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Filosofia combate o embrutecimento, diz mãe de Criolo, filósofa e educadora

Flávia Martinelli

12/05/2019 04h56

Grupos organizados por mãe de Criolo que se encontram para discussões Foto: Reprodução/Instagram

Com reportagem de Hysa Conrado, especial para o Blog MULHERIAS

Maria Vilani Gomes, de 68 anos, é uma educadora que faz florescer arte no bairro do Grajaú, periferia do extremo-sul de São Paulo. Nascida em Fortaleza (CE), chegou na metrópole paulistana com 23 anos em busca de uma vida que destoasse da fome e da miséria. Em 1990, criou o Centro de Arte e Promoção Social (CAPS), um espaço que promove o pensamento humano através da filosofia e da arte. E isso bem no meio do nada, num local onde não tinha asfalto nem saneamento básico, mas que abriga uma grande efervescência cultural com rappers, grafiteiros, escritores e cantores. Deste cenário surgiu um dos grandes nomes do rap nacional, o cantor e compositor Kleber Cavalcante, o Criolo, a quem ela carinhosamente chama de "Klebinho", seu filho.

A professora que se formou em filosofia e publicou cinco livros, voltou para a escola já adulta para terminar o Ensino Médio na mesma sala que o filho rapper. Mas mesmo nessa época tinha apego pelo filosofar e começou a incentivar discussões dentro do CAPS. Atualmente, existem as rodas de estudo "Pingado Filosófico com Notas Musicais" e "Café Filosófico", que acontecem sempre no primeiro sábado do mês e discutem a filosofia e suas teorias através da música e já chegou a reunir mais de 30 pessoas.

Com atividades diárias e gratuitas, o centro de artes se mantém através da contribuição dos próprios diretores que pagam um valor mensal para custeio das despesas e do aluguel. Há também o lucro da venda de camisetas customizadas e do "Capsianos", um selo editorial que publica autores da periferia e os próprios livros da Dona Vilani. Além das rodas de estudo sobre filosofia, há atividades que abordam a história da mulher, direitos humanos, também oficinas de escrita e saraus. Nessa entrevista, Dona Vilani, como é conhecida, explica como a arte e a filosofia são necessárias para as periferias.

 

 

No barraco em que a família morou nos anos 1980 Clayton e Kleber: Foto: Acervo Pessoal

O que a fez permanecer no Grajaú depois do sucesso do Criolo?
Eu vim pro Grajaú quando não tinha pra onde ir. O Grajaú me acolheu. Cheguei em São Paulo como a maioria dos nordestinos naquela época: sem nada no bolso, com um monte de sonhos na cabeça e sem ter pra onde ir. Vim para casa de pessoas conhecidas da minha mãe em busca de emprego. Eu havia casado recentemente e queria ter filhos. Chegou um momento que eu poderia ter saído daqui, só que eu já estava enraizada. O Grajaú é o meu país. Houve uma transformação em mim quando eu mergulhei nessa quebrada, quando eu comecei a criar. Em 2009 criei o "Café Filosófico" e veio um jornalista falar comigo assim "mas você vai criar um café filosófico na periferia?", e eu comecei a chamar o povo pro café e eles perguntavam "café com o que?" e eu levava garrafões de café, bolacha. E hoje eu não coloco um café e as pessoas vão filosofar.

Em todos esses anos, a senhora tem noção de quantas pessoas ajudou a descobrir esse potencial artístico?
Não tenho, foi muita gente. Aqui no CAPS a gente deixa as pessoas muito livres, as pessoas vêm, vão e voltam quando bem querem e entendem. Nós temos cotidianamente um projeto que se chama "Rodas de construção de conhecimento", temos um "Pingado filosófico com rodas musicais", que é um filosofar sobre música para pessoas a partir dos 13 anos. No segundo sábado acontece um ateliê de escrita que é um projeto em que trabalhamos ciência e poesia. No terceiro sábado, tem roda de poesia e no último do mês ocorro o segundo módulo do ateliê de escrita que é para aprender a escrever crônicas. Nesse aí, o professor é o meu filho mais velho, o Clayton Cavalcante. Temos também a roda das psicologias, que é um estudo das mais variadas correntes da psicologia. A proposta é a promoção humana, pensar o ser humano e eu sou a coordenadora de tudo isso. 

