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Ataque do PCC é pano de fundo de filme de diretora premiada da periferia

Flávia Martinelli

10/11/2017 11h14

Com reportagem de Fernando Sato, especial para o MULHERIAS

Jéssica Queiroz tem 24 anos e é diretora de cinema premiada. Ela ainda mora no bairro onde nasceu, Ermelino Matarazzo, na Zona Leste de São Paulo, com a mãe que foi empregada doméstica e o pai que faz assentamentos de pisos de mármore. Todo dia, ela perde quatro horas na condução para o trabalho do outro lado da cidade. Na última quarta-feira, Jéssica saiu um pouco mais cedo da agência de publicidade onde é montadora de filmes e foi direto para a Cinemateca, o templo do cinema brasileiro, onde seu curta-metragem "Peripatético" estreou – e que terá novas exibições hoje (10/11), às 15h, e amanhã, às 17h, na Semana Paulistana de Curta Metragem no Centro Cultural São Paulo (CCSP).

Não é pouco, não: moradora de Ermelino Matarazzo, na Zona Leste de São Paulo, Jéssica Queiroz dirigiu "Peripatético", curta contemplado por melhor roteiro e escolha do juri no Festival de Brasília que, em sua 50a. edição, pela primeira vez premiou negras. Além de Jéssica, a diretora Glenda Nicácio ganhou pelo longa com "Café com Canela" (Foto: Divulgação Academia Internacional de Cinema)

Na plateia estavam amigos e familiares eufóricos, mas não foi a primeira vez que Jéssica viu seu filme na telona. Essa emoção ela teve no Festival de Brasília, há dois meses, quando "Peripatético" foi exibido para cinéfilos. Seu filme foi um dos 12 selecionados – entre os mais de 730 inscritos de todo o Brasil – para participar da mostra competitiva mais antiga do Brasil. Jéssica saiu de lá com dois prêmios: o de melhor roteiro, que foi assinado pela amiga Ananda Radhika, e o de escolha do júri. Na menção honrosa dos jurados, a justificativa: "Por retratar um dos muitos episódios de violência da história recente do Brasil sob uma ótica pessoal e original; por ressignificar códigos já postos no cinema propondo a descolonização das narrativas".

"O cinema da classe média branca encaixota toda a periferia nos papeis de bandidos e sofredores"

Quem é da periferia também percebe que "Peripatético" é especial. Pra começar, os personagens não são bandidos. E isso num filme que tem como pano de fundo o mês de maio de 2006, quando 564 civis foram assassinados, na maioria pela Polícia Militar, como retaliação à morte de 33 oficiais e às 74 rebeliões da facção criminosa Primeiro Comando da Capital, o PCC.

Maio de 2006: toque de recolher, 564 civis mortos; a maioria pela Polícia Militar. Oito a cada 10 assassinados eram jovens de até 35 anos, mais da metade negros e 94% deles não tinham antecedentes criminais (cartaz extraído do filme)

Os chamados Crimes de Maio não tiveram atenção da Justiça e os assassinatos não foram elucidados. Desse cenário, surgiu o grupo Mães de Maio, pedindo justiça pelos seus filhos. Foi a partir deste movimento de combate aos crimes do Estado que Jéssica e a roteirista Ananda, de forma lúdica e poética, criaram os personagens de "Peripatético".

Histórias da vizinhança sem estilização da violência e da tristeza

Também diferem do cinema nacional os três jovens periféricos que não são nada "coitadinhos". "A periferia é plural, tem muita personalidade e diversidade. Quis me ver representada, fora desses papeis de criminosos e sofredores que o cinema branco e de classe média nos encaixota", diz a diretora.

