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Maior movimento feminino contra ditadura veio de clube de mães da periferia

Flávia Martinelli

30/03/2019 04h00

Comissão do Movimento Custo de Vida encarregada da entrega de abaixo-assinado em Brasília em 1978 – Foto: Movimento (suplemento Assuntos, set./1978)

Foi dos encontros de bordado entre mulheres nas paróquias das periferias da Zona Sul de São Paulo que originou-se um dos maiores movimentos populares contra a ditadura no Brasil. Paralelamente aos movimentos sindicais, os Clubes de Mães, criados em 1972 dentro das comunidades eclesiais de base da igreja Católica, multiplicaram-se por toda a cidade quando passaram a reivindicar creches, luz, água encanada e a questionar a alta dos preços dos alimentos.

Seis anos depois, em 1978, sob o nome de Movimento Custo de Vida, o MCV, as autodenominadas "mães da periferia" levaram mais de 20 mil pessoas à Praça da Sé num ato público para protestar contra a política econômica do governo militar. E isso porque milhares de pessoas foram impedidas de chegar até a praça com controles, inclusive nas rodovias, que proibiam a chegada de ônibus de diferentes cidades na manifestação.

A ousadia foi tanta que o movimento ainda fez um abaixo-assinado ao General Geisel, então presidente da época, com mais de 1 milhão e 300 mil assinaturas. O documento reivindicava o congelamento dos preços dos gêneros de primeira necessidade, o aumento dos salários acima do aumento do custo de vida e um abono salarial de emergência imediato e sem desconto para todas as categorias de trabalhadores. Uma ousadia descomunal na época. Em Brasília, elas não foram recebidas pelo ditador e deixaram o material — enorme, com mais de 7 quilos de papel — na seção de protocolo do Congresso. Foram acusadas de terem falsificado as assinaturas, claro.

"A única resposta oficial que receberam do governo foi um laudo grafotécnico da Polícia Federal dizendo que havia duplicidade em parte das assinaturas", aponta o historiador Thiago Nunes Monteiro, autor do livro "Como pode um povo vivo viver nesta carestia: o Movimento do Custo de Vida em São Paulo (1973-1982)". Tal acusação foi prontamente respondida pelo movimento ao explicarem que eram assinaturas de pessoas analfabetas e também de mães que assinavam por seus filhos, pois, como defendia o MCV, analfabetos e crianças também passavam fome.

Ana Dias (Foto: Memorial da Resistência de São Paulo)

Ana Dias, "mãe e militante", uma das lideranças dos primeiros grupos que fez pesquisas de preços para reivindicar melhorias, lembra: "O mais bonito era ver que aquilo que aprendi na rua e na luta não ficava só para mim, ia tipo fervilhando. Começou um clube de mães, depois dez, 20, 30, foram para outros estados além de São Paulo. E sempre liderado por donas de casa que não tinham conhecimento, mas que de repente começaram a enxergar que faziam parte dessa sociedade que só ia mudar quando tivesse muita gente, juntas, lutando pelos mesmo direitos." Mas o aparato militar não deixou passar despercebida essa movimentação. "Fomos xingadas, humilhadas, e era pela família, pelos irmãos. Nós éramos terroristas, comunistas. A igreja também jogava pedra. Nós íamos pra rua, e os homens se perguntavam: 'Essa é a mulher que saiu do fogão? Analfabeta?"'

"O MCV, também conhecido como Movimento Contra a Carestia (MCC), virou um receptáculo de vários outros movimentos sociais que marcaram o período, sendo responsável pela reocupação e repolitização do espaço público, em plena ditadura militar", afirma o historiador Thiago Monteiro. O especialista conta que MCV foi uma resposta coletiva e popular a um processo inflacionário que corroía o poder aquisitivo dos pobres, sem que houvesse a contrapartida de elevações salariais.

