"Jesus apoia o feminismo", dizem cristãs que vão marchar no 8 de março
Flávia Martinelli
07/03/2020 04h00
Por Ariane Silva, especial para o blog MULHERIAS
"A fé, sem obras de justiça, está morta", diz o capítulo 2, versículo 17, da epístola de Tiago. O trecho do Novo Testamento da Bíblia será invocado por milhares de cristãs de diferentes denominações religiosas que sairão às ruas em todo o Brasil amanhã (8/3) para somar forças nas marchas do Dia Internacional de Luta das Mulheres.
Cerca de 40% das católicas e 38% das evangélicas brasileiras se declararam feministas, segundo pesquisa do DataFolha divulgada em abril de 2019. Em comum, essa parcela concorda que Cristo apoiaria causas como a defesa da igualdade de direitos dentro e fora da igreja e a luta por avanços nas políticas públicas às mulheres.
Elas também se posicionam contra a onda política ultraconservadora e de características fascistas – que fomenta a perseguição e a violência contra minorias, a exaltação dos "valores tradicionais" e o desprezo por princípios democráticos e coletivos. "É um absurdo ver políticos usando o nome de Jesus para promover o ódio", diz a jornalista cristã Diana Bueno, de 36 anos, que organizou em São Paulo a marcha "Cristãs nas Ruas Contra o Fascismo", evento que estará presente em 32 cidades de 14 Estados e Distrito Federal. ".
A católica Laísa Silva Campos, de 27 anos, sairá às ruas em Belo Horizonte para denunciar o atual governo, que considera não representar nem as mulheres e nem os valores cristãos. "O Reino de Deus é um reino de amor, de igualdade, justiça, solidariedade. Não combina com tortura, opressão, desigualdade e a exploração dos mais pobres. Jesus não defenderia a perda de direitos, da aposentadoria, o salário mínimo sem aumento real nem o SUS [Sistema único de Saúde] sucateado. Não há em nenhuma parte da Bíblia que legitime ou sustente Bolsonaro".
A economista Raquel Morão, de 31 anos e integrante do coletivo Evangélicas pela Igualdade de Gênero, reforça a mensagem: "ser cristã é reconhecer que todos nós somos irmãos em Cristo, somos iguais, homens e mulheres, negros, brancos, indígenas. Por isso precisamos todos ter os mesmos direitos e defender os mais oprimidos."
O blog MULHERIAS conversou com três cristãs feministas sobre fé, causas religiosas e sociais e sobre como Jesus se posicionaria hoje se estivesse vivo.
As "féministas"
"Na Bíblia, você não vai encontrar Jesus desencorajando uma mana, jamais."
A jornalista Diana Bueno, de 36 anos, é cristã desde 22 anos e jamais imaginou que sua fé a fosse levar para o Cristãos Contra o Fascismo, movimento que surge em 2018 a partir da ação das mulheres cristãs de Porto Alegre e hoje reúne em todo o Brasil cristãos que não concordaram com a aliança entre algumas lideranças evangélicas e o político Jair Bolsonaro. "Ninguém se programa para criar um grupo deste tipo, é algo que não se espera que aconteça", diz a missionária que coordena o movimento em São Paulo. (Foto: Acervo pessoal)
Diana sabe que Cristo sempre foi empático com as mulheres. "Ele nos respeita. Isso sempre esteve explícito em seu modo de ser e agir. Jesus encorajava as mulheres que andavam com ele, lado a lado", opina a jornalista que foi da Igreja Metodista e hoje faz parte do movimento Liberta, abreviação de Igrejas Libertárias, em São Paulo. "Na Bíblia, você não vai encontrar Jesus desencorajando uma mana, jamais." Ela toma como exemplo a história do encontro de Cristo com a mulher da cidade de Samaria, narrada no Evangelho de João, do Novo Testamento.
O episódio narra que, cansado, Jesus foi a um poço beber água e encontrou uma samaritana. No diálogo, ele diz para ela buscar o marido. A mulher responde: "não tenho marido". E Jesus fala à mulher: "você disse a verdade, realmente não tem marido, pois já teve cinco maridos e o que você tem agora não é teu marido". A mulher, conta o Evangelho, responde com alegria: "vejo que tu és profeta".
