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Por que estamos sofrendo? As respostas de quem tem fé

Flávia Martinelli

10/04/2020 04h00

Diante da pandemia que assola o mundo, o blog Mulherias ouviu 13 relatos de quem vivencia o sagrado. A busca é por algo, ainda que inefável, para apaziguar a dúvida que, mesmo sem querer, estamos nos fazendo todos os dias

(Foto: arquivo Pexels)

Com reportagem de Isabela Alves e Jéssica Ferreira, especial para o blog MULHERIAS

É comum buscar a espiritualidade quando a ciência não dá respostas às angústias humanas. A crença no invisível, a fé,  é refúgio, amparo e aconchego. Oferece apoio e um lugar de pertencimento. Investiga mistérios e oferece saídas quando tudo parece impossível. A religiosidade ainda dialoga com a nossa identidade, tira do isolamento, é luz na encruzilhada.

Diante da pandemia que assola o mundo, o blog Mulherias traz 13 relatos de quem vivencia o sagrado. A busca é por algo, ainda que inefável, que possa apaziguar a dúvida de todo dia: por que estamos sofrendo tanto com um vírus tão mortal? 

Não foram poucas nem óbvias as respostas e interpretações. Cristãs, candomblecistas, curandeira, budista, espírita ou espiritualistas sem religião e quem criou a própria fé oferecem pontos de vista enquanto reafirmam, também, seu respeito à ciência e à importância de levar orientações médicas corretas em suas comunidades.

Intimamente, há quem acredite que o coronavírus seja um castigo divino e quem veja no desrespeito da relação do homem com a natureza a explicação para a disseminação da doença. Há quem se espelhe na solidariedade e na compaixão de Cristo. E os que questionam o sistema mundial de acumulação de riquezas: seria aceitável negligenciar vidas em função de resultados econômicos ? Uns se recolhem em oração, outros se aquietam para ouvir seres sagrados.

Todos, em comum, dizem que algo já mudou. A começar pela vontade de se questionar, olhar para si , refletir sobre a própria fragilidade e o papel de toda humanidade que, sem querer, está sendo obrigada a rever o que faz consigo mesma e com todo o planeta.

A Terra está em transição, esse capitalismo está ruindo. Temos que nos curar e pensar: onde queremos estar depois da pandemia?

Jéssica Sales Ribeiro, de 28 anos, trabalha com planejamento estratégico artístico e se autodenomina espiritualista universalista

"Essa pandemia está representando muito mais que só um momento de isolamento, em que as pessoas ficam em casa fazendo home-office. É muito mais. É um momento de voltar pra dentro. Não tem pra onde correr. Mas olhar pra dentro é muito difícil porque nem sempre você vai ver 100% de coisa boa. Você vai ver vários problemas para serem reconfigurados, traumas que antigamente você não soube lidar na sua vida mas sabia que existam.

Estamos sendo convidados  a repensar todos os moldes, espirituais e físicos. Rever o que não está certo. Nos tornamos andróides biológicos, seres mecanizados? Abrimos mão da natureza, da nossa própria natureza. Então, que possamos individualmente repensar nossos propósitos e projetos e responder: o que realmente viemos fazer aqui? Em paralelo, é hora de olhar para o que temos feito para o coletivo, com os recursos finitos, o sistema econômico mundial e o trabalho.

Penso que também temos a oportunidade de repensar a distribuição de riqueza, o dinheiro acumulado parado rendendo lucros enquanto pessoas passam fome. Será que pandemia não poderia ser um momento da quebra deste  capitalismo? O setor econômico está de fato ruindo e algo melhor precisa substituí-lo. É algo a se pensar.

Tenho refletido muito também sobre a população negra. Temos sido explorados por esse sistema que prejudica a nossa espiritualidade, a nossa natureza, o nosso livre-arbítrio, a nossa humanidade e nossa forma de ver o mundo. Esse sistema tem nos bloqueado de todas as formas possíveis para nos fazer desacreditar das mudanças. Bom, se isso tem sido uma trava, o que temos de fazer agora? Nos fortalecer e firmar em nós a verdade de que tudo muda. E podemos nos preparar para a mudança.

