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Escritora abre caminho no mundo masculino dos campeonatos de slams

Flávia Martinelli

15/11/2017 13h20

"Preta. Poeta. De raro instinto": entrevista em versos com Mel Duarte, inspiração nos saraus de todas as quebradas (Foto: Pedrinho Fonseca)

"Descobriu nas palavras um refúgio do chicote vida e desde então as mantém como fortaleza." Assim Mel Duarte define sua trajetória. Aos 28 anos, ela se apresenta como poeta, produtora cultural e slammer. Centrais na vida da artista, os Slams são campeonatos de poesia em que cada participante recita uma obra autoral de até três minutos. Os poemas podem ser escritos antes ou improvisados, não precisam ter nenhum formato específico e ganham notas de 0 a 10, dadas por jurados escolhidos na hora.

Mel é uma das fundadoras do coletivo Poetas Ambulantes e ajuda a organizar o Slam das Minas – SP, um dos grupos de mulheres que têm tomado espaço dentro das batalhas – antes protagonizadas apenas por homens. Também é autora de dois livros: Fragmentos Dispersos (2013) e Negra Nua Crua (2016).

A poeta só conheceu um primeiro sarau aos 18 anos. "Até então, eu praticamente não contava pra ninguém o que eu escrevia. Achava que o que eu falava não ia interessar, que a minha trajetória não seria importante." Ao reconhecer ali suas mesmas inquietações entre as pessoas, percebeu que "o que elas falavam pra mim me fortalecia e o que eu falava pra elas também servia de fortaleza." 

Pai artista e mãe holística

Em 2016, Mel foi uma das palestrantes mais prestigiadas na FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty, veja vídeo abaixo) e se tornou a primeira mulher a vencer o Rio Poetry Slam, campeonato internacional de poesia. Neste ano foi convidada para representar o Brasil no festival literário Festilab Taag, na Angola. Ela está escrevendo o próximo livro, que planeja lançar no segundo semestre de 2018. Também estuda outras plataformas para apresentar seu trabalho, como o teatro e a música.

Mel é filha do famoso grafiteiro Ozi Duarte, que nos anos 80 forrou os escombros de uma favela com réplicas do logotipo da marca francesa Louis Vuitton. Os casebres haviam sido derrubados para dar lugar a imóveis de altíssimo padrão. Também como crítica, Ozi criou o personagem Luis Vitão, um leitão que foi exposto em galerias de Paris com a inscrição L.V., sigla também usada na grife de moda francesa que é símbolo de luxo. A mãe de Mel, Selma Amaro, é massoterapeuta "super envolvida com coisas holísticas, astrologia e tals".

Os textos da slammer que falam de machismo, feminismo, racismo e temáticas sociais são os que mais repercutem entre o público: "esses assuntos tomam maior notoriedade do que os poemas que falam de questões espirituais ou sobre amor". Mas Mel também usa palavras doces e suaves – como seu jeito de falar até os poemas mais contundentes.

Em entrevista em rimas ao MULHERIAS, Mel responde com trechos de poemas porque suas palavras servem de fortaleza e inspiração para tantos jovens periféricos.

MULHERIAS: Como você se define, Mel?
Vir de uma família humilde,
Me fez entender quem são meus heróis de verdade
(…)
Cresci brincando na rua, nas vielas pela quebrada
Filha única sim, mas nunca mimada
Desde cedo aprendi que nada, nunca me viria de graça.
(..)
Enquanto o mundo gira sua manivela
Eu vou na contra-dança
Encontro forças na trajetória de Angela Davis e Marighela
Pois o fascismo ainda reverbera
E meu corpo dessa luta não cansa.

M: O seu pai, Ozi Duarte, é grafiteiro famoso ligado à cultura de rua. Como as experiências com ele influenciaram a sua caminhada?

Com o pai, Ozi: "só pode ser adotada" (Foto: Sato do Brasil)

Me lembro quando cantava para mim
Num momento só nosso
Na hora do banho.
Ele – branco.
Sempre brando,
Carrega dentro de si todas as cores do mundo!
Por ser um pouco surdo
Quando na rua peço por sua atenção:
Pai!
Olhares em volta entregam o susto!
É mesmo? É nada!
Ela deve ser adotada…

P: O que a poesia representa para você?
É RESISTÊNCIA viver de arte, palavras, ritmos
É amor e respeito a si mesmo escolher focar
nesses labirintos.
Para nós é um mundo de riscos,
inconstância na venda de livros, discos…
Mas certeza de estar em paz com o que
oferece para os outros
E consequentemente consigo

P: E a iniciativa de criar o Slam das Minas? Qual foi a intenção?
PRA QUE ANDAR a sós se unidos somos mais?
Se todos temos ensinamentos pra passar,
Se todos novas coisas podemos absorver.
É tão chato olhar pro mar
Sem alguém pra rir junto quando a onda bater.

