Como levar o cinema de guerrilha de graça para as periferias
Flávia Martinelli
17/01/2020 04h00
(Foto: reprodução Facebook)
Com reportagem de Amanda Stábile, especial para o blog MULHERIAS
O preço do transporte público e ingresso para o filme, a distância de casa até a sala de exibição mais próxima ou mesmo o ambiente pouco acolhedor de shopping centers podem barrar o acesso ao cinema de quem mora nas periferias. Em São Paulo, por exemplo, a ida despretenciosa para assistir a um filminho pode custar até mais de R$ 50 por pessoa. Puxado, né? Fora que o circuito comercial contempla cada vez menos as produções nacionais independentes ou de temática transformadora.
Foi por tudo isso que a ONG Instituto Alana criou a plataforma Videocamp. O site reúne mais de 400 filmes com potencial de impacto e disponibiliza online e de graça produções de cinema como ferramenta para debates de temas sociais. Para organizar uma exibição de cinema basta se cadastrar, escolher um filme, reunir pelo menos cinco pessoas em qualquer lugar com uma tela e depois enviar um relato contando como foi o evento. Só isso e a vontade de espalhar que o cinema é, sim, fundamental para emocionar, engajar e inspirar pessoas.
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No site há filmes com temática atual, caso do "Relatos do Front: fragmentos de uma tragédia brasileira", lançado no último ano e dirigido por Renato Martins, com depoimentos sobre a rotina entre o tráfico e a polícia militar nas favelas do Rio de Janeiro. Lá também está o impressionante "Diz a ela que me viu chorar", de Maíra Buhler, também de 2018, sobre os fortes laços entre moradores de um hotel na região da Cracolândia, no centro de São Paulo, que vivem amores tumultuados num contexto frágil e vulnerável. (Confira, ainda nessa reportagem, a sinopse desses e de outros 13 filmes que o blog MULHERIAS sugere para uma sessão de cinema no seu bairro)
"Todos nós deveríamos ter acesso à sala de cinema, o que não é uma realidade. Então, a gente costuma dizer que na falta da tela de cinema toda tela importa", pontua Josi Campos, coordenadora do Videocamp. Ela conta que por meio dos relatos recebidos entenderam que muitas exibições acontecem em comunidades e cidades que não têm cinema. "Conseguimos perceber que muitos educadores e líderes comunitários usam o cinema como ferramenta de transformação para esses territórios", diz.
Outro recurso que possibilita que as produções de cinema cheguem à espaços periféricos é a opção de fazer download dos filmes, para que as exibições não dependam de internet. "Apesar das pesquisas dizerem que aproximadamente 50% da população tem acesso à internet, a gente não tem dados sobre a qualidade desse serviço. Por isso, a opção de download é muito importante para levar essas obras a lugares que o acesso à internet é bastante restrito".
No vídeo abaixo, Josi explica os detalhes:
Hoje, mais da metade das pessoas que organizam exibições pelo Videocamp se autodeclaram educadores. É o caso de Luana Alves Andrade, professora e coordenadora do Programa de Jovens do ProSaber em São Paulo. O Instituto, que atua na favela de Paraisópolis, na Zona Sul, tem o objetivo de diminuir a desigualdade na região, atua com crianças em projetos de leitura e escrita e também realiza atividades com jovens de 15 a 18 anos.
A professora complementou o conteúdo de uma de suas aulas com a exibição do documentário "Nunca Me Sonharam", de 2017, que escuta professores, estudantes e especialistas sobre o Ensino Médio nas escolas públicas brasileiras. "A gente quis colocar em discussão sonhos e maneiras de fazer de intervenções locais", explica Luana, que ressalta a falta de para um morador de Paraisópolis gastar com cinema significa deixar de comprar comida em casa.
Na favela de Paraisópolis: exibição do filme "Nunca me sonharam" foi iniciativa da professora Luana que usa a plataforma Videocamp para complementar aulas e promover debates (Foto: Reprodução Instagram)
Já no Rio de Janeiro, a jornalista Fatinha Lima, moradora do Morro da Providência, decidiu usar o cinema para dialogar com seus vizinhos sobre política e transformações sociais. Desde 2016, ela promove o Favela Cineclube, projeto que roda o morro com um projetor e um telão debaixo do braço. Uma vez por mês, Fatinha ocupa quadras, praças ou diferentes espaços públicos com, como diz seu slogan, "luz, câmera, revolução!".
"Mesmo aqueles vizinhos mais tímidos, que não descem para a quadra, sempre se atentam em suas janelas para espiar os filmes e ouvir as rodas de conversa. As crianças, por sua vez, não se acanham em ficar o mais próximo da tela possível", conta. "Para determinar os filmes que exibimos, seguimos uma linha de filmes definidos como cinema de guerrilha", explica.