Mesmo que a gente tenha um pequeno poderio em relação ao que domina o universo material e financeiro somos maiores em quantidade tanto no Brasil quanto no mundo. Então, onde temos que focar nossos esforços e evoluções? Eu sinto que o movimento negro é uma espécie de cura coletiva: eu te curo enquanto você me cura. Mas precisamos também nos olhar enquanto indivíduos, olhar pra dentro e curar nossas questões internas. Então, fortalecidos, vamos pensar: onde a gente quer se colocar após a pandemia?"

Ficar em casa é honrar ao Deus da vida e derrotar a morte. Não é isso que aprendemos com a Bíblia?

A produtora audiovisual Rachel Daniel, de 24 anos, é evangélica da Igreja Batista em São Paulo

A produtora audiovisual Rachel Daniel, de 24 anos, é evangélica da Igreja Batista em São Paulo

"Desde o início da quarentena tenho refletido sobre o versículo 6 do capítulo 6 de Mateus (6:6). Diz assim: 'Mas você, quando orar, vá para o seu quarto, feche a porta e ore ao seu Pai, que não pode ser visto. E o seu Pai, que vê o que você faz em segredo, lhe dará a recompensa'. E, na sequência, vem a oração do Pai Nosso com o complemento 'para que o pão seja nosso, pela paz e pela justiça no mundo, pelo cuidado dos seus filhos, pelo perdão que abraça as pessoas, pelo amor que ama a todos, para que o mal não prevaleça em nós.'

Tenho visto uma disputa de imaginários sobre o que é o coronavírus, principalmente dentro da religião. Há os que dizem que essa é uma praga enviada por Deus ou pelo Demônio. Outros falam que povo está em pecado e só morre quem não é 'salvo.

Grafite compartilhado no facebook de Rachel: o universo evangélico é diverso e posturas irresponsáveis como a negação da ciência por algumas denominações devem ser criticadas

Eu respondo que pecado, diabólico ou atentado a Deus é a lógica de uma sociedade que acha normal a desigualdade, o  racismo, a exclusão, o sistema de lucros em nome de tudo e todos os desdobramentos dessas questões. Nessa perspectiva, não são as pessoas que estão em pecado mas os mecanismos que aceitam tanta injustiça. E acho que isso vai desde a forma como assassinamos animais de forma cruel e em larga escala para consumo desenfreado até o planejamento de cidades que expulsam os 'indesejados' do sistema.

Aos meus olhos, a fome, a falta de acesso à saúde, educação e igualdade, assim como o feminicídio são consequências de várias outras violências que passam pelo desmatamento e destruição das diversas formas de vida, pelas políticas genocidas que desassistem um povo. São todos são pecados contra a criação divina.

A comunidade que participo tem feito o trabalho intensivo de cuidado espiritual pelas redes sociais com cultos ao vivo, lives de devocionais e estudos bíblicos e desde o princípio cancelou suas atividades. Acho um absurdo irmãos em Cristo que insistem em ir para a rua ou negam a ciência e os perigos dessa pandemia. Ficar em casa é um ato de amor."

"No meio de tudo isso, ainda podemos levar luz às pessoas. E elas podem repassar isso a outras como uma grande onda positiva"

A professora de história Renata da Cunha Moura, de 37 anos, é budista

A professora de história Renata da Cunha Moura, de 37 anos, é budista

"Sou da terceira geração de uma família convertida no Budismo Nichiren, uma filosofia religiosa ateísta, que não apregoa a existência de um criador. Dentro dessa perspectiva, um dos nosso princípios apregoa que o sujeito nunca está separado do meio ambiente e da sociedade. Também acreditamos que todos têm o livre-arbítrio para mudar seu carma ou seu estado de espírito ao longo do dia, seu estado basal de vida, a partir da recitação de um mantra.

É possível vivenciar seja qual for o contexto, o estado de plenitude, que é o estado de Buda. Então, mesmo no meio dessa pandemia, entendemos que é possível se posicionar como podemos viver, enquanto budista, o enfrentamento da pandemia. 

