de maneira informal, elas chamam atenção pela identidade estética e pelo desafio de viver de arte – algo que, com raras exceções, sempre foi destinado a poucos privilegiados; homens no geral.

Inspirado nesse movimento de fortalecimento de mulheres por mulheres, de artistas da quebrada que partilham conhecimento e dicas com outras artistas da quebrada, o blog MULHERIAS foi atrás de expoentes dessa geração pioneira.

A partir de indicações, partimos da periferia da Zona Sul de São Paulo, um celeiro de artistas na cidade, para entender como o movimento dos saraus de poesia das últimas décadas também abriu um novo campo de atuação nas artes plásticas, até chegarmos ao @coletivo_pretasillustram, formado no ano passado com a proposta de tornar o mundo das artes mais acessível. O grupo dá destaque para o protagonismo de narrativas das mulheres negras como criadoras e criaturas das obras de arte e lançou o desafio de reunir ainda mais talentos femininos invisibilizados de todo o país a partir desta reportagem. Acompanhe o ciclo de fortalecimento das artistas da quebrada e veja como participar desse movimento!

"Por todos os lugares, discuto o pertencimento, o corpo-território da mulher, sempre pautada no desenvolvimento de uma pedagogia feminina e espalhando grafites pelas cidades."

@carolitza – Carolina Itzá, 36 anos, é artista desde os 15

"Eu me criei desenhando, naquela época não buscava o mercado convencional ou o caminho institucional da arte. Nem tinha referência para isso, não saberia por onde começar. Mas desbravei o meu próprio espaço", conta Carol Itzá. Ela explica que seu reconhecimento como artista, ou melhor, como "trabalhadora da arte", é resultado do caldo cultural do movimento dos saraus literários das periferias.

Depois de desbravar muros da cidade, sua primeira exposição, em 2004, foi no bar Batidão, onde ocorrem os famosos encontros de poesia do Sarau Cooperifa, organizados do articulador e poeta Sergio Vaz. "De lá pra cá muita água rolou, levando as telas dentro do busão e enchendo de cores os botecos, quintais, obras abandonadas, muros e ruas."

Além de grafiteira, ela é dançarina, formou-se em Ciências Sociais e sempre trabalhou como educadora. Suas oficinas de grafite para mulheres rodaram por diferentes periferias de São Paulo e, a partir de 2016, Carol aventurou-se numa residência artística autônoma. Percorreu pelos estados do Maranhão, Paraíba, Bahia e foi a cidades do México e Colômbia com rodas de conversa sobre sua série de obras Útero Urbe, tema do seu mestrado prestes a ser concluído. "Por todos os lugares, discuto o pertencimento, o corpo-território da mulher, sempre pautada no desenvolvimento de uma pedagogia feminina e espalhando grafites pelas cidades."

Com a proposta de democratizar não apenas a produção de arte de rua como o consumo de arte da periferia nas próprias periferias, Carol recentemente transformou suas aquarelas, colagens e desenhos em pôsteres. As reproduções são vendidas a R$ 30 em eventos da periferia e a R$ 40 na lojinha virtual da artista, que fica na plataforma digital de empreendedores de sua região, o www.ebairroweb.com.br

Autora de capas e ilustrações de livros, ela ainda cuida da identidade visual de eventos importantes da periferia, como a última Feira Literária da Zona Sul (FELIZS), que trouxe como tema a frase

Autora de capas e ilustrações de livros, Carol ainda cuida da identidade visual de eventos importantes da periferia, como a última Feira Literária da Zona Sul (FELIZS), que trouxe como tema a frase "meu corpo, minha marca no mundo"

"Minhas obras são registros maloqueiros de quem carrega o sentimento na sola do pé", define a Carol. Que outra parceira das artes da periferia ela recomenda conhecer? "Ah, de cara, fale com a Bruna Tamires do Malokêarô. Ela faz fanzines incríveis, é surpreendente."

"Meus desenhos eram primários mas comecei a fazer fanzines para traduzir de um jeito fácil e para o maior número de pessoas o que eu aprendia na faculdade. Foi meu jeito de falar de políticas públicas, questões raciais e do sistema capitalista"

Bruna Tamires, 26 anos, é criadora da zine Malokêarô, gestora de políticas públicas, escritora, desenhista e fundadora do Clube Negrita, de incentivo à leitura de autores negros


"Agradeço muito a Carol por me recomendar e acho que esse movimento de artistas da periferia funciona assim mesmo, no boca a boca. Meu nome é Bruna Tamires de Souza Cruz, tenho 26 anos, moro em Pirituba mas nasci na Brasilândia, um bairro muito vulnerável.

Amo ler e desenhar e no final da minha graduação em Gestão de Políticas Públicas comecei a fazer fanzines que traduziam aquilo que eu aprendia na universidade numa linguagem mais fácil de passar para as pessoas. Minhas zines na época tinham meus desenhos primários e eram de temas sobre: transição capilar, heróis e heroínas negras, sistema capitalista, vivência da mulher negra relações e raciais.

