Antes sem nome definido, o feminismo periférico é a força da quebrada
Flávia Martinelli
08/03/2019 05h00
Com colaboração de Stefanni Mota, Monise Cardoso, Hysabella Conrado e Gabriela Rodrigues, especial para o Blog MULHERIAS
O que se costuma chamar de periferia não é um bloco único, e cada quebrada tem sua própria identidade. Assim como o feminismo. "Só o plural é capaz de respeitar tantas peculiaridades e singelezas", diz a pesquisadora Juliana Borges, negra, estudante de antropologia e autora do livro "O que é Encarceramento em Massa?", da coleção Feminismos Plurais.
De acordo com a especialista, não existe uma base teórica que trate como um todo as lutas das mulheres periféricas. "De fato, as pautas se aproximam do feminismo popular na luta por direitos e políticas públicas como saúde e moradia, mas não se resumem a isso. Essas mulheres estão construindo diversas formas de resistência e sobrevivência há muito tempo, desde sempre, mesmo que não se identifiquem como feministas."
Hoje, Dia da Mulher e aniversário da Universa, o blog Mulherias, que nasceu de espaços de irmandades femininas das quebradas, pede licença para falar desse movimento sem nome que é personificado e praticado diariamente em cada mulher periférica ao, simplesmente, existir.
É o caso de Maria Cecília de Luna, ou melhor, a Dona Lurdes que chegou da Paraíba nos anos de 1960 na Vila das Belezas, na Zona de Sul de São Paulo, e se reuniu com mulheres do bairro para montar uma escolinha porque não havia creche no local. Logo o grupo se tornou uma associação de bairro que cobrava saídas da prefeitura para a precariedade do saneamento básico, luz, asfalto e moradia da região. Tudo, elas conquistaram na marra.
Com mais de 80 anos, Dona Lurdes passeia na biblioteca que leva o seu nome e cuida das duas hortas que fez questão de estruturar no Centro de Educação Unificado (CEU) Casa Blanca. Ele foi construído no terreno baldio que ela mesma reivindicou para uso digno. Uma das hortas tem fins pedagógicos, outra é para os idosos. 'Todas são cultivadas com muito carinho", ela ressalta. (Foto: arquivo pessoal)
O local que Dona Lurdes "plantou" tem piscinas, oferece educação básica, aulas de informática, cursos de graduação e pós, atividades culturais todos os dias para a comunidade e em várias linguagens (música, dança e teatro), recreação e uso livre dos espaços. Na mesa de café coado na hora com bolo de fubá, Dona Lurdes sorri satisfeita enquanto diz: "ninguém faz nada sozinha, minha filha, isso foi uma coisa que a vida me ensinou."
Leia também
Liberdade, igualdade, fraternidade
"Mãe-crecheira" da periferia é solução para falta de creche há 12 anos
"Sempre fui feminista, mas não sabia"
Movimentos feministas se reorganizam após eleição de Bolsonaro
Roseli, durante o mutirão feminino para a construção da casa de sua vizinha: solidariedade feminina diante do barraco de madeira (Foto: Acervo pessoal)
O feminismo periférico também esteve diariamente na vida da operária Roseli Maria Meneguesso. Ela não se conformou em ver o sufoco de uma mãe de cinco filhos que morava num barraco de madeirite no fim de sua rua, em Diadema, no bairro Jardim Arco Íris. Falou com vereadores, buscou auxílio moradia na prefeitura. Sem sucesso, bateu de porta em porta nos vizinhos pedindo doações e conseguiu material para a construção de uma casa para a mulher. Conseguiu dinheiro só para pagar o pedreiro e durante três meses. Então, Roseli e outras mulheres doaram seu tempo livre para trabalhar de servente e assentar tijolo por tijolo para a vizinha.
Coral das lavadeiras de Almenara: união de mulheres no trabalho e a busca por novos saídas pela arte (Foto: @rededeartesanatojequitinhonha)
Há muito feminismo nas lavadeiras da cidade de Almenara, no interior de Minas Gerais, que desde sempre fazem música enquanto caminham juntas até a beira do Rio Jequitinhonha. Carregam trouxas de roupa nas cabeças, cantam versos que falam de dor, de fé e do cotidiano pelo sustento de suas casas. A cantoria é antiga e por volta de 1990 virou um coral que viajou em shows por outros países. Se do trabalho veio a arte, dela surgiu a força de um feminismo que busca novas saídas e novos espaços.
E quantas mães não são aquela que está no busão angustiada? Sua maior indignação talvez não seja a diferença salarial entre homens e mulheres, mas a flexibilização de horários para que não seja mal vista pelo chefe, e a precariedade do transporte público, que rouba diariamente seu tempo com os filhos. A necessidade de creches nos locais de trabalho ou perto de casa, para não mais deixar os pequenos cuidando um do outro, é assunto do feminismo das mulheres das periferias. Assim como a concentração de empregos nos centros das cidades. Por que não há incentivos fiscais para empresas que poderiam se instalar no seu bairro?
"A mulher preta periférica exerce o feminismo por si só, não precisa fazer parte de um coletivo, de um grupo", diz Michelle Marques, de 40 anos, que é agente de redução de danos numa unidade de acolhimento de usuários de álcool e drogas. "Sou mãe de quatro filhos, sozinha, crio todos sem ajuda de ninguém e atravesso São Paulo para trabalhar. Vivo no meu quilombo, tentando sobreviver da melhor maneira possível, para que eles não sofram o ostracismo político que a periferia impõe."
É um feminismo diário que vai muito além do sutiã ou de escolhas individuais. O feminismo nas margens das cidades e dos olhares da sociedade é uma causa coletiva. É luta de todas nós.
Para saber mais: O documentário "Mulheres Periféricas – Apoiadas por mais de 500 mil manas", produzido pelo coletivo Fala, Guerreira, composto por mulheres da periferia de São Paulo, registrou em depoimentos as diferentes experiências e visões sobre f
Sobre o autor
Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.
Sobre o blog
Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.