A personagem Simone, ao centro, (Larissa Noel) procura emprego, Thiana (Maria Sol) quer estudar Medicina e Michel (Alex de Jesus) não sabe o que quer da vida: "Quis me ver representada, fora dos papeis de criminosos e sofredores que o cinema branco e de classe média nos encaixota"

No curta, a personagem Simone aparece procurando emprego, frustrada e desanimada com as negativas das entrevistas. Thiana vai prestar vestibular para Medicina e estuda sem parar porque sabe que não poderá ficar mais um ano sem trabalhar. Michel ainda não faz ideia do que quer fazer da vida. São histórias recorrentes na vizinhança de Jéssica. Mas a estilização da violência e da tristeza aqui passam longe. E surgem angústias, desejos, o dia a dia e os sonhos de personagens poéticos e reais de uma comunidade viva. (Assista ao trailler no final desta reportagem e o vídeo com entrevista de Jéssica ao MULHERIAS aqui.)

15 minutos de filme que questionam as reais possibilidades de jovens pobres ultrapassarem limites e contrariar as estatísticas

Em uma das cenas, há a comparação do vestibular que Thiana vai enfrentar com uma competição de natação. Na raia da piscina olímpica, vê-se quatro competidores. Um é nadador profissional. Corpanzil, toca, óculos e postura de atleta. Ao seu lado, uma menina com medo de nadar e suas boiazinhas nos braços. Tem ainda o menino nitidamente inseguro que o narrador informa que só sabe dar braçadas no mar. E a jovem negra periférica que quer cursar Medicina.

Em uma cenas, o vestibular é comparado a uma competição de natação. Nas raias, um esportista profissional, uma menina com medo de nadar, um rapaz que só dá braçadas no mar e a jovem personagem periférica que tenta uma vaga na faculdade

Dado o "start", todos caem na água. A câmera então se depara com a estudante sob as águas. Ela olhando para cima, de onde chega uma luz quase solar. Quais as possibilidades de ultrapassar limites e vencer o jogo? Como quebrar barreiras? Quais as chances de driblar as estatísticas? Os 15 minutos de "Peripatético" trazem essas questões. "Quanto eu tinha uns 14 anos, passava as noites em claro pensando: o que vai ser de mim? Como vou me manter? Eu não tinha noção no que a vida ia se desdobrar e isso me angustiava demais."

"Quando se é periférico, o cinema, a publicidade, esses lugares não são nossos. Por isso quando a gente coloca o pé na porta e invade é tão importante"

Ela conta que tem muita sorte, além de estar de olhos abertos para o que acontece à sua volta. O cinema foi mais uma obra de acaso do que uma perseguição em um filme de aventura. Na escola em que cursava o ensino médio, E.E. Jornalista Francisco Mesquita, em frente à sua casa, Jéssica fez parte de um coletivo de teatro e literatura chamado "Os Mesquiteiros", trocadilho do nome da escola com os personagens do escritor romântico francês Alexandre Dumas, do século 19.

Mas o grupo discutia, principalmente, de textos e poesia periférica e marginal. Os grandes nomes do gênero, como Sergio Vaz, Ferréz e Sacolinha faziam parte das conversas, das leituras e dos sonhos dos integrantes do coletivo. Inscreveram e ganharam um projeto no Programa VAI (Valorização de Iniciativas Culturais), que subsidia atividades artístico-culturais para os jovens de baixa renda de regiões desprovidas de recursos e espaços culturais. Com esse apoio, realizaram vários saraus e entre os equipamentos que adquiriram para o registro dos eventos, havia os de vídeo e de filmagens. "Mas a gente não sabia usar", lembra.

Tudo começou com o coletivo de literatura que concorreu e ganhou verba de edital público para realização de saraus na periferia. Uma câmera foi comprada para registrar os eventos mas ninguém sabia usar. Jéssica foi fazer um curso e se encantou com o cinema. Hoje, defende que negros e periféricos devem ser bem representados na tela, "de uma forma positiva, para fazer com que as pessoas saibam que a periferia é um lugar possível"

Gastava todo o salário de estagiária no curso de direção e vendia o tíquete-alimentação para se manter

Nesse momento, surge um dos coordenadores de arte de sua escola, Rodrigo Ciríaco. Ele quase obrigou Jéssica a se inscrever no Projeto VideoCriar, um curso básico sobre o que é esse universo do audiovisual, feito pelo Instituto Criar, voltado para formação de profissionais de TV, cinema e novas mídias. "Fui meio que por obrigação, mas na primeira aula me deu um 'click'. Era aquilo que eu queria fazer da vida: cinema."