Escolhi esse formato pois me permitia criar sem limitações e regras. Além disso, sempre me pareceu que texto e imagem juntos davam melhor resultado para as pessoas compreenderem uma história. Vendi as zines entre 2016 e 2018. Abordava pessoa a pessoa, no centro da cidade de São Paulo. Isso me ajudou a conhecer muita gente da cena das artes negras, artes em geral, das ruas. Cada fanzine custava R$ 5. Nunca contabilizei, mas vendi bastante.

Foi no meio do processo de fanzines, indo para espaços de arte negra e saraus, que eu me apeguei à literatura negra; o que não era algo comum na minha vida. A literatura que a sociedade nos apresenta é quase sempre branca e masculina. Daí, com vontade de escrever um livro e meu hábito de leitura crescendo, bolei uma forma de mostrar aos meus amigos aquilo que eu lia e gostava: o Clube Negrita, que incentiva a leitura conjunta e o letramento pela literatura negra. Ainda não escrevi o meu livro, mas já fui publicada em duas antologias. 

A última fanzine que fiz, no ano passado, foi sobre a rotina do medo e o desemprego em São Paulo. Foi um marco na minha produção porque fortaleci meu traço e cheguei próximo a um quadrinho; que é o que pretendo fazer no futuro. O Clube Negrita foi contemplado com um edital de incentivo e estará em bibliotecas comunitárias da cidade. Estou feliz porque me prova como gestora, como leitora e como pessoa capaz de cruzar fronteiras. 

De um tempo para cá, me vejo como criadora e comunicadora. Sigo praticando meus desenhos. Ser artista de várias linguagens é isso. Acredito que quando uma pessoa negra é firme e engajada no que quer, consegue fazer com que crianças negras e as pessoas não negras compreendam o mundo em que vivemos. Recomendo, até por isso o trabalho sensacional e inspirador da Vanessa Ferreira, que criou o @pretailustra."

 

"Muito mudou quando passei a dar vazão ao meu lado artístico. Foi uma forma de me religar ao mundo, me tirou da depressão. O reconhecimento que tive em 2 anos de Preta Ilustra foi maior que os 10 anos em que trabalhei na publicidade"

Vanessa Ferreira, de 34 anos, é publicitária e há dois anos criou a página @pretailustra, que conta com 11 mil seguidores. Além de uma linha própria de produtos, trabalha para marcas e promove oficinas de desenhos afrofuturistas para descolonizar o olhar sobre a arte, tendo o corpo negro como agente produtor do próprio caminho

"Apesar de ter estudado Publicidade e Propaganda, Visual Merchandising e Design de Interiores sou uma artista autodidata. Desde criança tenho essa veia. Mas de onde vim, uma comunidade pobre, não isso não era profissão. Ter diploma foi uma meta na minha vida e, depois de quase dez anos trabalhando no mercado publicitário, em 2017, eu não tinha reconhecimento nenhum. Entrei em depressão.

Para me ajudar a sair dessa, uma grande amiga costurou a mão um caderninho de desenho e disse que queria ele completinho com minhas ilustrações. Essa foi a força que eu precisei para seguir. Comecei a postar meus trabalhos na página do Instagram @pretailusta e isso começou a fazer sucesso. Eu fazia lives ensinando as técnicas e materiais que usava e isso foi crescendo muito. 

Percebi, então, eu era aquele pontinho fora da curva: uma mulher negra que fazia ilustração, tinha acesso a  tecnologia dos materiais e que direcionava o conhecimento em propaganda para a arte. A minha vivência em agência de publicidade e comunicação fez a diferença. Além disso, eu praticamente só desenhava mulheres negras, né? Não se fala de referências negras em faculdades nem na mídia nem nas agências de publicidade.

Cresci num mundo branco, com referências e influencias brancas. Nunca tive uma professora negra no ensino superior. Artistas negros pra mim eram só os grafiteiros. O que a minha arte refletia, no fundo, era a ausência de corpos negros, um vazio de imagens e estéticas. Me pauto muito por isso e aos poucos fui trabalhando conceitos afrofuturistas ao trazer narrativas carregadas de ancestralidade e protagonismo, resgatando vínculos com a sabedoria ancestral das nossas anciãs e com a nossa comunidade. 

Me sinto feliz por compartilhar o que eu sei com outras mulheres. Todo conhecimento que chegava em mim, eu repassava, não segurava informação. Dom é aquilo que vai servir ao outro, senão não é dom nem talento nem nada. Eu explicava para as seguidoras que valia a pena economizar grana para ter um determinado material, que ele ia compensar ou mostrava que em outro não precisava investir tanto. Tive como meta fazer a produção das pessoas negras mais acessível. Afrofuturismo é isso: ter pessoas negras produzindo a sua arte, pensando o futuro e, mais do que isso, ter contato com a tecnologia para que ela possa criar isso.

