A atriz Priscila Guedes explica o contexto da região da Vila Clara, bairro periférico na divisa com Diadema, onde o adolescente Guilherme, de 15 anos, foi morto por oficiais da polícia militar de SP: "existe uma longa história de resistência aqui. Querem exterminar nosso futuro, como tentaram no passado. Isso tem que acabar. Faz séculos que estamos exaustos." (Foto: Acervo pessoal)
Com reportagem de Jéssica Ferreira, especial para o blog MULHERIAS
"Uma fumaça imensa no horizonte, fogos de artificio estralando no ar, cheiro de bomba, sirene no pé do ouvido, som de helicóptero urubuzando a gente igual mosca. Tudo em direção à região da Vila Clara, bairro vizinho ao meu", relatou a atriz Priscila Guedes, de 23 anos, na última terça-feira (16.06), em sua conta do facebook.
Moradora do distrito paulistano do Jabaquara, ela havia acabado de saber que um jovem negro de 15 anos tinha sido morto pela polícia. "Tô em desespero, em prantos, o menino e eu temos o mesmo sobrenome, tenho tanto parente em Cidade Ademar [que faz divisa com o bairro] que, só por Deus, é capaz de ser meu primo."
Priscila descrevia o que podia ver ou ouvir da revolta da população e da repressão policial diante dos protestos contra o assassinato do garoto Guilherme Guedes. Pela TV, reconheceu os lugares onde brincou na infância, agora "tomados pelo incêndio e bombas policiais". Viu parentes do menino em lágrimas. Investigações ao longo da semana apontaram que um sargento da Polícia Militar seria o autor e outro soldado da mesma corporação, cúmplice do crime que mobilizou a periferia da Zona Sul.
"A região mais uma vez tomou conta do noticiário por tragédias. Parece que nada muda, sabe?", desabafa a atriz que nasceu na comunidade Buraco do Sapo, também no bairro de Americanópolis como a Vila Clara, que fica a 16 quilômetros, ou cerca de 1 hora de ônibus, da estação de metrô Jabaquara. "É uma região com pouquíssima estrutura. A única representação do Estado que existe é a polícia." Antes da pandemia, ela ia com frequência visitar a avó que ainda mora lá e, como a de Guilherme, é empregada doméstica.
Nem de longe foi a primeira tragédia que os programas de televisão mostram da vasta região – que ainda faz divisa com o município de Diadema. O açoitamento absurdo de um adolescente que tentou roubar um chocolate no supermercado Ricoy, por exemplo, foi outra notícia da área. A prisão injusta da dançarina Babiy Querino mais uma, só para ficar em três episódios.
"Babiy foi minha colega de estudos, uma referência para mim na dança, foi revoltante ela ficar na cadeia por quase dois anos por ter sido falsamente acusada por roubo a partir de depoimentos de vítimas que a teriam reconhecido pelo cabelo crespo!" Em comum entre as histórias da vizinhança que ficaram famosas está o racismo. Também não é um acaso.
Falar desses territórios é explicar a relação dos corpos que os habitam"
"Essa foi uma região preta, de ocupação negra desde os tempos da escravidão", pontua Priscila. Jabaquara, que em tupi significa "toca da fuga", faz alusão aos quilombos que ali se instalaram. A região pertencia a uma das sesmarias do Padre José de Anchieta no século 16 e, depois, foi mata que servia de abrigo e rota de escravizados a caminho do mar.
Uma das peças de teatro que Priscila encena , "Mato Cheio", é livremente inspirada numa travessia de escravizados pelas linhas férreas da região até o litoral. Como uma tentativa de mudar a realidade de histórias de violência de Guilherme, Babiy ou outros vizinhos da região, no espetáculo três personagens caminham em busca de "reformar o passado, tragar o presente e construir outra possibilidade de futuro".
Com os sugestivos nomes de Gasta-Botas, Salgada e Ninguém de Oliveira Neta, os personagens são mobilizados por Fogo, também chamada por "Picita". "É uma mulher negra, não-ficcional, fato que a história pretende apagar", explica Priscila. Assista a encenação, transmitida no Festival Vem dar Close no dia da manifestação por Guilherme:
A presença negra no Jabaquara permaneceu mesmo quando fazendeiros invadiram aquelas terras. Resistiu, ainda, ao abandono das plantações deles após a abolição. "Aos nossos descendentes pretos, então, somaram os nordestinos, que foram se instalando e fazendo um caldo cultural muito rico nesse chão." Até que o metrô chegou, na década de 1960.
A especulação imobiliária, como de costume, inflacionou e gourmetizou o custo de vida, expulsando os mais pobres para longe. Dessas ocupações distantes de serviços públicos e infraestrutura básica surgiram bairros periféricos como Americanópolis, onde fica a Vila Clara, além dos distritos de Cidade Dutra, Cidade Ademar, Pedreira, Grajaú, etc.
