Guerreiras do Maracatu: proibidas de batucar, hoje lideram grupos femininos
Flávia Martinelli
21/02/2020 04h00
A guerreira Joana D`Arc Cavalcante é das poucas a segurar o apito para comandar a bateria e a primeira e única a ganhar o título de Mestra de uma nação de maracatu-nação. Não satisfeita, ela ainda criou o Baque Mulher, grupo percussivo feminino que se espalhou em 25 cidades pelo Brasil e até no exterior (Foto: Acerto pessoal)
Nessa semana, as ruas de Recife e Olinda, em Pernambuco, se transformam em passarelas para os cortejos de rainhas e reis negros. É o Carnaval dos tambores do Maracatu, um espetáculo que vai muito além das festividades e carrega identidades de comunidades periféricas inteiras. Olhando as apresentações, hoje, é possível ver mulheres tocando os agbês, o instrumento feito com cabaças e miçangas costuradas, e também bombos, caixas de guerra e tarol, gonguê e mineiro, entre outros na bateria. Com mais atenção, vai dar para encontrar, ainda, apitos e baquetas nas mãos de quem veste saia rodada e usa flor no cabelo. São as regentes dos grupos de nações de maracatu. Nem sempre foi assim.
Há pouco mais de duas décadas, tocar instrumentos no festejo popular que existe no Brasil desde o século 17 era exclusivo para os homens. Até então, mesmo que soubessem fazer o batuque, mulheres eram proibidas de se apresentar em público. Fazer a regência das músicas e danças? Nem pensar! Questão de tradição e ponto final. Por isso, ao ver uma mulher que segura tambor ou o apito que comanda a batucada, preste atenção. Ela é, antes de tudo, uma grande guerreira.
Os postos de mais destaque num cortejo de maracatu têm nomes parecidos, mas histórias muito diferentes. No centro da festa, a coroação da rainha e do rei é o motivo da celebração. Geralmente são líderes da comunidade que têm ligações com um terreiro de Candomblé e acumulam papel de líderes comunitárias. As rainhas, assim como as mães de santo no candomblé, são muito respeitadas. Mas até o final do século passado esse era o único papel de destaque dado às mulheres. Raras, inclusive, foram as mestras de sua nação.
Cabe aos regentes o papel de coordenar a música do festejo, apitando e dando a direção da música. Na fase de preparação do cortejo, que pode durar o ano todo, ensinam a tocar e definem quais instrumentos e toadas serão apresentadas. Hoje, apesar de subverterem a proibição de mulheres no posto, mãos femininas nos instrumentos e no comando do maracatu ainda enfrentam olhares desdenhoso de batuqueiros homens. Ainda há muita polêmica.
Maracatu Encanto do Pina (Foto: reprodução Facebook)
Houve uma longa jornada até que mulheres pudessem tocar e reger. A modalidade musical chamada Baque Virado, mais conhecida como Maracatu Nação, tem ligações diretas com as hierarquias do Candomblé e é representada pelas mais tradicionais nações pernambucanas.
Mas o Maracatu Encanto do Pina é uma delas e subverteu essa lógica. A nação que leva o nome do bairro e de um terreiro de Recife hoje conta com uma mulher não apenas na regência da bateria mas também no comandado de todas as atividades do grupo. Joana D`Arc Cavalcante, de 42 anos, além de segurar o apito é a única mulher que, em 2007, alçou o posto de mestra de uma nação de maracatu. Como se não bastasse, no ano seguinte fundou o Baque Mulher, um grupo percussivo exclusivamente feminino que se espalhou em 25 cidades pelo Brasil e até no exterior, na Alemanha e Argentina.
Mestra Joana conquistou o título da nação que foi fundada por sua avó em 1980, Maria de Sônia, mãe de santo e liderança do Encanto do Pina que nunca pôde pegar no apito nem no tambor, mesmo sendo respeitada na comunidade e no Candomblé. Joana recebeu o posto de mestra de seu pai, filho de Maria de Sônia. Não é pouco, não e ela é referência para todas as maracatuzeiras do país.
Em uma homenagem homenagem na Câmara dos Deputados pelo seu trabalho no Maracatu, Joana reconheceu seu papel: "Estar à frente desse movimento de mulheres é saber ser parte de um todo como ser parte fundamental de um corpo, mas sabendo que sem as outras partes do corpo a parte que sou não teria serventia" (Foto: Divulgação)
Os maracatus-nação não aparecem só no Carnaval. Assim como o samba, são a manifestação cultural mais visível de toda uma mobilização de comunidades da periferia. As nações têm um papel importante na construção de redes de solidariedade e trabalho social. Os grupos, que atuam no ano todo, oferecem aulas de música e instrumentos e muitos, como a Nação Encanto do Pina, têm projetos voltados para a educação de crianças e o empoderamento feminino.
A construção coletiva e o apoio mútuo são princípios fundadores do trabalho da Mestra Joana e marcam também as mulheres que constroem o Baque Mulher fora de Recife. Entre elas, Roberta Marangoni, 38 anos, de São Paulo (SP) e Sofia Fajersztajn, 23 anos, de Belo Horizonte (MG). Também inspiram outras nações, caso do Baque de Mina, regido pela percussionista Daniela Ramos de, 30 anos, também da capital mineira
Sofia do Maracatu Baque Mulher de Belo Horizonte: "Mulheres sempre estiveram perto do Maracatu, afinal, Maracatu é Candomblé, e o Candomblé não acontece sem mulheres, só que as mulheres sempre estiveram em papéis coadjuvantes", afirma Sofia. Aos, 23 anos, ela é fundadora e regente do Baque Mulher em BH desde o ano passado, a regente mais jovem do grupo no mundo todo.