Nós não determinamos que a pandemia existe por um motivo específico. Eu entendo eu faço parte do universo e o universo faz parte de mim. Assim, o universo é a vida no sentido macro e eu no micro. Nessa relação, nesse plano, eu desenvolvo a minha existência, entende?

Nossa filosofia se propõe a ter uma vivência humanista na prática. Como isso se manifesta? Através da recitação de um único mantra que é o nam-myoho-rengue-kyo durante uma hora por dia, mais 20 minutos diários de estudo da filosofia e, principalmente, na interação que tenho com as pessoas. Todos os dias, eu me conecto a alguém para ter uma conversa positiva, para empoderar uma pessoa no sentido de encorajá-la a buscar a plenitude do estado de Buda. Acreditamos que ela fará o mesmo por outra pessoa e isso geral uma grande onda positiva.

A vida não é estática e mesmo que a pandemia seja um carma coletivo, consigo interagir com a minha realidade. O budismo me habilita a ser um ponto positivo no meio de tudo isso, pois posso verificar a minha postura e levar luz às pessoas. E elas, a outras, e assim por diante.

Numa orientação de um dos nossos periódicos, encontrei um trecho muito inspirador que fala que o budismo nos ensina que existe um terceiro caminho para todas as questões. "O caminho do meio é um processo de viver e deixar a nossa própria marca na sociedade, enquanto constantemente questionamos nossas próprias ações para assegurarmos que estejam de acordo com o caminho da humanidade". Aprendendo com a adversidade e mudando nossa visão de mundo de antes da pandemia, tudo terá um novo sentido. Com foco em um mundo mais humano e pacífico."

O cantor Rael gravou uma música que tem o mantra nam-myoho-rengue-kyo ao fundo. Confira: 

 

A chance de ouvir nosso interior é agora

A secretaria e terapeuta holística Cleusa Aparecida Martins, de 62 anos, é espírita

"Estamos diante da oportunidade de parar e observar com atenção a presença de Deus em cada um de nós. Acreditando ou não no Espiritismo, acredito que somos espíritos encarnados que trazem consigo o divino em ação. Um Deus age em nós, por nós e ainda nos oferece a oportunidade do livre arbítrio para plantarmos nossas sementes no mundo. Não acredito em grandes milagres, mas em fortalecimento de indivíduos. Para mim, milagre é consequência desse desenvolvimento pessoal. Cada um de nós é seu próprio templo. Só não nos damos conta disso por que estamos preocupados demais com questões que estão fora do nosso universo interior. A chance de ouvir nosso interior é agora."

A doença, as crises, as pragas vêm do desequilíbrio entre o homem e a natureza"

A historiadora Thalita Marangon Bião, de 31 anos, é do Candomblé e joga tarô

"No Axé, acreditamos na integração das coisas. Quem cura tem o poder da doença. Quem traz a vida conhece o mistério da morte. Os orixás representam a natureza e seus elementos. Iemanjá é das águas salgadas – e em algumas tradições é de todas as águas. A nossa comida, que a gente faz para o orixá, está relacionada com o poder do animal, a vida que está presente. Vale também para o milho e pratos como o acarajé ou amalá para Xangô.

Quando a gente pensa num sistema que explora a natureza ao extremo, sem cuidado e que pensa apenas na economia é obrigado a questionar os seres humanos que movimentam tudo isso. Somos parte dessa mesma natureza e não estamos respeitando o todo, o nosso universo. Tudo está imbricado, é tudo junto! Entendemos que a doença, as crises, as pragas vêm desse desequilíbrio geral.

A natureza é sábia e chegou ao ponto de exaustão. Seria uma maneira de, assim, nos obrigar ao recolhimento dentro de casa e fazer as máquinas pararem de funcionar. Um dia a conta chega. Mas falo por mim, não é o pensamento de todas as pessoas do axé. Cada comunidade é uma, cada mãe ou pai-de-santo age de sua forma.

Além do Candomblé busco respostas também no tarô que, para mim, esclarece o momento do agora. Ambos, no fundo, me mostram que é hora de repensarmos nossa existência. Dos nossos valores às nossas prioridades. É o momento de cuidar de si para, depois, levar esse cuidado ao coletivo.