Como nasceu o Centro de Arte e Promoção Social (CAPS) e como se deu a transformação cultural que a senhora promoveu no Grajaú?
Eu era uma mulher da periferia, num bairro sem asfalto, com saneamento básico precário, transporte precário e faltava tudo. E eu queria o mínimo para os meus filhos. Quando criamos o CAPS na minha cozinha o motivo era trazer arte para dentro de casa, para que meus filhos não crescessem embrutecidos pela nossa sorte de gente com pouco poder aquisitivo. Grajaú tem gente oriunda de todo lugar que você possa imaginar. E como o poder de criação é imanente ao ser, esse povo se juntou aqui e um começou a mostrar para o outro o que sabia fazer. E aí as dificuldades de ir buscar arte e cultura fora do Grajaú juntou a fome com a vontade de comer.

Como foi fazer esse centro cultural?
Não foi uma coisa premeditada. Eu tinha um trabalho no final dos anos 1980 com crianças, uma recreação infantil numa casa de fundos. Por meio dessas crianças conheci as mães e a arte que elas faziam: o artesanato, que valorizo e classifico como arte. Propus para essas mães a criação de uma oficina e feira comunitária de artesanato para se integrarem e fui procurar artistas no bairro subirem num palco para animar o evento. Acabei descobrindo uma infinidade de artistas no bairro! Então percebi que a gente não podia fazer só uma feira e, sim, um centro de artes.

O acesso à arte faz a diferença na criação dos filhos?
Meu Deus! Toda. Meus filhos todos são muito sensíveis, são dedicados à arte, carregam valores humanos indispensáveis à convivência em sociedade e em relação a si próprio, em relação a como viver consigo mesmo. Então foram sementes que foram plantadas, que a arte e a cultura nos ajudou a plantar e a regar.

Foto: Reprodução/Facebook

Quais os desafios de ser mãe na periferia?
Ser mãe é um desafio em qualquer lugar do mundo e principalmente na periferia porque a gente tem pouco ou quase nada de amparo quando se trata de saúde, de uma alimentação adequada e de cuidados no desenvolvimento da sensibilidade. A miséria destrói a sensibilidade. A gente tem como potência mas tem que dar muitos pulos e desatar muitos nós para desenvolvê-la.

E a senhora acha que a sociedade está se tornando mais insensível?
Insensível não, mas acredito que as pessoas estão exauridas pelo cansaço, pelas demandas, pelas exigências do dia a dia, pela exploração do ser humano. Eu nos vejo muito explorados e também exploramos o outro.

Explorados pelo trabalho?
Nós exigimos uns dos outros e não percebemos. Não falo só do patrão que explora seu empregado, mas da exploração mútua entre nós. Sempre estamos exigindo do outro muitas vezes aquilo que não conseguimos dar.

O que a senhora acha da tentativa de tirar a filosofia do currículo escolar?
Desconhecimento do real significado da filosofia não só no currículo escolar, mas nas esquinas, nos bares, nos clubes, nas ruas, nos balneários. Filosofia deveria estar em todos os lugares porque filosofar é pensar e o pensamento é um privilégio do humano. Nós aprendemos a criticar, mas não entender o porquê da nossa crítica.

Em São Paulo, com os filhos Clayton e Kleber, e o marido Cleon. Foto: Acervo Pessoal

Qual a avaliação que a senhora faz da forma como o governo atual tem tratado a educação?
Toda vida que há mudança no governo isso reverbera nas pontas, em tudo que é lugar. Acredito que a forma de pensar de quem está lá em cima deve ser uma energia para nós continuarmos resistindo a toda e qualquer negação do humano. Porque quando você trata mal a educação, a cultura, a arte, você está negando a humanidade que existe em nós. E nós, que percebemos isso, não devemos aceitar. E como é não aceitar? Continuar trabalhando pela humanização do ser. Porque a arte emana do ser e o poder é transitório. Esmorecer jamais.

Como a filosofia pode mudar o contexto da periferia?
Nós temos no CAPS um "Pingado Filosófico com Notas Musicais", que é um filosofar sobre a música. Atualmente estamos estudando música medieval. Eu confesso que o público é pequeno, mas nós somos resistentes e continuamos. 