Só tive consciência do impacto do Preta Ilustra quando comecei a compartilhar minhas histórias como mulher negra, tanto no mercado de trabalho quando na vida pessoal. Foi conversando com outras mulheres que percebi esse senso de coletivo, que estávamos unidas por uma dor, a 'dororidade', que é uma consequência estrutural. Quando falo sobre isso e me curo, dou a chance de outras também se curarem.

Essa rede de apoio me mostrou que os conceitos afroturistas, além de terem a ver com a estética das minhas ilustrações, também é um movimento político. Pensar no futuro é resgatar nosso passado apagado. Mas aqui no Brasil isso bate, hoje, no nosso presente; ao acesso à tecnologia e aos meios para que possamos sobreviver. Passa pela nossa remuneração e pela possibilidade de conhecer os livros, fazer as viagens e ter as referências necessárias para produzir. 

Por tudo isso, acho fundamental essa troca, esse 'puxar' uma a outra na nossa comunidade. É uma estratégia para que possamos desbravar espaços da arte de maneira impactante. Recomendo uma amiga de adolescência, a Alexia Lara, que foi para o meio artístico enquanto fui para a publicidade. Alexia, que vinha da mesma origem que eu, foi a minha inspiração. Daí, sei da minha importância para outras ilustradoras também."

 

"Existe um protagonismo que precisa ser ocupado. É necessário criar referências. Temos que recontar as histórias pela nossa perspectiva. Artistas negras precisam se manter juntas por questões de aquilombamento e troca de conhecimento"

Alexia Lara, de 25 anos, é criadora do Arte Clichê, designer de interiores e muralista. Em ilustrações ou a partir de escritos com o lettering, busca representar e endeusar a força e delicadeza da mulher preta e a arte periférica 

Ilustração com lettering (Foto: reprodução Instagram)

Ilustração com lettering (Foto: reprodução Instagram)

"Sou designer de interiores, a ilustração e a arte em lettering surgiram de forma autodidata, pela minha necessidade de me comunicar. A minha página, a Arte Clichê, nasceu em 2013, quando comecei a receber encomendas pelas redes sociais.

Atravessei diversas técnicas de desenho e tive que buscar referências até chegar aqui. Então, antes de mais nada, preciso dizer que só entendi Alexia Lara como artista e para que veio a Arte Clichê em abril de 2019, há menos de um ano! Foi um processo longo de entendimento.

Vou explicar o meu ponto de partida: mainha é da cor da canela, assim como toda minha família por parte de mãe que tem ascendência negra e indígena pelo meu avô. Já painho, tem a pele bem mais branca, assim como toda a família dele. O entendimento desses dois lados da minha origem foi crucial para buscar minha identidade e me encorajar a me impor como mulher negra, dialogar sobre isso e ilustrar também. Foram anos de descobertas, mas estamos aqui, um passinho por vez.

Na arte, a presença de mulheres negras sempre foi invisibilizada. Fomos esquecidas na história. Sabemos quem é Portinari mas não Edmonia Lewis [nascida em 1844, americana, foi primeira mulher negra a alçar fama internacional e a ter reconhecimento como escultora e artista].  Existe um protagonismo que precisa ser ocupado. É necessário criar referências. Temos que recontar as histórias pela nossa perspectiva. Artistas negras precisam se manter juntos por questões de aquilombamento e para rotacionar o nosso crescimento, trocar conhecimento entre nós.

As influências negras que tenho são muito atuais, descobri esses dias. Antes delas, sempre me faltava algo. Trago referências que têm a ver com o lugar de onde vim, do meu bairro e amigos, claro. Gosto de rap nacional, frequento slams de poesias. Tudo isso uso como base para me comunicar e acessar sentimentos. Mas faltava algo que eu não entendia o que era. E acho que busco isso nas minhas pinturas.

Lettering de Alexia

Atualmente faço mais caligrafia artística e lettering do que ilustrações porque percebi que só a pintura também não me bastava. Com essas técnicas exploro uma comunicação mais direta que vai além do papel  e posso me expressar em  roupas e paredes.

Recomendo o coletivo onde busco essas novas referências e partilho informações, o Coletivo Pretas Illustam, formado por ilustradoras negras que têm o objetivo de propagar a criação da arte negra feita por mulheres, potencializando-a, sob o signo da ancestralidade, da ressignificação da vida e do olhar feminino da criação. Eu e a Vanessa, do Preta Ilustra, fazemos parte desse grupo. As portas estão abertas para trocarmos, para fazer movimentar esse novo mercado que estamos desbravando. Se você desenha ou conhece uma mana da periferia que desenha, pede para ela colar com nóis." 

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Joyce Pereira já está por aqui fazendo uma ilustração ao vivo. Venha passar a tarde com a gente, estamos esperando vocês!

Uma publicação compartilhada por Coletivo Pretas Illustram (@coletivo_pretasillustram) em

Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.