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A falta que elas fazem: o isolamento e a valorização das domésticas

Flávia Martinelli

17/04/2020 04h00

Faxineiras contam o que esperam do futuro de seu trabalho. Será algo vai mudar depois do coronavírus?

Com reportagem de Ariane Silva, especial para o blog Mulherias

Limpar, lavar, organizar. Sem cuidar dessas tarefas, a vida dentro de casa não funciona. Ainda assim, empregadas domésticas lidam com a falta reconhecimento e remuneração não compatível com a importância de sua função. Diante do isolamento por causa da pandemia do coronavírus, a valorização dessas trabalhadoras ganhou destaque como nunca. Um vídeo publicitário resolveu trazer esse tema ao debate e o blog MULHERIAS se inspirou nele para levantar a questão: será que na volta às faxinas elas serão mais valorizadas?

Respeito é a palavra-chave que resume os anseios dessa categoria profissional. Considerada mão de obra não-qualificada, o trabalho doméstico no Brasil paga muito mal. Quem tem a sorte de ter a carteira assinada recebe em média R$ 1.269. Para o restante, os cerca de R$ 755 por mês têm de dar conta de todas as necessidades e com frequência alimentam uma família inteira.

Em tempos de coronavírus, novos desafios foram colocados à mesa para as 6,356 milhões de trabalhadoras domésticas – tratadas aqui no feminino porque são 97% desse total, a partir de dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), de novembro de 2019. Entre essas, mais de 72% não têm contrato, direitos trabalhistas e remuneração garantida. É nesse cenário de informalidade record e muita incerteza que as trabalhadoras domésticas enfrentam o Covid-19.

"Muita gente acha que qualquer pessoa é capaz de fazer faxina, e não é verdade"

Verônica, ex-faxineira que hoje faz produção de conteúdo para a internet tem como missão levar novas reflexões sobre as condições de trabalho do ofício de limpeza.  (Foto: Divulgação Faxina Boa)

A paulistana Verônica Oliveira, 38, uma das participantes da campanha, é dona da página Faxina Boa no Facebook, com 91 mil seguidores, onde compartilha memes e informações de interesse para as trabalhadoras domésticas. A página está organizando doações para as colegas que estão sem renda durante a pandemia.

Moradora de Itaquera, ela parou de trabalhar com faxinas há dois meses para se dedicar à internet. "Foi até uma sorte, eu parei um pouquinho antes da pandemia", conta ela, que começou a faxinar após ter sido afastada por depressão da empresa em que trabalhava com telemarketing. No início, limpou apenas a casa de amigos, para complementar a renda. Mas encontrou nas redes sociais uma forma atrair novos clientes e se conectar com outras mulheres que compartilham a profissão e experiências.

Faxineiras  precisam se sentir mais fortes, mais orgulhosas do que fazem. E as pessoas que as contratam precisam entender que precisam respeitar quem estão colocando dentro da casa delas"

Faxina Boa também é o nome do grupo no Facebook vinculado à página, onde quase 7 mil mulheres encontram espaço para conversar, tirar dúvidas e somar forças para enfrentar a pandemia. Algumas contam que estão tendo que trabalhar normalmente, outras são gratas por estarem recebendo as diárias mesmo liberadas para ficar em casa. Muitas, porém, estão sem renda e foram dispensadas de supetão mesmo trabalhando há anos para os mesmos empregadores. Sem carteira assinada, foram dispensadas sem aviso prévio e sem receber qualquer compensação financeira.

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Menos de 50% das mensalistas no Brasil estão protegidas pela formalização do trabalho, com patrões e patroas descumprindo a lei que determina que essa modalidade só pode ser efetuada com vínculo empregatício reconhecido, garantindo direitos. Se houvesse fiscalização, a situação de boa parte das domésticas durante a atual pandemia estaria bem melhor.

Verônica, assim como a maioria das domésticas brasileiras, nunca trabalhou com carteira assinada como faxineira. "Dei sorte com os meus clientes", diz sobre as mais de 200 faxinas que fez durante os três anos na profissão. "Situações de desvalorização ou humilhação não chegaram em meia dúzia." Ainda assim, ela passou por situações difíceis com clientes que não tinham noção das dificuldades das diaristas: "A gente não tem renda fixa, era raro eu conseguir juntar para fazer uma compra do mês. Se a pessoa atrasa um pagamento é conta que eu deixo de pagar na data certa, é comida que eu deixo de comprar, e acontece com mais frequência do que se imagina".

