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Mulheres mantêm viva tradição afro na última cidade a abolir a escravidão

Flávia Martinelli

17/07/2019 04h22

Mãe Eleonora, Maria Alice e Sinhá Rosário, as matriarcas de Campinas  (Fotos: Fabiana Ribeiro)

Com reportagem de de Stéfanni Mota, especial para o blog MULHERIAS

No rodopio das saias de chita, nas rodas de samba, na reunião familiar em torno da mesa ou do fogão, as matriarcas das comunidades afrodescendentes de Campinas, no interior de São Paulo, repassam saberes ancestrais de seu povo. A trajetória dessas mulheres que  perpetuam identidades culturais populares foi registrada em fotos, textos e vídeos no projeto "Matriarcas", que está em exposição na cidade até outubro, de maneira itinerante, por diversos centros culturais.

Durante cinco meses, a documentarista Fabiana Ribeiro acompanhou de perto a vida de doze mulheres reconhecidas como detentoras de saberes do passado. "Reconhecemos a importância da narrativa, sob o ponto de vista de um dos segmentos mais invisíveis, anônimos e discriminados da sociedade brasileira: as mulheres. E dentro desse segmento, dar a devida visibilidade às mulheres negras", diz Fabiana.

De conversa em conversa, foi pela oralidade que as matriarcas mantiveram vivas as tradições. "Mas é necessário que filmes, livros e instituições se preocupam em fazer esse registro. Afinal, elas são representantes máximas de movimentos de resistência, pois defendem bravamente, todos os dias, a cultura que os registros oficiais ocultaram e tentaram apagar da história", defende a documentarista.

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Última cidade do Brasil a abolir a escravidão, de acordo com a pesquisadora Fabiana, Campinas é conhecida pela violência com que tratava os cativos. Relatos e registros apontam para a prática da escravidão até o ano de 1920, 32 anos após a assinatura da Lei Áurea. Em 2015, o advogado Ademir José da Silva, da Comissão de Igualdade Racial, da Ordem dos Advogados do Brasil, criou uma Comissão da Verdade na entidade para investigar o caso e estudar possíveis meios de reparação.

A herança escravagista para a cidade com o maior número de escravos no país no século XIX amarga um alto nível de desigualdade social entre seus bairros. Segundo o Atlas de Desenvolvimento Humano da Região Metropolitana de Campinas, de 2015, a renda per capita de regiões nobres como Alphaville e Barão do Café é de R$ 4.536,72, enquanto no Conjunto Habitacional Olímpia e Pauliceia é de apenas R$ 422,38.

Como consequência do desamparo social histórico, a cidade é a única a ter um bairro criado do zero exclusivamente para a prostituição. O panorama é retratado na tese de doutorado da pesquisadora Diane Helena, publicada em 2015, intitulada "Preta, pobre e Puta: a segregação urbana da prostituição em Campinas".

As matriarcas resistem

Sinhá Rosário, Maria Alice e Mãe Eleonora lideram grupos responsáveis por manter vivas as memórias, saberes e fazeres. Foi aos 80 anos que Sinhá Rosário, hoje aos 84, lançou um disco com composições populares próprias e está, desde 1989, à frente do "Urucungos, Puítas e Quijengues".  O grupo foi batizado com nomes de instrumentos musicais africanos provenientes da Angola: urucungos, conhecido como berimbau, puítas também chamada de cuíca e quijengues que são os tambores.

Já Maria Alice foi responsável por abrir o quintal de sua casa para um resgate da ancestralidade da própria família. A matriarca e a filha Alessandra formaram o "Jongo Dito Ribeiro" em homenagem ao seu pai, Benedito Ribeiro, que por sua vez aprendeu a arte diretamente de seus ascendentes. Hoje, a família e a comunidade entraram na dança. De origem africana, o jongo é dançado com acompanhamento de tambores e a cantoria é do tipo estrofe e refrão.

