Casa ecológica em favela é exemplo de solução ambiental em SP
Flávia Martinelli
21/03/2019 04h01
Com reportagem de Victória Durães, especial para o blog MULHERIAS
Em vez de muros, são bambus espaçados que margeiam a rua de terra batida do acesso principal da favela. Entre as cercas, é possível antever a horta. Há pés de couve, taioba, quiabo, todo tipo de temperos, legumes e umas abóboras grandonas. A trepadeira de flores cor-de-rosa enfeita o portão principal da casa de 100m2 que deixa à mostra estruturas de paredes feitas com barro, garrafas de vidro e erigidas com o suor dos moradores da favela Vila Nova Esperança, onde moram 600 famílias, no extremo oeste de São Paulo, já na divisa com o município de Taboão da Serra.
Ali funciona o espaço sustentável da comunidade, ou seja, um complexo composto por áreas de plantio e de convivência, com brinquedoteca, biblioteca e cozinha industrial. Tudo foi feito com técnicas de bioconstrução que, segundo o Ministério do Meio Ambiente, adota tecnologias de mínimo impacto ambiental por meio de técnicas de arquitetura adequadas ao clima, que valorizam o tratamento correto de resíduos, o uso de recursos matérias-primas locais e o aproveitamento dos conhecimentos das próprias pessoas da região. Saberes ancestrais de construção de pau-a-pique, também conhecida como taipa de mão, por exemplo, é bioconstrução.
"Na Bahia tem muita casa de barro, é difícil ver de madeira, papelão. Quando a pessoa não tem condição, ela constrói com a terra e foi isso o que fizemos aqui", relembra a moradora e líder comunitária Maria de Lourdes Andrade de Souza, mais conhecida como Dona Lia.
Foi Dona Lia, líder comunitária da Vila Nova Esperança, quem mobilizou a comunidade e voluntários para erguer o imóvel ao longo de três anos em mais de 50 mutirões de trabalho. "Acho que mais de mil pessoas ajudaram fazer tudo isso aqui. Dá muito orgulho"
Baiana de Itaberaba, ela aprendeu a técnica quando criança, vendo a família e vizinhos construindo moradias. Para fazer um muro, ela conta que o primeiro passo é fazer a estrutura de hastes de madeiras na vertical, fixas no chão. Depois, deve-se entrelaçar o bambu na horizontal. Aos poucos, os quadrados vazios são preenchidos com barro.
"É um erro associar a bioconstrução à pobreza, e à falta de estética", diz a paisagista Angélica Brückner. "Precisamos transformar esse olhar, em nome do resgate da cultura e para reduzir a nossa produção de lixo no mundo."
Sim, é seguro!
O bioconstrutor formado em Edificações e Saneamento Ambiental Rodrigo Calisto, de 31 anos, foi voluntário técnico na obra e explica que a técnica "é segura, durável e uma possibilidade real em muitos casos de moradia na periferia, porém ela gera autonomia e não interessa para a indústria."
Especialista em perícia de avaliação de imóveis, ele lembra que já no ano de 1554 tínhamos em São Paulo o Pateo do Colégio, que foi construído pelos jesuítas em pau a pique. "Dá pra perceber que são técnicas utilizadas há séculos e que funcionam". A construção foi demolida em 1896, mas até hoje é possível ver uma parede da antiga edificação no jardim do Pateo, no centro da cidade.
O metro quadrado saiu por menos da metade do preço
De acordo com o Sindicato da Indústria da Construção Civil, o valor médio de um metro quadrado de obra erigido com materiais convencionais é de quase R$ 1.400 no Brasil. Em todo o complexo construído na Vila Nova Esperança, Lia acredita que gastou, ao longo de mais de dois anos, no máximo, R$ 600 por m2.
A verba veio por meio de doações e venda de marmitas e produtos da horta. Foram construídos: 15m² da biblioteca, 36m² da cozinha, 8m² da brinquedoteca e área de convivência interna e 35m² na área de convivência externa.
"Como toda obra, bioconstrução tem custo. Mas existem vários meios para baratear", diz o especialista em soluções ecológicas nas periferias Diogo Menezes, de 29 anos. "Partimos do mapeamento da região para buscar os materiais mais usados e em conta", completa o fundador da cooperativa de educação ambiental Eparreh. "Se é complicado encontrar ou comprar bambu, pode ser melhor ir num ferro-velho para fazer estruturas em metal." (Foto: Acervo Pessoal)
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"Por aqui, grandes construções jogam no lixo o pontalete [madeira utilizada para fazer escora em construções com materiais industrializados] e aproveitamos isso para fazer a estrutura da casa." Além da escolha de materiais, mão-de-obra influencia muito na conta. Para construir o centro comunitário, de 2015 até hoje Lia organizou mais de 50 mutirões. "Se for fazer as contas, mais de mil pessoas ajudaram a levantar esse espaço. Da comunidade mesmo tem umas 40 pessoas que sempre vem ajudar."