Entendo o valor da religiosidade como uma entrega benéfica dos valores humanitários para toda a sociedade. Mas ninguém precisa ser religioso para entender isso. E independe da religião. Afinal a sociedade naturalizou barbaridades. Como pessoas que não tem nem água para lavar a mão vão barrar uma pandemia? Sejamos francos: o coronavírus está trazendo à tona questões que muita gente não via ou não queria ver. E isso para mim é a junção da espiritualidade com o que estamos vivendo hoje.

Sem a nossa presença, a vida está florescendo lá fora. Não é castigo. Vai muito além…"

A psicóloga Cátia Cristina Cipriano, de 48 anos, é espiritualista

"Sempre fui espiritualista, tive contato com a mediunidade desde a infância, e com a formação em psicologia, passei por um processo longo para me apaziguar com a crença na ciência, e ao mesmo tempo, na espiritualidade. Como isso se deu? Percebi que a psicologia e a espiritualidade, como entendimento do Eu, é algo que não se separa. Entendi o ser humano como um todo. Enxergo o homem e a vida como algo para além desse momento físico. Enquanto candomblecista, também aprendi sobre a força que é se olhar para dentro e a buscar a introspecção como ferramenta de alcance da força maior. Somos tudo isso e a psicologia é uma ferramenta para o desenvolvimento humano. Um complementa o outro.

Para passar e entender melhor esse momento que vivemos, busquei as meditações a distância com meus grupos de trabalho, pesquisa e desenvolvimento. Estamos tendo entendimentos profundos, pra fora dessa coisa material que é a doença e o caos. Para além do sofrimento e falta de entendimento, existe algo maior. Olhar e vibrar energias de renovação para a humanidade, ao humano, ao planeta, ao nosso país e à todas as criaturas têm trazido uma limpeza e a compreensão de que esse caos foi estabelecido por uma força superior e maior. E isso para que nos olhemos, olhemos nossas relações e possamos compreender a importância do planeta ser purificado.

A natureza está agradecendo pelo nosso isolamento. Sem a nossa presença, a vida está florescendo lá fora. É duro perceber que a gente não respeita o outro, a natureza, os seres superiores, a espiritualidade que nos sustenta. Por mais doloroso, é importante que a gente veja a complexidade disso tudo. Não é castigo ou processo de ação e reação a um mal que causamos…. Vai além.

Ao olhar pra si, para dentro, e não se sentir sozinho é um jeito de cultuar a força interna que temos e nos traz, de maneira saudável, a perspectiva do novo. Temos em pauta a a fraternidade, a humanidade, o despertar da bondade, da ajuda do próximo. Principalmente entre nós, que somos irmãos periféricos. Sabemos o quanto a gente precisa desse olhar fraterno. Precisamos ser humanizados.

Pensar nos outros é ver o mundo numa outra ótica, mesmo que a pessoa não acredite numa religião ou força maior. Não importa. Mas o fato é que estamos num momento de nos concentrar, purificar, unir e cuidar uns dos outros.

É a hora certa para nascer o novo porque cada um está sendo convocado a pensar no todo e em si. Somos parte desse universo e portanto precisamos reativar as energias para atravessar esse momento de maneira equilibrada e pela crença de que somos uma potência"

A Mãe Terra têm me dito em sonhos que aprender a viver em coletividade é a maior lição desse momento

A terapeuta holística Josilaine Oliveira, de 32 anos, está no processo de retomar sua origem e identidade Tupinambá

A terapeuta holística Josilaine Oliveira, de 32 anos, está no processo de retomar sua identidade Tupinambá

"Retomar minha origem é rever modo de vida, espiritualidade, entendimento de mundo, língua e cultura Tupinambá que historicamente tentam apagar. Portanto, me considero livre; a minha religião sou eu mesma.

Desde o ano passado estamos sendo avisados espiritualmente sobre mudanças significativas na Terra. Mas, pra mim, o entendimento que está vindo de maneira muito forte é: estamos sendo forçados a viver coletivamente.

