Aulão de funk vira espaço de cura. “Alunas contam que até transam melhor”
Flávia Martinelli
22/01/2019 04h00
Professora do projeto AfroFunk Rio, Taísa Machado ensina não apenas o passinho, mas a força e a potência do corpo feminino nas oficinas "Proibidona", "Tamborzão Vibes" e "Afrofunk Queer"
Por Monise Cardoso, especial para o Blog MULHERIAS
É na Lapa, dentro da casa do grupo de teatro "Tá Na Rua", na zona norte do Rio de Janeiro, que Taísa Machado estimula mulheres de diferentes classes sociais, cores e idades a descobrirem o poder da sensualidade do corpo feminino por meio do funk. As aulas já passaram por Belo Horizonte, São Paulo, Recife, Cuiabá e Argentina, além de rodar por vários bairros cariocas. Ao todo, mais de mil mulheres já dançaram nas oficinas do Afrofunk Rio. "O ritmo é um grande vírus e chegou com força em todos os espaços e pessoas, periféricas ou não", afirma a professora.
O baile todo: mulheres de diferentes idades e classes sociais se reúnem em aulão de funk no Rio de Janeiro
Atriz, escritora, dançarina e pesquisadora de dança, sexualidade e produções periféricas, Taísa cresceu e vive no Complexo do Chapadão, na Pavuna, Rio de Janeiro. A artista multimídia é cria dos bailes funks cariocas, mas passou a encarar a dança como profissão em 2014, quando se tornou integrante do grupo de teatro "Tá Na Rua" do diretor Amir Haddad. "Passei a performar no farol com um amigo e descobri que viver da arte era o meu caminho", conta. Foi no coletivo que Taísa teve acesso à dança afro e aprendeu boa parte do que sabe com Eliete Miranda, uma das principais professoras de dança africana do Brasil.
Os aulões surgem quando a carioca se viu desempregada e sem grana, ainda em 2014. "Me reuni com três amigas e criamos o afrofunk que, no início, era um grupo que cantava e dançava funk e rap. Fizemos shows no Circo Voador, em festas da Nike e nos apresentamos no Capão Redondo, em São Paulo. Além disso eu dava aulas uma vez por semana. Foi um período incrível", diz.
O grupo se desfez e, hoje, a carioca comanda o projeto sozinha e tem como foco reunir mulheres em um espaço acolhedor, seguro e que as ajuda a explorar toda a potencia que existe na sexualidade feminina, tudo isso, é claro, ao som de funk. As aulas custam R$50 e acontecem três vezes por mês em três diferentes oficinas: "Proibidona" só com funk proibidão cantado por mulheres; "Tamborzão Vibes", voltada para os ritmos afros com percussão e, a mais nova, "Afrofunk Queer", focada na energia sexual feminina que pode habitar todos os corpos.
A maior parte das alunas de Taísa é formada por mulheres brancas de classe média. Mulheres negras também são frequentes, mas em sua maioria, universitárias e não necessariamente inseridas na realidade da favela. Moradoras das comunidades cariocas passam pelas oficinas, mas em menor número. "Todas vêm na busca da descolonização do corpo feminino e saem transformadas. Quando voltam, me contam o quanto passaram a transar melhor", diz a professora
Rebolar é arte-terapia
Taísa se define como uma "pirihippie" – mistura de piriguete com hippie. Isso porque, durante as aulas, fala muito sobre energia, sobre a importância de alimentar corpo, mente e espírito e sobre a ligação histórica do povo negro com a dança.
"A dança nos mantém unidos, dançando e saudando entidades. As religiões de matriz africana precisam da dança pra se comunicar com os orixás. Na favela criamos uma festa dentro da guerrilha, temos uma expressão que fala 'Até bandido dança', porque é isso, o cara está lá com o fuzil atravessado, mas está dançando.'
"Nós somos o povo que mais têm depressão e a gente dança pra estimular a serotonina, a ocitocina, para se curar e se manter vivo. Desde a escravidão"
Além da troca energética, quem frequenta as oficinas da carioca também se depara com um fator pouco comum em aulas de dança: não existe coreografia. "Essa a minha única regra. Me incomoda assistir aulas coreografadas porque sempre tem alguém perdido. Comigo as mulheres evoluem, sim, conforme frequentam, mas a minha premissa é deixar que elas sejam criativas, que aprendam a lidar com os seus corpos e criar suas próprias linhas de dança", explica.
Antes ou ao final das oficinas, Taísa sempre puxa uma roda de conversa com as alunas. A ideia é discutir como elas se sentem com seus corpos, com as novas descobertas. Por incrível que pareça, a professora define a oficina, que opera a muitos decibéis e que têm, em média, 35 mulheres suando e fazendo muito barulho, como um espaço de cura.
"Terapias ocupacionais costumam ser zen, né? Silenciosas. Não têm conexão com a realidade. Mas eu tive que aprender a me curar em meio à guerra que sempre me cercou onde cresci. É o que tento passar nas aulas."
A professora também percebe a diferença na segurança das meninas de uma aula para outra. "Na primeira vez muitas chegam de legging, mas na volta já aparecem de shortinho". Não é raro alunas levarem suas mães, convidarem as amigas e fazerem do lugar um verdadeiro ponto de encontro. Muitas meninas vêm de outros estados, sozinhas, resolveram aparecer no aulão e saíram com amigas novas.
As preparadas: aulão de funk no Rio de Janeiro celebra a sexualidade feminina e atrai universitárias, classe média carioca e turistas de outros Estados
Uma das pautas mais importantes discutidas pela criadora do AfroFunk Rio durante as rodas de conversa com as alunas é como as mulheres podem se conectar com a sensualidade lidando também com o tom hostil que o funk pode adotar quando fala sobre corpos femininos. "Para mim o funk é um grande jogo sexual. Têm os que querem, de fato, diminuir e ofender e têm os que estão apenas falando claramente sobre tesão e sexo. Precisamos nos blindar e assumir que gostamos mesmo de rebolar, de sensualizar e que tá tudo bem. Além disso, é essencial compreender a realidade do lugar onde o funk nasce", diz.
Para saber mais: https://www.facebook.com/afrofunkrio/
Sobre o autor
Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.
Sobre o blog
Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.