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Exemplo da favela: como um bloco de Carnaval virou centro cultural infantil

Flávia Martinelli

11/10/2019 04h00

Bloco do Beco abre suas portas à toda comunidade e é um centro de preservação da cultura popular da quebrada. Além das atividades infantis do Bloquinho do Brincar, a agenda inclui shows de samba, festivais, participação em feiras literárias e gastronômicas  (Foto: Reprodução)

Por Martha Raquel Rodrigues, especial para o blog MULHERIAS 

Teve brincadeira, cantoria, peteca, bola, raquete, pião, livros, merenda e, principalmente, cuidado e atenção. Foi com esse combo que Isaac, de 7 anos e Marcela, de 6, passaram a tarde da última quarta-feira. Eles fazem parte do projeto Bloquinho do Brincar que, há 17 anos, faz da Favela da Erundina, na zona sul de São Paulo, um território de educação popular, gratuita e de qualidade para as crianças da região.

Enquanto as duas crianças ocupavam a tarde no contraturno escolar, a mãe deles, Sabrina Gonçalves, 41, estava na rua a procura de um emprego. Recém-chegada a São Paulo, ela veio de Belo Horizonte para morar com sua companheira. "É um alívio ter onde deixar meus filhos, sabendo que é um lugar seguro e que eles estarão bem. Consigo ter alguma autonomia pra cuidar da casa, fazer alguns bicos e procurar trabalho."

Sabrina com os filhos Marcela e Isaac: tranquilidade para buscar emprego e fazer bicos enquanto as crianças se divertem e aprendem (Foto: Martha Raquel Rodrigues)

O Bloquinho do Brincar em 2002 surgiu da preocupação de ter, dentro da comunidade, um espaço de desenvolvimento infantil que pudesse, além de ser um lugar de confiança para as famílias deixarem as crianças, também ser um espaço de possibilidades e novas experiências.

Tudo começou em 2002 quando Arailda Carla Aguiar Vale, a Carla, e seu marido Luiz Cláudio, gestor-fundador do Bloco do Beco conseguiram, por meio de um prêmio para a Cultura da Infância do Pontinho de Cultura do Governo Federal, R$ 30 mil para a adquirir a sede do projeto infantil. Os R$ 12 mil reais que faltavam para a compra do imóvel foram arrecadados em eventos na região, muitas feijoadas comunitárias e uma campanha de financiamento coletivo. Toda a comunidade se envolveu na arrecadação e arquitetos voluntários ajudaram a pensar o espaço que hoje tem três  andares e abriga diariamente 300 crianças.

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"O participar do projeto não é apenas eles estarem no Bloquinho do Brincar, eu gosto de pensar no por que eles se interessaram por participar. Eles aprendem a se relacionar com amiguinhos, com a família. Aprenderam o que é certo, o que é errado. No Bloquinho eles trabalham a criatividade, a organização e é um espaço que desperta a curiosidade deles" explicou Sabrina, que procura se recolocar no mercado de trabalho também na área de educação infantil.

Educação periférica: às crianças, oportunidades, às mães, autonomia

Ronaldo da Silva Bozzi, 35, cresceu na Favela da Erundina e hoje é designer e educador de artes plásticas. Há pouco mais de um ano ele integra o time de funcionários da ONG que é mantida com o Fundo Municipal da Criança e do Adolescente (FUMCAD). Papel, madeira, arame, cobre, tudo pode se transformar em arte, garante Ronaldo.

O designer e educado Ronaldo, do Bloquinho do Brincar (Foto: Martha Raquel Rodrigues)

"Usamos todo tipo de material, no mês passado fizemos muitas peças sobre a cultura indígena, agora em outubro o foco é no cordel. Vamos falar sobre a cultura nordestina e já começamos a produzir um cacto. Fizemos ele com arame, depois vamos finalizá-lo com cerâmica fria e pintura", explicou enquanto mostrava o trabalho das crianças.

Izaac e Marcela exibiram com entusiasmo as peças que produziram nas aulas de Ronaldo. Orgulhosos, queriam mostrar todas as obras do ateliê, uma a uma. A mãe dos meninos, Sabrina, conta que é sempre assim: todos os dias eles chegam em casa contando tudo o que aprenderam e fizeram no projeto.

Esportes e reforço escolar

Camille Bianca Bacelar Silva, de 10 anos, está há quatro no Bloquinho do Brincar. Moradora da Favela da Erundina, ela vive com a mãe e três irmãs de 2, 11 e 15 anos numa casa próxima à sede do projeto. "Os meus dias preferidos são quarta e sexta-feira. Quarta porque é dia de aula de artes, que eu gosto e pratico bastante, e sexta porque o dia é livre e eu sempre acabo jogando futebol", conta no ateliê no terceiro andar. Quando pensa no futuro, ela fica dividida entre a paixão pelo futebol e o sonho de cursar artes cênicas e se tornar atriz de novela.