A Mãe Terra têm me dito em sonhos, através das serpentes que significam cura e transmutação, que a coletividade é a maior lição que podemos levar desse momento. O planeta está nos obrigando a viver uma forte transmutação e se aprendermos a viver em coletividade, a sociedade irá se fortalecer.

Além dessa evolução na dimensão física, de alguma forma estamos sendo forçados também a trabalhar internamente. É um dos processos de preparação para a transmutação da Terra para outra dimensão, onde você não precisa do corpo, da matéria, apenas uma consciência maior.

Entendo esse momento da história como um processo difícil, com guerras entre seres espirituais e o invisível, com  aquilo que não é material, só energia. A luta é para a Mãe Terra não ser destruída. Mas, diante de tudo, vejo o quanto é bonito as pessoas estarem se unindo para ajudar, por exemplo, a periferia e as aldeias. Sempre houve essa oportunidade mas, no conforto de cada um em sua bolha, ninguém exercia com frequência.

Essa união é espiritualidade, uma busca por evoluir e compreender que sem a Terra a gente não se regenera. Pelo contrário, ela se regenera sem nós. Ela é alimento. É Deus, energia, um Ser feminino com poder de criação.

Essa contaminação mundial que abala a economia é oportunidade de rever o capitalismo e seus métodos. Temo por nós, pobres, pelo o que podemos sentir na pele. Mas há quanto tempo a periferia, os moradores de rua e tantos outros  sofrem? E há quanto um mundo diferente? Mais coletivo e justo?"

 

Deus está testando seus filhos e quer cumprir um desejo para a humanidade

Priscila dos Santos, de 38 anos, trabalha com hotelaria e é evangélica

"Acredito que essa pandemia é uma provação de Deus para o mundo. Ele está testando seus filhos, seus fiéis, os quais precisam se agarrar a Ele, porque é de onde virá a salvação.

Essa transformação é como uma promessa divina para que Ele possa cumprir algo, algum desejo que possui para toda a humanidade. A fé nos ajuda a passar pelas dificuldades e Deus está presente para transformar realidade quando nós o buscamos.

Ao término desse momento, sei que teremos um outro olhar pra vida, para os outros e para a natureza. Iremos cuidar melhor da nossa forma de viver, tendo mais atenção com a forma de nos relacionar, nos observar e compreender o mundo."

Nos aquietamos para ouvir as respostas que precisamos. Precisamos nos curvar, ouvir mais e não destruir o que foi construído por Potay

Alma Kazury, de 47 anos, é juremeira, ou seja, espírita curandeira, da etnia Xukuru Ororub

"O egoísmo tem se estendido a cada dia e com isso toda a obra de Potay, está sendo modificada. Potay na minha língua materna, da etnia etnia Xukuru Ororuba, significa Deus. Ele é o líder maior, pai de toda a criação, e se coloca junto a Nhanderu, que é Jesus. 

Sou juremeira, ou seja, espírita e curandeira. Sirvo aos caboclos, aos encantados, que me revelam caminhos. Por eles, vejo o que está acontecendo no mundo como uma grande cobrança do nosso pai Potay. O ser humano tem irado muito os seres que protegem a mata e vivem nela, com as suas atitudes. 

Nós, indígenas, principalmente os pajés e curandeiros e curandeiras, já estamos acostumados a nos recolher, a jejuar e rezar para agradecer e pedir aos encantados o que precisamos. Nos aquietamos para ouvir as respostas que precisamos.

Nesse momento, precisamos nos curvar, ouvir mais e não destruir o que foi construído por Potay. Me mantenho em isolamento. Eu, Cabocla Jurema, junto aos povos do fogo e os povos da pedra, aceito o que me é revelado e o que devo fazer em cada prática de cura das medicinas da floresta e dos nossos povos. Não faço nada que eles não me revelem e sigo aguardando as mudanças que virão." 