Como foi educar meninos e homens?
Permiti que acontecesse uma via de mão dupla entre nós, acho que foi uma coisa muito democrática. Eles aprenderam muito comigo, não tenho a menor dúvida, mas eu aprendi muito com eles. Mas partiu de mim essa abertura, quando eu cheguei pro meu filho e falei "eu tô estudando na mesma sala que você, mas fica tranquilo porque aqui eu sou apenas sua colega". Um dia um professor veio falar que um dos meus filhos estava com o pé em cima da carteira, eu perguntei "Quem? Ah professor, o senhor me desculpa, mas eu não tenho filhos aqui, no dia da reunião de pais a gente conversa sobre isso". O que a gente tem que fazer é se abrir para novas possibilidades de convivência. Quando você controla, segura e se acha o dono da verdade, você fica só solidão.

Tem alguma coisa que a senhora faria diferente hoje em relação a criação deles?
Agradeço a Deus todos os dias por ter me dado os filhos que eu tenho. Eu fui para a escola com eles e eu tinha todas as dificuldades do mundo, mas eles me ensinavam as lições. O outro que trabalhou como office boy me ensinou a conhecer as ruas. E hoje o meu filho mais velho está me ensinando a escrever crônicas, que é um gênero que eu não domino de jeito nenhum. Já Klebinho me ensina um porção de outras coisas, quando eu vejo as reflexões dele acerca da conjuntura eu penso "meu Deus!". Se você conversar com a professora Cleane, que é minha outra filha, professora de língua portuguesa e inglesa, ela poderia ser uma historiadora de tão antenada que é.

A senhora se considera uma mãe coruja?
Eu acho que é uma coisa trocada. Eles são corujas e eu também. É uma ligação muito bonita que tem entre mim e meus filhos. Eles realmente fizeram a diferença na minha vida, eu não sei se eu seria quem eu sou se não fossem eles. Eles nortearam a minha vida.


"Ele levou para o palco aquilo que a gente é, aquilo é intimidade", comenta Dona Vilani sobre o dia em que Criolo recitou um dos seus poemas do livro "Varal".

Como foi a primeira vez que eles leram um livro da senhora? Eles a incentivaram a publicar?
Nós fizemos um evento de teatro no CAPS e o primeiro texto que o  Kleber interpretou quando era adolescente era meu. Era um poema que se chama "Proeza", que está no livro "Varal" e foi lindo. O Clayton já musicou letras minhas e cantou nos eventos.

Por que o seu próximo livro se chama "Abscessos"?
Tem um poema no livro que leva esse nome. Mas abscesso é muito mais para retratar como estou me sentindo nesse momento, mergulhada em um abscesso, que tá lá com algo infeccionado, latente, que a qualquer hora pode estourar, sabe? É medo, é angústia, solidão em virtude da individualidade, cada um por si num egoísmo muito grande. 

Formatura do Ensino Médio, Dona Vilani e Criolo. São Paulo, 1992.

Quais são suas referências literárias?
Bebo mais na fonte de filósofos que de poetas. Eu gosto muito de Schopenhauer e Nietzsche. Mas tem alguns poetas que eu me apaixonei, como Carolina Maria de Jesus, Clarice Lispector e Rachel de Queiroz. Mas inspiração mesmo eu tenho nos poetas da minha quebrada. Tem uma menina aqui no bairro que faz parte do Sarau Sobrenome Liberdade, ela se chama Michele Santos, ela é maravilhosa e me inspira. Tem o Márcio Ricardo, Luiz Semblantes e muitos outros. Eu gosto de poetas que transmitem essas sensações de "eu vivi isso" e na hora que declama vive de novo. 

A senhora se considera uma mulher feminista?
Sou uma mulher que combate dia e noite o machismo, mas o machismo que existe no homem e na mulher. Eu não consigo fazer o clube da Luluzinha e do Bolinha, eu sou a favor de que homens e mulheres caminhem de mãos dadas. Precisamos lutar contra isso que existe no homem e na mulher, não contra o homem ou contra a mulher. É uma construção cultural que tá enraizada no imaginário e isso é muito difícil de extirpar. Eu criei uma roda que se chama "Roda de estudo da história da mulher" e eu sempre convidei mulheres e homens, numa época em que os grupos feministas só chamavam mulheres para conversar. E eu dizia "os nossos homens precisam saber dos nossos anseios, das nossas dores, daquilo que nos incomoda, vamos chama-los para escutar". Vamos chamar aqueles que nos causam dor e vamos dizer para eles que entendemos que ele é tão vítima quanto nós. A gente tem que pensar com muito mais seriedade essas pessoas que não são mais ignorantes em relação ao machismo e continuam machistas. Então se isso for o feminismo, eu sou feminista.