Outras três irmãs dão vida ao Ponto de Cultura Caminhos, responsável por resgatar as raízes ancestrais da cultura e artesanato afro, além de produzir e escoar produtos através da economia solidária. Mãe Eleonora gerencia a casa de grifes de vestuário afro, grupos de dança e blocos de afoxé. Mãe Isabel foi a responsável por desenvolver a economia criativa no grupo, solução de escoamento de suas produções artesanais como o bordado. Após o falecimento de Isabel, Mãe Eliana assumiu a gerência do projeto que hoje se reergue após a perda de sua mentora. Conheça mais sobre essa mulheres.

Sinhá Rosário

Aos 84 anos de idade, Rosário Antonia tem energia suficiente para ensaiar todos os sábados com o grupo Urucungos, Puitas e Quijengues, do qual é co-fundadora. Ela conta que tudo começou em 1956, quando foi eleita Rainha da Primavera. Desde então, nunca deixou de participar da vida cultural e esportiva de Campinas. Mas foi só em 1988 que criou o grupo que há 30 anos é presidido pela campineira.

Além da contribuição artística da matriarca ao Urucungos, aos 80 anos, Sinhá Rosário descobriu que o seu dom como compositora popular ia muito além do grupo quando gravou "Eu Sou Sinhá", seu primeiro disco. "Eu nem acreditei quando percebi que podia compor, até hoje a ficha está caindo", conta Sinhá. "Ciranda da Minha Terra" é o principal espetáculo do grupo e revive as tradições culturais africanas como o Coco de Alagoas (dança cantada acompanhada pela batida dos pés), Samba Lenço (dança onde os homens e mulheres enfileiram-se paralelamente, passando o lenço para escolher seu par), Samba de Bumbo (também conhecido como samba rural, com origem no jongo e batuque), Samba de Roda e Jongo (dança de roda de origem africana).

Maria Alice

Com a morte de Dito Ribeiro, a tradição adormeceu na família até ser resgatada por Alessandra Ribeiro. Filha de Maria Alice e neta de Benedito, ela conta que foi tomada de emoção ao presenciar uma roda de jongo em uma casa e cultura em Campinas. A partir do que ela chama de reencontro com sua ancestralidade, Alessandra levou a vivência para a casa de sua mãe, que abriu as portas para as rodas de jongo que passaram a acontecer no seu quintal, reunindo toda a família na dança e no batuque.

Mãe Eleonora

O Ponto de Cultura Caminhos ganhou vida a partir da resistência de Eleonora Alves. Filha de baiana e mineiro, a matriarca nasceu no Rio de Janeiro, mas foi em Hortolândia que passou a desenvolver seu trabalho cultural de resgate dos fazeres de matriz africana. Também conhecida como ONG Ilê Asé Omo Oya Bagan Odé Ibô, o Ponto de Cultura é a casa de projetos como o Grupo de Dança Afro Oju Obá, a grife de roupas afro Criolê e o Bloco de Afoxé Oya Obirin Ode.

Situado na microrregião de Campinas, o Caminhos funciona como uma importante referência cultural e um ponto fundamental para o desenvolvimento da economia solidária na comunidade, mudando a vida das mulheres da região. Tudo isso através da rememoração da rica cultura dos terreiros. Junto de Eleonora, sua irmã Mãe Isabel Alves formaram a espinha dorsal do grupo. De Isabel partiu a iniciativa de criar a grife de bordados Criolê, "os moldes do trabalho capitalista nunca me fascinaram", contou Mãe Isabel. Os bordados surgiram em sua vida como processo curativo após o assassinato de seu filho, sua referência na economia solidária em Hortolândia a levaram a palestrar pelo mundo, mas seu falecimento em 2018 paralisou as ações do grupo. Hoje, o grupo começa a retomar suas atividades pelas mãos de Mãe Eliana, sua irmã. 

Para acessar o site do projeto clique aqui.

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Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.