É muito importante ficarmos em isolamento. Todo iniciado no axé precisa ter seus ritos fúnebres respeitados na mais indesejada das horas e isso também nos preocupa

 

Andressa Prazeres, de 32 anos, é editora de livros na

Andressa Prazeres, de 32 anos, é editora de livros na "Cartoneira das Iaia" na cidade de Cachoeira, na Bahia. É filha de Oyá, é ekedy de Oxum no terreiro Ilè asé yá Omin, em Santo Amaro, também na Bahia

"Existe uma história sagrada sobre os Orixás, que chamamos itan, que conta da distribuição dos dons por Olodumaré [o orixá criador do universo que conhecemos ou desconhecido]. Orixás armaram para que Omulu não estivesse presente naquele dia. Assim, a cada um dos Orixás foi confiado um poder sobre a terra.

Oxum foi a rainha das águas doces. Ogum, o senhor das estradas. Oyá, a dona do ar e do vento. Cada um levou seu dom, lindo e belo, mas só sobrou a peste pra Omulu, que se sentiu injustiçado. Ele foi falar com Olodumaré, fez sacrifícios, se tornou poderoso e, então, castigou o mundo com a peste.

Todos fizeram muitas oferendas aos Orixás mas nada resolvia. Reunidos, eles foram consultar o oráculo, que revelou que era Omulu quem estava expressando sua ira e que a ele é que todos deveriam fazer sacrifícios para que levasse consigo a peste que lhe pertencia. Omulu foi, então, reconhecido o senhor da terra, a quem todos deviam respeito para viverem com saúde.

Esse itan me lembra o que estamos vivendo.

Em Santo Amaro, que é a cidade onde fica meu Ilê, o terreiro, ainda hoje [9/4], pela informação que temos, não foi registrado nenhum caso de covid-19. Mas a maioria das minhas irmãs e irmãos não têm trabalho formal, umas fazem diárias de serviço doméstico, outros trabalham em bares, outros são ambulantes, mototaxistas, vendedoras de acarajé.  Mas é muito perto de Salvador e as pessoas que vivem em trânsito entre as duas cidades. 

"Onde moro, em Cachoeira, teve já um caso. Os bares estão fechados, reduzidos os horários do comércio. Mas ainda tem aglomerações nas ruas. Tem gente 'fiel' na quarentena e gente que ainda não caiu a ficha. Quando o caso veio à tona, a prefeitura simplesmente isolou o bairro onde mora o rapaz contaminado. Depois voltou atrás. Digo isso para se ter uma ideia de como todos estão perdidos, feito cego em tiroteio

Os problemas que enfrentamos sendo do povo de axé aqui no Recôncavo, portanto, é a falta de renda para suprir as necessidades básicas e a falta de assistência social, médica e o total despreparo das prefeituras. E existe ainda um ranço coronelista que abraça a política daqui.

Estamos preocupados. Todo iniciado no axé precisa ter seus ritos fúnebres respeitados na mais indesejada das horas. O corpo físico não pode ser cremado, por exemplo, precisa ser entregue a terra, entregue a Obaluaiyê, [que é outro nome para Omulu]. Então, é de real importância que nós preservemos em isolamento. Pois a morte de um de nós, principalmente dos nossos mais velhos, sem o cumprimentos das cerimônias fúnebres, acreditamos que pode arrasar a família inteira."

É momento para criar intimidade com Deus e, principalmente praticar o amor ao próximo

A estudante de pedagogia Jéssica Lene da Silva Santos, de 21 anos, é evangélica da Assembleia de Deus em Manguinhos (RJ)

"Os espaços religiosos ou de fortalecimento espiritual são importantes na conscientização. Os pastores, no caso das igrejas evangélicas, são considerados representantes da voz de Deus na terra. É muito importante que eles observem a responsabilidade que carregam e que apoiem as medidas para prevenir a Covid-19. A medida adotada pela minha igreja foi de manter as portas fechadas durante esse período e gostei muito.

É muito perigoso distorcer a fé. No domingo passado, enviaram em um grupo de diáconos da igreja um vídeo de uma campanha de jejum. Num vídeo, é citado um versículo bíblico e logo após utilizaram a imagem do presidente  Bolsonaro para associá-lo ao jejum. Diante disso, comecei a visualizar nos status de outro crentes, mensagens que eram contra isso. Diziam "jejum pelo Brasil e não por Bolsonaro". Acho que o apoio ao presidente está abalado diante dessa pandemia.

