O brechó da periferia que se desdobrou em evento, desfile e estilo de vida
Flávia Martinelli
29/03/2019 04h05
Com reportagem de Hysa Conrado, especial para o blog MULHERIAS
"Por essa calça jeans que tô usando, paguei R$2. Essa jaqueta branca eu já tinha e o lenço no cabelo é um cachecol que eu peguei da minha mãe", diz Jaqueline Leal, de 22 anos, enquanto ajeita no rosto os óculos de lentes amarelas. Mais conhecida por Loyal ou simplesmente Jaque, ela explica que quando começou a comprar roupas nos brechós onde mora, no Capão Redondo, na Zona Sul de São Paulo, "só queria expressar a partir do seu visual o que é ser uma mulher preta e periférica." Acabou virando referência para tantas outras da região.
De tênis branco plataforma e longos dreads ruivos nos cabelos, ela conta que não demorou muito para que a ideia de montar um look gastando menos de R$ 5 começasse a chamar a atenção dos amigos do teatro do bairro. E aí, a experiência de customizar as peças de acordo com o que cada um queria transmitir de suas vivências passou a ser uma questão política e não apenas de moda. E assim surgiu o brechó LOYAL que, na tradução do inglês significa "leal", uma forma de se colocar no mundo.
Jaque Loyal, 22 anos, é estudante de Publicidade e Propaganda. Fundou o LOYAL em 2017.
Há dois anos, a ideia era apenas montar uma loja online para vender peças personalizadas entre R$5 e R$15. Mas o LOYAL se tornou um marco cultural de conceito e estilo a partir dos desfiles realizados nas Fábricas de Cultura do Capão Redondo, Jardim São Luís e Jardim Ângela, todas na periferia da Zona Sul. Já foram seis eventos, três por ano, cada um mais lotado que o outro, capazes de aglutinar até 200 pessoas.
Para Jaque, o sucesso vem da conscientização de quem não aceita mais a mensagem de que só vai ser legal se estiver usando um kit da grife estrangeira x ou y. "Se o produto não é acessível nem necessário, consumir brechó e entender sua identidade fica muito mais fácil", teoriza a estudante de publicidade e propaganda, idealizadora da marca e vendedora de uma loja de shopping.
Todos os desfiles são temáticos, mas não se tratam de temas a partir da estética, cartela de cores ou estações do ano. Mas sim discussões sobre feminismo, racismo, suicídio e violência, por exemplo. "Os assuntos são marcados pelas urgências do momento e das pessoas que fazem parte do LOYAL. Somos um movimento de moda periférico que trabalha com o empoderamento da quebrada em todas as suas vertentes artísticas, mas principalmente a moda", define Jaque. No documentário feito por alunos da universidade Anhembi Morumbi, ela vai além e conta como isso se manifesta na produção dos looks e nas ruas.
Os desfiles da marca já se tornaram verdadeiras vivências. Assim foi o de setembro de 2017, mês de campanha pela prevenção do suicídio no Brasil. Jaque percebeu a necessidade de tratar a questão em conjunto. Um mês antes do evento, durante o processo de criação e imersão para o desfile, pediu para que os participantes, que são amigos próximos e moradores da região, escrevessem ou gravassem um desabafo sobre os tipos de bullying que já tinham sofrido por causa do corpo, da cor, do cabelo e outros motivos.
Foi a partir dos relatos que escolheram juntos a trilha sonora do evento: a música Pretty Hurts, que na tradução do inglês diz que "beleza dói", da norte-americana Beyoncé. "Depois do desfile, notei diferença na vida dos modelos. Eles buscaram aceitar e compreender que comentários negativos de terceiros não devem interferir tanto na vida".
Diferentemente dos desfiles anteriores, o LOYAL abriu ao público em geral a possibilidade de ser modelo de seu próximo desfile, chamado "Corpos sem Juízo". Haverá um primeiro encontro, no dia 13 de abril na Fábrica de Cultura do Capão Redondo, e interessados poderão compartilhar vivências para participar.
Modelar no LOYAL, no entanto, não é só fazer carão e olhar para o infinito. Quem sobe na passarela tem de estar presente no projeto como um todo. "Às vezes rola um atraso, alguns só querem desfilar. Mas é muito mais importante o processo." Durante os ensaios, são feitas dinâmicas de teatro para tirar a timidez e produção de textos para que os modelos possam expressar o que sentem em relação ao tema. A proposta é que sejam pessoas que nunca se imaginaram modelos por não se sentirem dentro dos padrões. Um dos desfiles já contou com um participante que é deficiente visual, por exemplo.
O próximo desfile que será realizado no dia 4 de maio, na Fábrica de Cultura do Jardim São Luís, vai abordar questões LGBTQ+ e de pessoas que fogem do padrão exigido pela sociedade. O "lugar de fala" dos envolvidos é assunto importante e haverá representantes de cada letra da sigla que significa lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, queer e pessoas que não seguem orientação sexual heteronormativa ou binarismo de gênero.
Editorial LOYAL Capão 2018. Modelos: Clara Xavier, Jaque Loyal, Eduarda Carvalho, Iuri Fernandes, Isac Oliveira e Gustavo Feitosa. Foto: Estevam Fotografia. Produção: Jaque Loyal.
Para se ter ideia da profundidade dos assuntos abordados nas coleções do LOYAL, Jaque já escolheu o Triângulo da Morte como tema. A denominação foi dada aos bairros do Capão Redondo, Jardim São Luís e Jardim Ângela na década de 1990 por causa do alto índice de homicídios que registravam diariamente. Na época, a região foi considerada a mais perigosa do mundo. O desfile tocou nessa ferida porque "é um ciclo, não tem fim", definiu Jaque. De fato, ainda que a situação tenha melhorado, os bairros continuam, infelizmente, na lista dos 10 mais violentos da capital.