Ela concorreu a outro projeto na entidade e ganhou uma das poucas vagas. Com outros jovens periféricos, Jéssica passou um ano estudando cinema em regime de imersão de aulas de manhã e à tarde, e entendeu as diferenças entre as várias realidades de outras quebradas. Um dos seus educadores percebeu aptidão de Jéssica para a montagem e edição dos filmes e lá foi ela destrinchar as possibilidades. No programa de encaminhamento de jovens para o mercado de trabalho, ela virou estagiária de uma grande agência de publicidade.

"Minha família no começo não entendia o que eu estava fazendo. Eles me perguntam: 'você vai aparecer na televisão?' E eu respondia que não, só ia aparecer meu nome nas letrinhas do final"

O cinema ainda estava longe mas foi chegando de mansinho. "Ganhei 50% de bolsa de estudos no curso de dois anos de Tecnólogo de Direção Cinematográfica na Academia Internacional de Cinema. No primeiro ano, meu salário só dava pagar isso e eu vendia o tíquete-refeição para me manter. No segundo ano, arrumei um emprego melhor, ainda bem."

Cachês simbólicos, apoio para finalização e muito perregue: o filme foi financiado por um edital de R$ 38 mil. "Foi um trabalho de teimosos"

E assim ela dirigiu e produziu "Vidas de Carolina", sobre a poesia de Carolina Maria de Jesus, autora de "Quarto de Despejo: Diário de uma favelada", uma das primeiras e mais importantes escritoras negras do Brasil, e "Número e Série", uma aventura sobre alunos de uma escola pública de periferia que invadem uma biblioteca.

Mãe, tias e vizinhas cozinharam para equipe de 40 pessoas nas gravações que foram feitas no próprio bairro

O curta premiado "Peripatético" foi produzido com a verba de um outro edital do Programa VAI, de R$ 36 mil. "Foi uma teimosia produzir um filme com esse orçamento." Cinema é arte de endinheirados, desde sempre. Um curta como esse, numa conta simples, não sairia por menos de R$ 80 mil.

Amigos toparam cachês simbólicos ou fizeram tudo na faixa. Mãe, tias e vizinhas de Jéssica se uniram na cozinha de sua casa para dar conta da alimentação da equipe de 40 pessoas que, durante seis dias, gravou as cenas no próprio bairro. A inscrição do filme no Festival de Brasília foi feita antes da finalização do filme, sem tratamento de áudio e imagem. Foi a equipe selecionadora que intermediou apoios para esse acabamento.

"Se você for preto e pobre, a bala perdida acha um dono"

Mas esse foi o jeito para ela e seus parceiros se verem representados no cinema nacional: dentro de uma comunidade viva, de identidades e personalidades diversas, com alegrias e tristezas, problemas e soluções, vínculo e empatia. Mas sem esquecer, também, do contexto social onde estão inseridos. "A periferia não é só crime", ela não cansa de dizer. "Mas tem essa ligação", completa, lembrando que a força nas quebradas é maior que a tristeza e que essa relação não precisa ser estigmatizada – como faz a polícia, abertamente, quando afirma que a abordagem de suspeitos por lá é diferente dos bairros nobres.

"Se você for preto e pobre, a bala perdida acha um dono." Assim uma das personagens se dirige à câmera num ponto crucial do filme. Jéssica conta que todos os seus amigos lembram até hoje, onze anos depois, o que estavam fazendo nos dias dos ataques do PCC e da resposta assassina da Polícia Militar nas periferias de São Paulo. Não tem mesmo como esquecer. Mas, caso aconteça, taí o filme  para lembrar.

 

 

 

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Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.