"A gente pendura o telão no meio da praça ou em lugares que sabemos que as pessoas vão passar e podem acabar sentando nem que seja por uns 10 minutinhos. Sabemos que é algo pequeno, mas importante essas pedras que a gente coloca para pavimentar o caminho, essa estrada para a democratização do cinema",diz Fatinha, do Favela Cineclube, usuária assídua do acervo Videocamp. (Foto: Acervo pessoal)
Em geral, são filmes de baixo ou nenhum orçamento, feitos por coletivos que trabalham com a escassez e "com o que se tem", muitas vezes por falta de incentivo do governo às produções cinematográficas. "É o cinema que os brasileiros que estão excluídos do mercado fazem de formas diversas: filmes de coletivos de favelas, de pessoas negras e indígenas; filmes de militância, que vão falar de violência nas favelas, sobre moradia. Tem que ter a nossa representatividade ali", explica.
No mês de janeiro, em celebração ao mês da visibilidade trans, o Favela Cineclube exibiu o documentário "Meu Corpo é Político", dirigido por Alice Riff. O longa, lançado em 2017, propõe uma conversa sobre como é ser transgênero na periferia, acompanhando o cotidiano de quatro militantes LGBT que vivem nas favelas paulistanas. Uma delas é a atriz, cantora e ativista social Linn da Quebrada, que durante o filme mostra seu dia-a-dia orientando alunos de teatro.
"É difícil a gente achar produções sensíveis e honestas com a narrativa da vida das pessoas quando se trata da temática LGBT. Sabíamos que ia ser difícil de achar um filme para exibir na última semana e aí fomos logo de cara no Videocamp e encontramos vários", conta Fatinha. Para ela, iniciativas que possibilitam que o cinema chegue às favelas de forma gratuita são ferramentas de fortalecimento da democracia.
"O cinema, sobretudo aqui no Rio, só existe em shopping. A galera da favela não tem dinheiro pra frequentar ou se vai passa na porta e não entra", explica. "A gente ama a nossa favela e sabe que culturalmente a favela ainda sofre muito, é muito excluída. Embora a gente esteja aqui numa comunidade no centro do Rio, se você não se sente pertencente à cultura, não vai ao centro cultural por mais próximo que ele seja", pontua.
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Para ter acesso à plataforma Videocamp e ter acesso aos mais de 400 títulos, basta reunir cinco pessoas, solicitar o filme e mandar uma foto do evento depois!
Moradores de um hotel no centro de São Paulo vivem amores tumultuados por sua condição vulnerável e pelo uso abusivo de crack. O edifício é parte de um programa municipal de redução de danos prestes a ser extinto. Entre escadas circulares, quartos decorados, viagens de elevador e ao som das músicas do rádio, os personagens são atravessados pelo espectro da solidão. O filme retrata um grupo de pessoas reunidas por laços fortes em frágil abrigo.
O documentário aborda o cotidiano de quatro militantes LGBT que vivem na periferia de São Paulo. A partir da intimidade e do contexto social dos personagens, o documentário levanta questões contemporâneas sobre a população trans e suas disputas políticas.
Os desafios do presente, as expectativas para o futuro e os sonhos de quem vive a realidade do Ensino Médio nas escolas públicas do Brasil. Na voz de estudantes, gestores, professores e especialistas, 'Nunca me sonharam' reflete sobre o valor da educação.
As periferias de São Paulo estão cheias de jovens com sonhos destroçados. As dificuldades que o sistema impõe, acabam fazendo com que alguns deles entrem no mundo do crime, por diversas razões, mas muitas vezes é apenas para terem o que comer dentro de suas casas. Na zona sul de São Paulo, num bairro do Distrito do Jardim São Luís, tido como um dos mais populosos e violentos da cidade, alguns jovens lutam para não seguir esse caminho. Eles são artistas, poetas, músicos e acima de tudo, sonham sim com um mundo melhor e mais justo. Em "Juventude é Revolução", entre as vielas e escadas de mais uma das tantas periferias de São Paulo, através de dois coletivos artísticos chamados "Sarau Preto no Branco" e "Sarau Verso em Versos", eles fazem esse manifesto, um grito por justiça e igualdade.
Uma investigação feita sobre jovens da quebrada por jovens da quebrada e que acabou levantando vários questionamentos sobre nossa própria identidade. Corremos atrás de dois personagens que fogem do estereótipo da cobertura das quebradas na grande mídia: Denis, um jovem evangélico de Americanópolis, zona Sul, cujo estilo passa longe do clichê do paletó e Bíblia na mão; e a Nairobi, uma tombadora, falante e estilosa, da Cidade Tirandentes, zona Leste, que ilustra bem essa nova faceta do movimento negro. Colamos com os dois nos seus rolês, nas suas compras e nas suas casas. Conhecemos suas famílias, seus passados e fomos pedir ajudar pra duas psicanalistas para descobrir como nossas personalidades são influenciadas pelas marcas, pelas famílias, pelo desejo de consumo e pelo desejo de aceitação.
Relatos do Front é um longa-metragem documental sobre segurança pública no Brasil, filmado na cidade do Rio de Janeiro. Através dos relatos de pessoas que vivem ou viveram a rotina de combate entre tráfico de drogas e polícia, tais como mães que perderam seus filhos, ex-traficantes e policiais, procuramos ouvir a voz de quem vive diariamente dentro desse conflito. Sem tomar partido, vamos apresentar ao público diferentes lados de uma mesma tragédia.