Com as parceiras do Slam das Minas -SP: o slam surgiu em Chicago (EUA) nos anos 1980, ao mesmo tempo que a cultura hip hop, e chegou ao Brasil nos anos 2000. A sua origem é de periferia, pois a ideia era reunir trabalhadores em rodas de conversa e poesia

P: O que você tem a dizer às  mulheres das periferias?

É treta preta, muita treta
Trabalhar longe e a passagem só aumenta
Enquanto eles compram jatinho com a verba da merenda
(…)
Passam-se os anos e ainda querem nos manter em silêncio
Dizem que estamos em uma nova era, então porque de
tantos resquícios?
Crianças ainda passam fome, meninos nem chegam a
ser homens
Enquanto mulheres sofrem sendo espancadas a cada
15 segundos.


"É preciso retomar ensinamentos dos antigos,
Aplicar o matriarcado e praticar o respeito mútuo!
Para que a pequena parte que impera
Orgulhosa por nascer com o pau entre as pernas
Lembre que também saiu de um útero…"

Aos machistas: "Só que a minha geração não fica mais calada, Hoje minha boca é meu escudo e minha espada" (Foto de Bruna Monique)

P: Você fala com frequência sobre o machismo. Sente a plateia masculina incomodada?

Meu nome é doce mas não se iluda
Em tempos de guerra é preciso convocar seu Buda
Astuta sigo na labuta
Tá bom! Você quer espaço? Eu chego pro lado, não
precisa de disputa
(..)
Pois durante anos fomos silenciadas, amarradas
Abusaram das nossas, as convenceram de que não eram nada
Só que a minha geração não fica mais calada,
Hoje minha boca é meu escudo e minha espada.
(…)
Pois mais de 400 mulheres morrem ao mês, sendo 60%
delas negras
Só que esses dados sempre são omitidos.
O machismo mata todos os dias!
(…)
Mas foi-se a época em que nos escondíamos
Pois hoje já posso avistar,
no horizonte um batalhão de mulheres em punga
Prontas para atacar!

P: Racismo é um tema central da sua poesia. Como tocar nessa ferida?
O tempo passa, o tempo passa
E nunca nos ensinam a gostar da nossa raça.
O tempo passa, o tempo passa
Eles dizem que o racismo já acabou e você abraça?
(…)
Cabelos crespos, unhas pintadas
Pra atender uma clientela que nem a repara
No salão de beleza onde trabalha,
Só é bonita quem tem a pele clara.
(…)
Sua pele escura pode te comprometer
Alguém na rua já fugiu de você?
Alforriado não tem vez e sempre perde
Eles criam suas próprias leis e você cede.

P: O que você tem a dizer sobre a cultura do estupro?
Verdade seja dita:
Você que não mova sua pica para impor respeito a mim.
Seu discurso machista, machuca
E a cada palavra falha
Corta minhas iguais como navalha
NINGUÉM MERECE SER ESTUPRADA!

"Até quando teremos que suportar?
Mãos querendo nos apalpar,
Olha bem pra mim! Eu pareço uma fruta?
Onde na minha cara tá estampado: Me chupa?!"

(Foto: Pablo Saborido)

P: Como falar de amor?
Eles pediram pro acaso juntar,
Suas almas que tanto imploravam aos céus
Alguém que lhes pudesse completar
E esse alguém finalmente apareceu.

Ela – samba em dia de festa na favela
Ele – Bola a rolar no campinho de terra
Ela – Pele quente, sabor canela
Ele – Bandeira de paz em dia de guerra
(…)
Eles se entregam e viram exceção
Pra uma vida de regras, quebram o padrão.
Filhos do caos recorrente
Corpos de epiderme aderente.

 

P: Um poema para finalizar essa entrevista:

Quando a noite cai
E a mente trabalha em silêncio
Meu corpo por vezes me diz: Vai!
Mas reflito sobre tudo que penso
Nem sempre o impulso é seguro
Nem sempre traz acalento.
E por vezes peço: Pai!
Livrai-me do que não sustento.

(Colaborou Juliana Avila Gritti, especial para o MULHERIAS)

 

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Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.