"Muitos pregadores chamam essa mulher de vadia, prostituta e outros palavrões, como que possuídos por um 'demônio' que, para mim, chama moralidade", analisa Diana. A jornalista, no entanto, afirma que o texto bíblico não dá margem para essa interpretação.
"Jesus diz àquela mulher que os cinco homens foram 'maridos' mas não a amaram como esposa, como mulher. E sobre o sexto, Jesus já alerta para ela sair fora porque também não é marido, não." E Diana conclui: "a mulher samaritana passou por seis homens que exerciam poder sobre ela, seu corpo, desejos, afetos e identidade. Ao se encontrar com Jesus, ela passa a ter o poder sobre ela mesma, isto é, empoderamento e autonomia! Tanto que ela sai feliz e corre para pregar a libertação a todas e a todos", explica.
A marcha Cristãs nas Ruas Contra o Fascismo vai ocorrer dia 8 em 32 cidades de 14 Estados do país e Distrito Federal.
Diana é parte de uma corrente cristã de estudos que propõe uma reflexão a respeito do papel e da visão da mulher na Bíblia, a teologia feminista. "Percebo que a palavra feminismo traz medo, causa confusão muitas vezes e em alguns casos gera ódio e isso não é bom entre as mulheres. Esse não é o princípio do feminismo." Tampouco tem a ver com a fé cristã que, por sinal, prega a igualdade. "Uma das principais mensagens de Jesus Cristo foi 'amarás o teu próximo como a ti mesmo'."
Diana conta já ter visto de perto o machismo, a discriminação e o preconceito quando disputou espaço entre lideranças religiosas. "É cansativo, mas eu sempre tive na cabeça que é meu direito de estar ali também". Ela questionou, inclusive a falta de mulheres na direção do movimento nacional Cristãos Contra o Fascismo, que desde as eleições presidenciais organiza fiéis de todas as denominações para praticarem a sua fé e se oporem ao avanço das ideias da extrema-direita na sociedade. "Só havia eu e mais uma. Hoje, após muito diálogo, são seis mulheres, a maioria negras, quatro homens héteros e três homens gays, entre eles um negro."
A representatividade para ela é necessária para dar destaque aos temas femininos de hoje e das escrituras. "É ingenuidade esperar que os pastores deem destaque para as mulheres da Bíblia", comenta. Os exemplos de solidariedade feminina, aliás, a chamada sororidade, Diana encontra na Bíblia. "As mulheres retratadas eram companheiras umas das outras. Um exemplo emblemático é a lealdade de Rute a sua sogra Noemi. Imagine você, jovem, optar por seguir sua sogra em uma longa caminhada cuja chegada era desconhecida. Isso se chama sororidade feminina. É dar a mão, ser capaz de entender aquele momento e estar ali junto com outra mulher."
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"Jesus foi mais progressista que muitos cristãos hoje em dia"
Para a psicóloga Laísa Silva Campos, de 27 anos, Jesus teve uma atitude em relação às mulheres muito mais progressista do que muitos cristãos de hoje em dia. (Foto: Acervo pessoal)
Fé e ações sociais foram fundamentais na formação de Laísa. "Nasci em família católica e desde muito cedo acompanhei minha avó, que era ministra da eucaristia e voluntária em uma comunidade na periferia. Depois, fui para a Pastoral da Juventude, onde contribuí por pelo menos 10 anos, conheci as articulações das assembleias populares, com espaços de formação e contato com movimentos sociais", conta a Laísa, que é psicóloga social e entende que a igreja está inserida na sociedade em prol da transformação da sociedade.
Laísa, que presta serviços para a população em situação de rua em Belo Horizonte, trabalha na ONG de assistência social Cáritas, vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Estudante de mestrado em Ciências da Religião, ela pesquisa a participação das mulheres jovens no catolicismo e procura entender como como a visão masculina foi se tornando a única aceita dentro do cristianismo. "Um exemplo disso é a defesa do casamento nos tempos de Cristo", adianta.
Na Bíblia, há um texto que narra que Jesus foi questionado sobre o divórcio. "Perguntam a ele 'quando o varão pode se separar de sua esposa?' e, pensando na condição de abandono das mulheres na época, faz todo o sentido a resposta 'o que Deus uniu, o varão não separe' porque, até então, as mulheres pertenciam a seus pais ou seus maridos", explica. De acordo com Laísa, uma esposa abandonada ficava na miséria e era considerada ainda mais "escória da sociedade" quando abandonada. "E existem trechos que mostram que os homens trocavam de mulheres ou as deixavam por motivos muito banais, como queimar um arroz, sabe?"