Entre as interpretações religiosas que ouvi sobre esse vírus está a história das Dez Pragas do Egito, relatada na Bíblia. De acordo com ela, o Senhor escolheu Moisés para liderar a saída do povo hebreu do Egito, onde era escravizado. Moisés também era hebreu, mas havia sido criado pela filha de um faraó, que o encontrou ainda bebê, boiando num cesto, dentro do rio. Durante o processo de insistência de Moisés junto ao faraó para que deixasse o povo partir, o Senhor enviou dez sinais — dez pragas —, com o objetivo de mostrar ao faraó a Sua soberania e que o Deus a quem Moisés e seu povo servia, era um Deus que ama a liberdade."

 

Nós somos um vírus do planeta, de certa forma, porque não temos a consciência e responsabilidade sobre o lugar onde vivemos

O músico e ator Barroso, de xx anos, já passou pelo cristianismo, espiritismo, budismo além de várias outras religões. Ele lança hoje a faixa "Ato 1 – Amar", que faz uma desconstrução do Pai Nosso. A poesia tem a interpretação da Drag Queen Leyllah Diva Black e traz o trecho " O não nosso de cada dia, não terás hoje. Perdurai as nossas crenças, assim como nós perduramos a quem nos tem em cultivo"

"Para mim, isso que a gente está vivendo é um sinal. Um sinal que poderia ter vindo de várias formas, talvez muito mais tensas do que essa (que já é bem tensa). A gente está em estado de guerra e ninguém esperava viver assim depois de duas Guerras Mundiais, fora as outras que aconteceram. Muitas vidas estão sendo arrancadas de nós por conta desse vírus e é preciso olhar com muito cuidado para interpretar.

Pessoalmente, acredito que existe uma sabedoria muito poderosa por trás disso tudo e é realmente importante despertar para o que está acontecendo dentro da gente. Eu sinto como se o planeta Terra tivesse 'criado' esse acontecimento, obrigando o maior número possível de pessoas a ficar dentro de casa.

E é possível ver os efeitos colaterais disso: cientistas dizem que o planeta está tendo comportamentos incomuns agora, diminuindo as vibrações na crosta terrestre e os ruídos sísmicos causados pela circulação de pessoas e automóveis. Somos nós é que provocamos esse ruído sísmico. Nós somos um vírus do planeta, de certa forma, porque não temos a consciência e responsabilidade sobre o lugar onde vivemos.

Por mais que a gente não tenha educação tecnológica ou ambiental, precisamos entender e respeitar o lugar que vivemos, pisamos, habitamos. Então, tudo tem que ser repensado: nossos modos de agir, o que comemos, como reciclamos o lixo, a convivência, a comunhão. O que significa o dinheiro? O que é isso que a gente dá tanto valor? Na verdade, é só um pedaço de papel e vira só um número no ar e no espaço.

Esse é um tempo para mergulhar dentro da imensidão que somos nós e eu acho que essa poesia que virou a minha música "Ato 1 – Amar" tem um pouco dessa missão. Eu nunca estou sozinho, então eu sei que também não escrevi sozinho. Tenho certeza que essa poesia tem uma função espiritual e social muito grande. Colocar a [drag queen] Leyllah como esse símbolo, com tudo o que ela representa, é fortalecer aqueles dizeres do Pai Nosso.

Assista:

Por que decidi parafrasear o Pai Nosso? Porque é algo que sempre esteve presente desde que eu nasci. Minha mãe é cristã católica, canta em igreja. Fiz catequese, crisma mas passei por diversas doutrinas; evangélica pentecostal e presbiteriana, budista, kadercista, ayahuasca e mais. Tudo por uma curiosidade minha de entender porque as religiões existem.

É tempo de revisitar, de restabelecer as estruturas, quebrar padrões tóxicos e principalmente tempo de se amar, amar o outro. Ter empatia por si, pelo outro e pela natureza. No fundo, somos uma grande pluralidade conjunta e única."