Maria Vilani homenageou a cantora Clara Nunes no evento "Especial Poeta", realizado pelo CAPS nos anos 1990. Foto: Reprodução/Instagram

A senhora tem medo do Criolo ser exposto na internet por causa de algum erro machista?
Quem está na vidraça vai levar pedrada uma hora. Eu como mãe, estou sempre orando e pedindo a Deus para protegê-lo. Quem diz o que quer, ouve o que não quer.

A senhora corrige seus filhos por atitudes machistas?
Eu acho que nunca me preocupei em repreender nessa coisa da fala. Me preocupei muito mais com exemplos. Os meus filhos homens e mulheres aprenderam a varrer casa, tirar pó, a lavar banheiro, lavar louça, a cozinhar e lavar roupa. Nunca houve essa coisa de trabalho de homem e trabalho da mulher e nisso eu tive o apoio do meu marido. Ele sempre me ajudou muito. Ajudou não, porque não gosto desse termo. Ele sempre contribuiu com as tarefas domésticas. 

Fale um pouco mais do relacionamento da senhora com o seu marido.
Minha filha, não tem muito o que falar. É uma vida de sacrifícios, comunhão no sentido de bem comum e felicidade dos filhos, que é a nossa também. Até hoje nós trabalhamos pelo bem desses filhos, os elegemos como nossa prioridade e assim vamos vivendo. Espero que Deus permita que vivamos mais 45 anos.

"Espero que Deus permita que vivamos mais 45 anos", diz dona Vilani quando perguntamos do seu relacionamento com o Cleon. Foto: Reprodução/Instagram

Depois da faculdade de Filosofia, a senhora continuou a estudar?
Fiquei uns quatro anos só lecionando. E depois fui fazer junto com meu filho mais velho uma especialização em Língua, Literatura e Semiótica. Semiótica é muito difícil, mas eu gosto. E depois eu fiz uma especialização em Filosofia Clínica, Pedagogia com extensão em supervisão escolar, fiz um aperfeiçoamento em psicanálise, infância e educação, e fiz psicopedagogia. Eu gosto de estudar. Mas vou dizer uma coisa pra você: eu tenho muita dificuldade porque a minha formação foi toda defasada, não tive o acompanhamento adequado, mas isso não quer dizer que eu não goste. 

Foto: Reprodução/Facebook

O que mudou pra senhora em relação a ser mãe?
Eu sou de uma época que as mulheres não participavam do processo de registro dos filhos, eram os maridos que faziam. Hoje as mulheres já saem do hospital com a certidão na mão, isso é maravilhoso! Deus me permitiu viver pra ver isso. É dando a oportunidade a mulher de também escolher. Eu já vi muita mãe ganhar bebê e o marido chegar com a certidão de nascimento e ela ficar doente, porque não era o nome que ela queria. Eu criei meus filhos em uma periferia, numa época de muita violência, de muitas carências. Eu estava conversando com uma amiga que teve 13 filhos e ela falou "Vilane, eu não perdi nenhum!" e eu disse "eu também não!". O orgulho da gente é esse, de não ter perdido os filhos para as coisas desagradáveis que a vida oferece, para a porta larga.

Como a senhora se sente quando a procuram por ser mãe do Criolo?
Fico muito feliz, mas tento dizer para as pessoas que não sou a mãe do Criolo. Eu sou a mãe do Kleber e ele que criou o Criolo. Ele é o único responsável, porque eu não tive condições de ajudá-lo, não tive participação nessa aparição, nessa criação que é o Criolo. Então eu sou mãe mesmo do Kleber e ele carrega o Criolo. De uma certa forma ele me projeta. As pessoas me conhecem por causa dele e ser mãe dele é uma alegria, mas também uma responsabilidade muito grande. Porque ele realmente é um ser especial, iluminado.

Dona Vilani e Cleon. Foto: Reprodução/Instagram

 

 

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Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.