Para Ingrid Sara dos Santos, 28, a situação das domésticas durante a pandemia é reflexo da desvalorização que as trabalhadoras sofrem, e tem relação com o passado escravocrata do Brasil. "É comum patrões e patroas acharem que as domésticas têm que fazer tudo; é um hábito que vem desde a escravidão, principalmente as mulheres negras, que foram destinadas desde aquela época a fazerem esse tipo de trabalho a troco de nada", critica.

A paulista do Jardim Novo Record, em Taboão da Serra, é doméstica desde os 15 anos e tem o ensino médio incompleto. Começou ajudando a irmã numa casa de família e aos 16 foi trabalhar na casa de uma senhora idosa, acumulando as funções de cuidado e faxina. Nunca teve outra profissão. Agora, com a pandemia de Covid-19 e sem contrato de trabalho, depende de patrões continuarem pagando as diárias que não pode fazer por conta da quarentena.

Minhas patroas até se conscientizaram com o coronavírus, pediram que eu ficasse em casa, me pagaram o primeiro mês. Agora esse mês que entra eu não sei como que vai ser, se elas vão me pagar ou não"

Ingrid Sara dos Santos participou da série de vídeos com Verônica, contando sobre sua trajetória e experiências trabalhando em casas de família (Foto: acervo pessoal)

Ingrid Sara dos Santos participou da série de vídeos com Verônica, contando sobre sua trajetória e experiências trabalhando em casas de família. "O trabalho doméstico profissional faz falta na pandemia. As pessoas agora vão cair em si de que está precisando de alguém dentro da sua casa trabalhando" (Foto: acervo pessoal)

Andrea do Carmo Viana, 54, começou como diarista há 2 anos. A moradora do bairro Paulo Sexto, em Belo Horizonte (MG) sempre foi dona de casa. Ainda que não seja considerado um ofício, por não ser remunerado, o trabalho (sim, trabalho!)  garantiu cuidado e conforto para a mãe, que faleceu há poucos anos, e também na própria residência que divide com o marido. Virou diarista para complementar a renda da família.

enfrentando os horários de ônibus reduzidos:

Andrea mora em um bairro que está com o comércio quase todo fechado, mas com muita gente saindo para trabalhar e enfrentando os horários de ônibus reduzidos: "Os ônibus que vi passando estavam lotados, indo e vindo para o bairro" (Foto: acervo pessoal)

"Tive sorte, começando a trabalhar com pessoas conhecidas." Ela presta serviço aos patrões do marido, que é motorista particular da uma família. "Só peguei gente bacana, humana, que reconhece", conta. Apesar de não ter carteira assinada, está entre as poucas domésticas que se sentem seguras em relação ao futuro próximo, com renda garantida mesmo sem trabalhar durante a pandemia. As diárias do mês inteiro já foram pagas por uma das contratantes. Outras têm transferido toda a semana os valores para que ela possa ficar em casa.

O que mais peço a Deus é que elas estejam sentindo a minha falta, não quero que elas me esqueçam"

Quando pensa em patrões fazendo faxina por si sós, Andrea sinaliza a importância do trabalho que ela faz. "Não que elas não tenham capacidade, mas trabalham em outros empregos, então fica difícil", comenta.

Campanha formou comunicadores populares para ouvir domésticas e produzir vídeos

Verônica e Ingrid se encontraram na campanha produzida pela Allma Hub Criativo, empresa de mulheres especializada em trabalhos de impacto social. O projeto, em parceria com a Agência Solano Trindade, formou 5 jovens da região do Campo Limpo como pesquisadores sob orientação de uma antropóloga dentro do projeto Arrastão, ONG que atua na região. Eles foram a campo entrevistar as mulheres de suas famílias.

Fundadora do Allma, Ana Paula Dugaich, de 46 anos, explica o conceito: "a gente queria escutar o que as faxineiras, diaristas e empregadas domésticas estavam pensando e sentindo. Quais eram seus anseios, como elas se relacionavam com as casas onde trabalham e até com o produtos químicos que podem fazer mal." Ao todo são 6 vídeos com depoimentos. Assista mais um deles, sobre planos para o futuro. Todas querem algo melhor que o simples limpar, lavar e organizar daqui pra frente. Até lá, no entanto, querem ser valorizadas como merecem.

O restante da série pode ser conferido no YouTube da marca.

Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.