A regente do Baque Mulher de BH, Sofia, lembra que ouviu "atrocidades" em um antigo grupo com homens onde tentou tocar. Quando contou que montaria um maracatu apenas com mulheres, "eles disseram que eu era sexista, que era absurdo, que a gente não sabia o que estava fazendo, que não ia dar certo, que eu não ia dar conta".
Mas deu. "Até porque construímos juntas a confiança para tocar e até apitar em grupos com homens", diz Sofia. "A gente aprende muito umas com as outras, não tem um espaço para competição, muito pelo contrário. Entre os homens era, tipo: 'você não pode errar', 'se errou uma vez já era' e quereriam me tirar o instrumento para dar um outro que julgavam mais fácil." Aliás, ela completa, "não tem isso de instrumento mais fácil e nem de 'ah, ela não vai segurar o peso desse bombo'. Só um espaço só de mulheres te dá essa possibilidade."
Campanha facilitou a entrada no macaratu feminino
Em SP, o Baque Mulher da Mestra Joana é regido por Roberta (vídeo no alto). Todo ano a produtora cultural passa quase um mês em Recife ajudando a construir os festejos do Maracatu Encanto do Pina e também do Baque Mulher. "As mulheres estão crescendo cada vez mais no maracatu. O Baque Mulher de São Paulo foi criado em 2016, a partir da campanha nacional puxada pela Mestra para estimular as lideranças regionais a gravarem as loas, como são conhecidas as músicas de Maracatu, e criarem filiais no país todo", conta.
Roberta à frente do Baque Mulher em São Paulo: além de ser regente, ela ensina outras manas a coordenar grupos para multiplicar o maracatu feminino nas periferias (Foto: Divulgação)
Por causa da campanha, Roberta conta hoje é muito mais fácil para as mulheres que querem tocar encontrarem ambientes sem machismo, com apoio e solidariedade entre si para darem os primeiros passos. Hoje, ela está passando para para outras mulheres, mais novas, as tarefas de coordenar grupos nas periferias paulistas, num processo que surge "muito pelo questionamento de ter outras mulheres nessa função, da liderança, do apito, que sejam da região onde atuam os grupos", conta. A intenção é potencializar mais mulheres como lideranças no Maracatu. Ouça, aqui, a gravação de uma apresentação do Baque Mulher no Spotfy.
Nações de maracatu: a nobreza negra em terras brasileiras
A manifestação popular tem uma origem antiga, os primeiros registros datam de 1867. O escritor Guerra Peixe, em seu livro Maracatus do Recife, publicado em 1950, o relaciona à tradição de coroação de reis e rainhas "do Congo", como eram chamados os líderes negros independente da sua origem étnica. Diversos grupos (ou nações) coroavam seus reis e rainhas, competindo pelo festejo mais bonito. Com o tempo, a encenação foi dando espaço à música e assim teriam surgido os cortejos de hoje. Também fazem parte da corte príncipes e princesas, damas da corte, embaixadores, vassalos, baianas, escravos, o porta-estandarte e a dama-do-paço, que carrega a boneca calunga, que vai à frente do cortejo.
Além do Baque Mulher, o precursor, existem outros grupos só para mulheres que surgem cada vez mais no Brasil. Um exemplo é o Baque de Mina, em BH. Ainda que idealizado pelo regente Celsinho, é regido e coordenado desde 2017 pela percussionista Daniela.
Daniela, do Baque de Mina: quando os caras a viam tocar falavam "porra, essa toca igual homem", como se isso fosse elogio… (Foto: acervo pessoal)
Ela conta que o machismo também marcou sua trajetória. "Tive que provar que sabia tocar melhor que ninguém para ser aceita. No início, nem me deixavam que pegar no tambor", recorda. "Primeiro me negavam tocar. Mas, depois, quando eu pegava no tambor e mostrava o que sei fazer, eles diziam 'porra, essa toca igual homem', achando que estavam me fazendo um elogio, como se para tocar bem eu não pudesse ser mulher", lembra.
Daniela questiona até que ponto seguir a tradição sem reflexão é positivo. "É comum usar a tradição para justificar machismo, sexismo e tudo que na minha opinião é somente atraso de vida." Ela ressalta, porém, que alguns mestres homens ajudaram a abrir caminho para as mulheres no Maracatu, sim, e faz questão de cita-los.
"Um dos principais foi o senhor Luís de França, Mestre do Maracatu Nação Leão Coroado. Ele foi o mestre do meu mestre de maracatu, que é Valter França, do Maracatu Nação Raízes de África. Valter continuou esse legado de não só permitir, o que já é uma palavra péssima, mas de estimular e incentivar nosso talento, colocando um contingente grande de mulheres na percussão. Ambos foram muito criticados", conta.
Ainda que seja, até hoje, peça rara no universo do Macaratu, Daniela sabe da importância de seguir adiante. O Baque de Mina aprovou para 2020 um projeto para ampliar as aulas gratuitamente para mulheres que não têm condições de pagar por oficinas. O "Dias Mulheres Virão"em breve vai abrir as vagas e divulgá-las por meio das redes sociais do Baque. Não precisa ter instrumentos para tocar, o próprio grupo empresta tudo durante as oficinas. "É experimentar e aprender."
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Sobre o autor
Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.
Sobre o blog
Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.