Três localidades e situações urbanas são apresentadas. Moradores, técnicos, lutadores revelam histórias de vida e de moradia, violações de direitos, ameaças de remoção e precariedades (muitas vezes não reconhecidas como tal) e trilham caminhos de resistência.
É o que eu penso e é o que eu vejo
Três localidades e situações urbanas são apresentadas. Moradores, técnicos, lutadores revelam histórias de vida e de moradia, violações de direitos, ameaças de remoção e precariedades (muitas vezes não reconhecidas como tal) e trilham caminhos de resistência.
Filmes de temática feminina:
AS HIPER MULHERES é uma produção da Vídeo nas Aldeias (VNA), um projeto precursor na área de produção audiovisual indígena no Brasil, criado em 1986. O objetivo do projeto é, desde o início, apoiar as lutas dos povos indígenas para fortalecer suas identidades e seus patrimônios territoriais e culturais, por meio de recursos audiovisuais e de uma produção compartilhada com os povos indígenas com os quais o VNA trabalha.
"Corpo Manifesto" fala sobre mulheres, seus corpos e suas batalhas. O filme explora de maneira poética as dimensões simbólicas do corpo e sua representação, costurando imagens de uma performance da artista Nina Giovelli, com entrevistas de pensadoras e militantes feministas como Djamila Ribeiro, Margareth Rago, Marcia Tiburi, Laerte, Luiza Coppietters e Jéssica Ipólito. Paralelo a isso, o documentário acompanha atos públicos feministas e mostra quem são e o que desejam as mulheres que ocupam as ruas e escancaram, com potência, fúria, poesia, humor e alegria, os mecanismos de dominação engendrados pelo poder patriarcal e pelo machismo, lutando por um mundo mais ético e igualitário.
Emprego e renda são alguns elementos que criam condições para que as mulheres se libertem das incontáveis situações de opressão que vivem na sociedade. É em busca de emancipação que milhares de meninas e adolescentes deixam, todos os anos, o interior de seus estados para tentar a vida na cidade grande. Inácia e Socorro são irmãs. Nascidas e criadas na cidade de Toritama, agreste pernambucano, as duas migraram para o Recife ainda na infância, ingressando precocemente no mercado de trabalho como empregadas domésticas. Atualmente aposentadas, elas falarão um pouco sobre suas vivências, e vão mostrar que, para além das circunstancialidades, por vezes, os mesmos caminhos podem nos levar a destinos diferentes
O documentário conta a história da vida de mulheres que são ou já foram empregadas domésticas, escancarando suas lutas e desigualdades. Ao centro, o enraizado pensamento da casa-grande sob a Senzala e o discurso do 'trabalho e desenvolvimento' que garante a manutenção da lógica serviçal, de herança claramente escravocrata: preconceitos, classismos, distâncias, muros, pontes, remuneração, relações de poder, patroas, empregadas. Narrada pelas trabalhadoras, a direção do filme é das próprias filhas, e por isso propõe também uma importante reflexão sobre representatividade e a construção de narrativas populares. Pela soberania audiovisual em todas as periferias! Pela democratização dos meios de comunicação
Como explicar para uma menina de 12 anos que ela pode ser assediada sexualmente? Que ela pode ser estuprada se andar sozinha à noite na rua? Que ela é socialmente inferior a um homem só por ser mulher? O machismo e a violência contra a mulher resultam em números alarmantes. Fizemos uma pesquisa com jovens de 14 a 24 anos com renda familiar até R$ 6 mil. 41% já sofreram agressão física e 84% já sofreram agressão verbal. Um documentário desenvolvido pela agência escola de jornalismo Énois, em parceria com os institutos Vladimir Herzog e Patrícia Galvão, com dados obtidos em pesquisa realizada pela internet e depoimentos de jovens de São Paulo, Rio de Janeiro, Belém, Salvador e Porto Alegre.
Três mulheres que combatem o machismo. Larissa é uma jovem quilombola simpática e aventureira. Raimunda Inês é líder comunitária e ocupou e conquistou a terra onde mora. Isabel é a mais experiente e faz poesias e dança forró todos os sábados.
Na semana da mulher, uma van-estúdio parou em nove locais em São Paulo e no Rio de Janeiro. O objetivo era coletar depoimentos de mulheres vítimas de qualquer tipo de assédio. Ao todo, 140 decidiram falar. São relatos de mulheres de 15 a 84 anos, de zonas nobres ou periferias das duas cidades, com diferenças e semelhanças na violência que acontece todos os dias e pode se dar dentro de casa, em um beco escuro ou no meio da rua, à luz do dia. O filme traz uma amostra significativa, 27 deles. Nos depoimentos puros, sem qualquer tipo de interlocução, acompanhamos um desabafo, um momento íntimo ou a oportunidade de falarem daquilo pela primeira vez.
Sobre o autor
Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.
Sobre o blog
Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.