E a obra não para. No próximo sábado (dia 23) são aguardadas 51 pessoas para mais uma rodada de bioconstrução, dessa vez para fazer um mini picadeiro de circo. Além dos moradores, participam estudantes, pesquisadores e todo tipo de voluntário. Para participar, entre em contato pela página da comunidade.
Como tudo começou
A"era verde" de Vila Nova Esperança tem início em 2003, com a chegada de Dona Lia na favela. Ela foi morar na comunidade com um filho depois do divórcio e passou a fazer mutirões de limpeza de entulho e lixo. "Como o caminhão da coleta passa só uma vez por semana, fomos atrás da TETO [ONG que atua em 19 países na construção de casas ecológicas em zonas periféricas] e conseguimos uma verba para construir um abrigo pro lixo, pra não ficar tudo espalhado na rua."
A favela, que ainda hoje lida com inúmeras dificuldades de infraestrutura, quase foi desocupada por ser acusada de provocar danos ao meio ambiente. "Estamos localizados numa área preservação ambiental, sabemos disso e temos consciência da nossa responsabilidade. Mas nós não sujamos esse lugar, pelo contrário, limpamos!"
A história de Vila Nova Esperança é antiga. O terreno era parte de uma fazenda. Na década de 1960, a proprietária o transformou em pequenas glebas que viraram moradia de famílias. O bairro foi crescendo mas ficou esquecido pelo poder público mesmo com a urbanização chegando nos arredores.
Primeiro, foram levados à região conjuntos habitacionais populares. Em meados de 1970 e 80, a política municipal para lidar com o déficit de moradia era criar aglomerados urbanos o mais distante possível do centro da cidade. Depois, já nas mãos de construtoras privadas, a região passou a ser alvo de condomínios de classe média com muros altos para os que queriam conciliar a vida no campo perto da metrópole. Em três lugares diferentes da área de proteção ambiental, sugiram lixões, a maioria eram aterros ilegais de detritos de construção civil.
Dona Lia conta que mesmo com todo esse movimento urbano no entorno, a comunidade de Vila Nova Esperança permaneceu ignorada. Água encanada, por exemplo, só chegou em 2005. Luz? Só em 2014… A favela foi alvo de despejo em 2011, quando o ônus por toda a poluição e devastação da mata recaiu sob os moradores. "A polícia veio aqui retirar todas as famílias mas fomos buscar nossos direitos e o juiz decidiu que temos direito de estar aqui."
Foi então que a líder comunitária pediu autorização para usar um terreno público ao lado da comunidade, que era um lixão. Dali nasceu a horta orgânica comunitária e até uma moeda local, a esperança, que passou a remunerar com legumes e verduras os trabalhadores que cuidavam do plantio. Construída em 2013, a horta ganhou um prêmio Câmara Municipal da Prefeitura de São Paulo.
A construção da biblioteca foi em 2016. "Como a nossa horta tem muitas plantas medicinais que podem evitar idas ao médico, então pensei que seria bom para todo mundo encontrar livros que explicassem como usar as ervas", explica Lia. E assim a construção começou com barro, madeira reciclada e garrafas de vidro.
A necessidade de cozinhar o excedente de produtos da horta, por sua vez, trouxe no ano seguinte a mobilização pela cozinha comunitária que oferece refeições. "O escoamento de resíduos vai direto para uma fossa de bananeira", orgulha-se Lia. Tecnicamente conhecida como canteiro bio-séptico, a fossa trata a água com o uso de comunidades de bactérias que ficam aprisionadas numa caixa impermeável. É necessário plantar árvores que gostem de muita água, como bananeiras, para tornar sistema de tratamento auto-regulável.
No ano passado, o sucesso da cozinha impulsionou a construção de áreas de convivência, com mesas e espaços para aulas e cursos. Entre eles, claro, os de bioconstrução. "Aprendo muito com a natureza. No meio ambiente tudo foi feito para todo mundo andar junto, cada um respeitando a posição do outro e fazendo o planeta girar", acredita Lia.
Sobre o autor
Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.
Sobre o blog
Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.