"Onde nasci, há quem nunca tenha entrado num centro cultural ou pisou numa casa de cultura mas sabe bem como é o ser abordado com violência pela polícia. São corpos habitando espaços de guerra, tendo o Estado contra eles" (Foto: Acervo pessoal)
A infância na quebrada da atriz foi parecida com a de muitos. "Crescemos na rua, enquanto a mãe vai trabalhar. Eu ficava jogando bola e, de verdade, queria muito, muito, tinha desejo de ter uma biblioteca, mexer no computador, encontrar outras pessoas." Hoje, mais madura e a primeira da família a acessar o ensino superior, Priscila trafega em outros espaços e sabe como a arte é libertadora.
Não faltam artistas e heranças para serem celebradas na TV além dos crimes. Faltam é locais para nos apresentarmos, lugares para reunir juventude. Falta respeito aos nossos direitos, à nossa vida… Falta justiça."
A atriz destaca a presença negra nos batuques, na arte e na literatura. "Nós temos saraus de rua, como do Calundu que agora está em campanha de informação para evitar a Covid [vídeo abaixo]. Temos vários Maracatus históricos, como o Ilê Alafia que está há 20 anos em atividade! Tem também o pagode Na Disciplina, que é mais que um encontro de músicos mas um movimento muito importante de reconhecimento cultural dentro da periferia e que agora está distribuindo cestas básicas para toda comunidade do Jardim Miriam."
Existe até um palácio que celebra a cultura negra na região. O Palácio de Xangô, como é apelidado terreiro de candomblé Axé Ilê Obá, foi fundado em 1975 pelo pai Caio Xangô quando ele teve que se mudar do bairro do Brás, também por causa da especulação imobiliária. No Jabaquara, construiu o terreiro imenso, o primeiro tombado na cidade de cidade. Sua sucessora, Mãe Sylvia de Oxalá, além de líder religiosa, desde 1986 e até 2014 foi voz política ativa contra o racismo.
O terreiro permanece e um dos únicos aparelhos culturais administrados pelo poder público na região homenageia a Yalorixá no Centro de Culturas Negras Mãe Sylvia de Oxalá. "Mas é escondido, pouco fomentado para os periféricos porque fica perto do metrô, na área mais nobre e distante para quem mora longe. E essa região aqui é muito grande, inclui Diadema. É totalmente desproporcional, não consegue atender." A maioria dos centros culturais são independentes, assim como as soluções dos artistas e expoentes que valorizam o legado da comunidade.
- Centro Cultural Jabaquara (Divulgação)
- Mãe Sylvia de Oxalá (Divulgação)
Priscila cita como referência e inspiração a jornalista Semayat Silva e Oliveira, de Cidade Dutra, que é uma das criadoras do coletivo "Nós, mulheres da periferia". Desde 2014, o grupo reúne repórteres e editoras moradoras de diferentes regiões periféricas de São Paulo. Além de narrativas jornalísticas sob a perspectiva de gênero, raça e classe, o grupo promove oficinas e em lançou a mostra artística "Quem somos [POR NÓS]" (2015) e o curta metragem "Nós, Carolinas" (2017).
- Semayat, do coletivo "Nós, mulheres das periferias"
- O escritor Allan da Rosa
O escritor, historiador e capoeirista Allan da Rosa, também é outro personagem da área. Antes de fundar uma editora independente de livros para publicar autores das periferias, foi feirante, office-boy, operário em indústria plástica, vendedor de incensos, livros, churros, seguros e até de jazigos de cemitério. "Ele é um escritor maravilhoso, capaz de para mostrar a fala popular como ninguém. É uma potência literária que só lendo mesmo para entender", recomenda Priscila que, por instantes, entra em silêncio durante a entrevista.
"E, sabe? Eu fico pensando em tudo o que esse garoto morto pela polícia, o Guilherme, perdeu… Tudo para ler, sentir, descobrir. É como se fosse um irmão, um primo meu. Como se fosse eu mesma na idade dele, aos 15 anos, tentando entender minha própria negritude e como eu poderia me fortalecer."
A violência policial, lembra Priscila, chegou ao limite e o mundo inteiro está dando um recado. "E esse lugar aqui também está se manifestando, é preciso ouvir. Gritamos por espaços seguros para celebrar a nossa linda memória ancestral. O Jabaquara é um território preto e sagrado. Queremos potencializar o talentos que já temos! Estamos cansados de ser profanados. Faz séculos que estamos exaustos."
Cimento que vira monumento: protesto contra a morte de Guilherme. "Estamos exaustos há séculos" (Acervo pessoal)
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