No vídeo de abertura do evento, Jaque narra o período obscuro pelo qual passava a sua quebrada. "Aqui quem fala é mais um sobrevivente. Uma sobrevivente. Olhe pra mim! Não me vê, não é mesmo?! Anos atrás isso só era pior (…) Capão, uma das pontas do famoso Triângulo da Morte, dois homicídios por dia, eram muitas mortes por mês, isso do que sabemos…. E os que foram jogados nesse mato aqui ao lado?".
Em 14 de abril de 2018, data que marcava um mês do assassinato da vereadora Marielle Franco, o LOYAL realizou um desfile que falava sobre feminismo. Apenas artistas mulheres se apresentaram no evento e nos vídeos exibidos. "A gente achou complicado abordar apenas uma vertente do feminismo então teve mulheres trans, mulheres negras, brancas, gordas, não focamos só em uma", ressaltou. Para Jaque, o retorno mais marcante foi o relato de uma das modelos. "Ela contou que a mãe assistiu à apresentação e passou a não mais aceitar as situações de machismo que vivia em casa."
Ditando tendência
Como toda marca que vira desejo de consumo, LOYAL tem sido copiada. "Algumas pessoas compram as peças em outros brechós e customizam com o logotipo. Acho muito legal. São pessoas que foram ao desfile, se identificaram, levaram a ideia para fazer na própria calça em casa".
Luana Villalva é uma das admiradoras do LOYAL que customizou a blusa com o nome da marca. Jaque Loyal conta que só esse ano, pelo menos cinco pessoas já copiaram a marca em peças que não foram feitas por ela.
As peças mais procuradas no LOYAL são os jeans, que seguem a tendência do "destroyed" (destruído). Camisetas com o nome da marca são queridinhas. Os pedidos costumam ser feitos pelo perfil do brechó no Instagram. É possível especificar a cor e a tipo de logotipo. Registro do LOYAL no aniversário de 106 anos do Capão Redondo. Foto: Divulgação/Facebook
Para a idealizadora da marca, não existe um look específico que defina o LOYAL. Mas duas mulheres a inspiram na moda e na vida: as cantoras de rap Linn da Quebrada e Jup do Bairro (fotos). Ambas se autodenominam, "bixas travestys" e nos shows debatem racismo no cotidiano, questões sexuais, de gênero e de corpo. "Elas destoam de tudo e me colocam num lugar de pensar", diz Jaque. (Foto: Divulgação)
Uma vitrine para os artistas da quebrada
Jaque já quis trabalhar em revista de moda adolescente e foi estudar publicidade acalentando esse sonho de menina. Mas logo percebeu que sua vitrine estava no próprio quintal. "Publicidade periférica existe. Todos os artistas que já passaram pelos nossos desfiles estão cantando nos eventos do Capão ou estão aparecendo em shows e em rolês", afirma. A marca faz parcerias com artistas locais e patrocina o figurino do grupo de dança Set Of Beats, formado por meninos e meninas que misturam ritmos como Funk, Pop, Hip Hop, Trap.
Poetas da periferia são prestigiados pela LOYAL. Um dos desfiles contou a participação da poeta Aline Anaya, do sarau Verso em Versos. Ela recitou o poema "Abrem os Caminhos", que diz: "mulher preta até parece que não pode errar, né? Grita a sua branquitude em mim mas com certeza não é isso que vai me fazer parar. Porque eu não brigo por espaços, eu luto por fé na emancipação, a minha ancestralidade dá frutos no meu corpo e ela se estende em minhas mãos. Eu tô com elas, pra elas, as manas". Foto: Facebook/Divulgação.
Da ponte pra cá
No "Propriedade Periférica", Jaque falou sobre a importância de ter referências próximas.
O que é chegar num desfile na sua quebrada? Primeiro que não existe, mas chegar e ver seu vizinho desfilando… É isso! A representatividade tá do lado. O LOYAL diz que a moda não tá só no São Paulo Fashion Week, a moda tá aqui."
Para 2019, a meta é levar os eventos culturais do LOYAL para outras quebradas da Zona Sul, como Diadema e Grajaú. A prioridade da marca é a periferia, na visão da estudante de publicidade faz mais sentido influenciar e abrir caminhos na quebrada do que adaptar o LOYAL ao Centro da cidade.
"Não me interessa estar no centro se a quebrada não estiver comigo", afirma.
Editorial LOYAL: PÓS-PARAÍSO. Modelo: Jaque Loyal. Produção: Iuri Fernandes e Jaque Loyal. Foto: Iuri Fernandes.
Atualmente, as peças do LOYAL são vendidas apenas nos dias de desfile ou quando o brechó é convidado para alguma feira ou evento. A meta é que a partir do segundo semestre de 2019 as vendas sejam feitas também através do Instagram. Quando o evento da marca é patrocinado pela Fábrica de Cultura, o cachê gira em torno de R$700 e é possível faturar R$400 com as peças vendidas no brechó. Para Jaque, não existe o receio de uma grande marca copiar o conceito do LOYAL. "Porque é único, é um acontecimento, não são só as roupas", explica. Além disso, ela destaca que as peças são garimpos e que nunca uma é igual a outra. Modelo: Amanda Santana. Foto: Raquel Euzebio.
Sobre o autor
Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.
Sobre o blog
Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.