Com uma linguagem acessível às pessoas menos instruídas, os folhetos criados pelo movimento recorriam a imagens marcantes como a de que os salários subiam pela escada, enquanto o custo de vida disparava pelo elevador

Na década de 1970, a  desigualdade social brasileira, que já era problema de longa data, acentuou-se ainda mais. Em São Paulo, a redução do salário mínimo anual médio real, de um índice 100, em 1964, caiu para 78, em 1974, o que fez aumentar para 163 horas e 32 minutos o tempo necessário para o trabalhador adquirir a "ração mínima", um termo  estabelecido em lei que era calculado, em 1965, em 88 horas e 16 minutos mensais. É claro que isto reduziu também o poder aquisitivo das famílias. Para piorar, nas regiões periféricas da cidade, contrariando a situação atualmente vivida em São Paulo, o custo de vida – exceção feita à moradia – era ainda mais caro do que nas regiões centrais.

Em 2018 completou-se 40 anos do histórico dia 27 de agosto de 1978, quando o Movimento Custo de Vida (MCV), durante a ditadura civil-militar, colocou mais de 20 mil pessoas em um ato público na Praça da Sé (SP) para protestar contra a política econômica defendida pelo governo.

E a periferia só crescia. Pela primeira vez, a população urbana ultrapassou a rural e cerca de 2/3 dos habitantes da capital em 1970 eram migrantes. Em 1975, de acordo com a Secretaria dos Negócios Metropolitanos de São Paulo: entre as moradias da periferia apenas 46% tinham acesso à água encanada e somente 20% delas à rede de esgoto. O que existiam eram fossas negras ou esgoto a céu aberto. Nessas casas, na maioria construídas pelos próprios moradores com a ajuda de amigos e vizinhos aos finais de semana a renda familiar atingia até 3 salários mínimos e a média de moradores por residência era de 5,3 pessoas. Quem morava na quebrada gastava de 3 a 4 horas diárias no trajeto de ida e volta para o trabalho em veículos que carregavam cerca de 130 pessoas, o dobro da lotação máxima prevista.

Aprendemos muito na rua, debater com outras pessoas, a enfrentar polícia. A gente não ia pra rua de 'alegre', tinha uma coordenação, que passava a informação pros grupos de mulheres, que repassava para a família e o marido, o marido levava pra fábrica, a fábrica levava até o Sindicato, então era um círculo que aumentava e todo mundo enxergava", recorda Ana Dias

Assista ao depoimento da militante em um debate na Universidade de São Paulo.

 

Ana Dias foi esposa do líder sindical Santo Dias, morto a queima-roupa pelas costas pelo policial  militar Herculano Leonel, em um piquete da greve dos metalúrgicos de 1979, um ano depois de Ana ter participado da organização da manifestação da Praça da Sé. O enterro de Santo contou com 30 mil pessoas que protestaram contra a morte do líder operário, pelo livre direito de associação sindical e de greve e contra a ditadura.

Ana Dias, viúva de Santo Dias, no enterro do operário, em 1979 (foto Agência Estado)

"O Clube de Mães da Zona Sul de São Paulo teve um papel importantíssimo na resistência a Ditadura Militar e na luta das mulheres por melhores condições de vida para suas famílias", afirma o historiador Carlos Alberto Nogueira Diniz, da Universidade Estadual Paulista. "Apesar da existência de clube de mães e outros movimentos similares em outras regiões do pais, nenhum teve tanta importância e repercussão como o Clube de Mães da Zona Sul de São Paulo."

Em 1982, diante de outras diversas fontes de luta, como o movimento estudantil, operário e outros, o MCV já havia esgotado sua capacidade de mobilização em São Paulo. Mas isso não tira seu mérito de ter colaborado para o eclipse do regime ditatorial. 

Para saber mais e nunca mais esquecer:
O documentário de 1980 feito pelo diretor Renato Tapajós traz um um resumo das lutas populares contra a ditadura. Logo nas primeiras, é possível ver o grande protesto que ocorreu na cidade no velório de Santo Dias, marido de Ana Dias. 

Colaboraram: Victória Durães e Monise Cardoso, especial para o Blog MULHERIAS

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Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.