Camile: às sextas, dia de atividades livres, ela sempre escolhe jogar futebol  (Foto: Martha Raquel Rodrigues)

Além das aulas de práticas de arte, da brinquedoteca e da biblioteca, o projeto também oferece aulas de reforço escolar. Jenifer Vitória da Silva Santos, de 10 anos, começou a frequentar o projeto há 6 e manda bem em matemática. A menina que sonha em ser professora adora ajudar os amigos a sanar a dúvidas e fazer o dever de casa. "Eu gosto de ensinar as pessoas, eu adoro matemática mas também leio bastante. Aqui nós fazemos muitos jogos que ensinam também. A gente aprende brincando. Esse livro foi a gente que escreveu e desenhou", mostra.

"Gosto de matemática, de ensinar e ler. Aqui, aprende com jogos, brincando", conta Jenifer enquanto mostra o livro que escreveu e desenhou com os colegas (Foto: Martha Raquel Rodrigues)

Jenifer se orgulha de dizer que nunca tirou nota vermelha no colégio. "Aqui estudo, brinco, faço amigos e isso faz o colégio ficar mais fácil. Se eu estivesse em casa provavelmente estaria vendo televisão".

Sabrina se emociona ao ouvir a garota e concorda. "Se eles não estivessem aqui, provavelmente estariam em casa brigando e sem atividade. O Isaac é muito hiperativo, curioso, sempre fica em cima de tudo e quer participar. A Marcela era bem tímida e hoje está mais solta. Se algum dia está chovendo demais e não dá pra ir pro projeto, por exemplo, eles ficam tristes, choram", contou emocionada.

"Se esse espaço não ficasse dentro da comunidade eu não teria como deixar os meninos participarem. E aqui temos uma rede de apoio e segurança dentro do nosso espaço, né? Todo mundo se conhece, eu tenho uma relação ótima com os professores", completou.

O feedback de Sabrina é similar aos das outras mães, garante Carla, a pioneira da iniciativa. O que mais tocou seu coração ao longo dos 17 anos do projeto? "Todo dia levo uma marca", mas se entrega e conta que os depoimentos espontâneos dos pais mexem com ela. "Saber que as mães veem o Bloquinho do Brincar como um espaço seguro, de desenvolvimento e de crescimento é muito legal. Elas sempre comentam como as crianças se sentem confortáveis lá e como sentem falta quando não estão no espaço."

A educação como liberdade 

Muitas crianças chegam antes mesmo do centro cultural abrir. No período da manhã, ele funciona das 8h30 às 11h45 e durante a tarde das 13h30 às 16h45. Com média de 15 crianças por turno, o projeto é aberto para toda a comunidade e quem mora no entorno.

Fachada do Bloquinho do Brincar no meio da Favela da Erundina (Foto: Martha Raquel Rodrigues)

As inscrições podem ser feitas durante todo o ano e não há pré-requisitos. Se uma criança está fora do colégio, explica Carla, não será proibida de participar das atividades do Bloquinho, mas uma mediação com os pais será feita para que volte para o ambiente escolar.

Hora da merenda (Foto: Martha Raquel Rodrigues)

A comunidade entende a importância, respeita e contribui com o Bloquinho também. Carla conta que há um cuidado coletivo com centro cultural. Todas as janelas e portas são de vidro e o espaço nunca sofreu com depredações ou roubos. Para Ronaldo, isso acontece porque as pessoas entendem a carência de espaços como este para a formação das crianças e até dos adultos, já que os filhos replicam para os pais o que foi aprendido.

"Trabalhamos com eles coisas que impactam na família toda, como repensar consumo, desperdício, reciclagem e reutilização. Falamos sobre natureza, meio ambiente, tudo isso é levado pra casa pelas crianças", destacou Ronaldo.

"Uma forma de oprimir as pessoas é negando o conhecimento"

Essa foi a frase que encerrou a entrevista com Ronaldo e traz um debate importante. Segundo a cientista social Tainah Biela, doutoranda da Universidade Metodista de São Paulo, manter crianças das periferias longe da cultura, das artes, do lazer e do entretenimento, é um projeto político feito para tirá-las dos espaços de desenvolvimento humano. "É preciso que todas as crianças tenham acesso igual às ferramentas de crescimento intelectual porque só assim poderão disputar, lá na frente, as oportunidades de forma justa", explicou.

Sabrina faz coro: "sei que meus filhos vão ter mais oportunidades no futuro porque quando a gente cresce sendo estimulado abre os horizontes".

Como fazer parte do Bloquinho do Brincar
Para participar do projeto é preciso ter entre 6 e 12 anos e entrar em contato com os coordenadores através da página do Facebook, do site do Bloco do Beco ou pelo telefone (11) 2638-2430. 

Para colaborar com o Bloco do Beco
Você pode doar parte dos impostos da Nota Fiscal Paulista ao Bloco do Beco. O programa é um incentivo ao controle fiscal por parte do próprio consumidor que pode destinar o recurso à entidade assistencial. A Secretaria Estadual da Fazenda possibilita a doação automática: toda vez que você pedir o CPF na nota, os créditos são direcionados para a entidade de sua escolha. Para escolher o Bloco do Beco, pesquise pela Razão Social: Associação Cultural Recreativa Esportiva Bloco do Beco. É simples e rápido, basta entrar no seu login no site www.nfp.fazenda.sp.gov.br/ ou seguir o passo a passo no vídeo aqui

No momento, a entidade está fazendo arrecadação para ampliar seus espaços e atendimento. Vale a pena assistir a linda campanha:

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Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.