 

Diferentes previsões de variadas crenças já haviam nos alertado. A questão, agora, é saber em qual vibração cada um de nós vai vibrar daqui pra frente

Camila dos Santos, 50 anos, escolheu essa imagem para representar suas crenças na Cura Quântica Estrelar

"Sigo uma turma ligada à cura quântica estrelar. Não é uma religião institucionalizada e aceita muito ecumenismo e vínculos com entidades da Umbanda, do Candomblé e do Espiritismo. Também dialoga com o que chamamos de Fraternidade Branca, uma metáfora usada para explicar a emanação vibrações, como raios, vindos de mestres de um plano superior que protegem o planeta Terra.

Tudo isso é um caminho muito próprio mas o que me atraiu nesse estudo foi também a ideia do que chamamos de Consciência Crística, que diz respeito a Jesus Cristo. Dentro da idéia da volta, de tempos em tempos, de salvadores da humanidade, também tratada por muitas religiões, existe a análise de que possível que diversos seres se conectem por sua Consciência Crística, que seria a chama de um Cristo cósmico que existe em cada um, para purificar o planeta Terra dos problemas que ele enfrenta.

A cura quântica estrelar ainda dialoga com os conceitos da chega de uma Nova Era, algo que há muito tempo se fala, de diferentes maneiras, até por civilizações já perdidas, como os Maias. Essa Nova Era seria o momento de 'cheque- mate' para a humanidade. Seria a mudança que traria um novo ciclo na Terra, menos egoísta, mais coletivo e igualitário.

O que me chama atenção nesse momento de pandemia é que as questões apocalípticas, em geral, levam a gente para um lugar de medo. Porém, quando estudamos as crenças e religiões sob esse ponto de vista, o primeiro ponto que trabalhamos é o combater a esse medo. A começar, primeiramente, como desapego do medo da morte como se entende no senso-comum. Ou seja, desapego da nossa matéria que, na verdade, é só uma parte da exigência pois acreditamos que ao morrer aqui vive-se em outro lugar. E trabalhamos para evoluir espiritualmente nesse sentido de que desapego do medo, do egoísmo capitalista ou daquele que se ancora na compra de papel higiênico para lidar com um fim do mundo.

A pandemia está trazendo outro princípio da Nova Era que é o da solidariedade. Ela está surgindo em todos os lugares. O vírus está despertando nas pessoas seu papel humanitário, o que é fundamental para a ideia de Consciêntica Crística. Aos meus olhos, aliás, esse vírus ou outros diversos seres com a capacidade de mudar nossa relação com o planeta podem estar, no fundo, incomodados com os seres humanos! Somos nós que estamos estamos incomodando o planeta  com nosso egoísmo, consumismo, com o capitalismo que exclui. Assim, de certa forma, pode existir uma lógica necessária para mudar nossa consciência e proteger esse planeta. Acho um conceito bem bonito, até.

O que podemos a fazer diante disso? Reaprender. A lidar com o medo, a cuidar de si e do outro, esquecer fronteira e entendermos que somos humanidade. Até porque, convenhamos, se um vírus destrói toda a capacidade do mundo de controla-lo e tira o nosso chão é porque não temos mesmo nada que assemelhe a um sistema de saúde universal, politicas públicas eficazes aos vulneráveis e por aí vai. Um vírus, portanto, evidenciou nossa profunda incompetência.

A gente está passando, sim, por um momento de expiação, por uma prova. Diferentes previsões de diferentes crenças e  denominações já haviam alertado. Agora, a questão é saber em qual onda cada um de nós vai vibrar! Vamos nos conectar ao individualismo ou ao coletivo? Vamos nos harmonizar com as pessoas de verdade ou viver ocupados ao ponto de sequer conviver com quem mora na mesma casa? E como comunidade? Vamos deixar de nos reconhecer como um grupo e deixar a vizinha passando fome? Ou decidiremos pela partilha e solidariedade?

Gosto de pensar e vibrar positivamente para não cair nesse vortex de medo e desespero e imaginar que vamos aprender a amar de verdade. Compreender que estamos na Terra, nesse sistema solar, nesse braço da galáxia e nesse contexto estrelar nos trouxe até aqui para somar ao planeta e seguir em evolução."

Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.