Para ela, levar ao pé da letra essa e outras passagens bíblicas, portanto, não faz mais sentido. "E é fato: textos bíblicos foram escritos por homens em épocas ainda mais patriarcais que a nossa." Para ela, portanto, ser feminista e religiosa significa ter de lidar com contradições e fazer questionamentos. "Daí a importância de conhecermos a história da igreja e de valorizar a discussão dos textos bíblicos por mulheres. Isso pode nos oferecer pistas sobre a intenção de Jesus. Não existe uma interpretação pronta."
Laísa no Dia da Mulher do ano passado, com suas manas de fé e militância (Foto: Acervo pessoal)
Quanto Laísa começou a conhecer o feminismo, notou contradições em seus espaços de atuação mas, ao mesmo tempo, foi apresentada às possibilidades de mudar a condição feminina de desprivilegio e até de subalternização. "Percebi processos naturalizados e busquei ter voz, vez e lugar nos espaços. Nas relações mais próximas é sempre difícil, como em casa ou nos grupos menores de participação. Ouvi piadas e já fui chamada de radical".
Na igreja, por sua vez, ela conta que existem grupos conservadores onde o diálogo é quase impossível. Em sua trajetória , foi comum ouvir que eu jovem e que não entendia que a mulher tem uma maneira diferente de participar. "Como se a gente fosse ótima para ornamentar espaços ou assumir só as tarefas que remetem ao cuidado, ao espaço privado."
Acontece também nos grupos "que se dizem libertadores mas que não querem repensar suas práticas!" Em muitos momentos, ela testemunhou a grande participação de mulheres nas comunidades mas elas não estão em espaços de coordenação. "Quando estão, precisam provar que sabem do assunto. É um exercício extremamente cansativo de legitimação de sua voz."
Em reunião da Pastoral da Juventude (Foto: Acervo pessoal)
Nas ruas no dia 8, no entanto, Laísa irá protestar não só contra o machismo mas contra a longa, imensa, lista de abusos justificadas em nome de Deus. "Interpreto como fundamentalismo usar embasamento teológico e bíblico de uma maneira distorcida pra se beneficiar em todas as esferas", protesta. Seu posicionamento é explicitamente político. "Esse atual governo representa o conservadorismo patriarcal e não aquilo que Jesus pregava e vivia. Eles falam em nome de Jesus, mas de fato não representam aquelas ideias", dispara.
"O Reino de Deus é um reino de amor, de igualdade, justiça, solidariedade. Não combina com defesa da tortura, opressão, desigualdade e a exploração dos mais pobres. Jesus não defenderia a perda de direitos, a perda da aposentadoria, o salário mínimo sem aumento real nem o SUS [Sistema único de Saúde] sucateado. Não há em nenhuma parte da Bíblia que legitime ou sustente o governo Bolsonaro".
"Os textos bíblicos foram escritos inspirados pelo Espírito Santo. Nós, evangélicas, acreditamos nisso. Mas eles têm todo um traço daqueles tempos, da historicidade, da moral e dos costumes da época"
Para a economista Raquel Morão, de 31 anos, é preciso reler as escrituras considerando por quem e quando foram escritas. Ela, assim como as outras cristãs feministas, discorda da visão fundamentalista sobre a Bíblia, ou seja, aquela que ignora as contradições trazidas no próprio texto e defende que aquilo que está registrado nos evangelhos é absoluto e deve ser entendido literalmente, sem questionamentos. (Foto: Acervo pessoa)l
Raquel acredita que a teologia feminista está crescendo muito no mundo, principalmente na América Latina, "como uma forma de recuperar quais teriam sido as intenções de Cristo. Ao questionar as interpretações dos homens que definiram as doutrinas religiosas, ressignifica-se a vida das mulheres nos evangelhos a partir da análise da postura de Jesus com elas. Isso diferencia o que é ensinamento cristão do que é cultura da época, de patriarcado da época e herança da cultura judaica".
A figura de Maria, de acordo com Raquel, que também é estudante de teologia, foi excluída da partes importantes da Bíblia justamente por machismo, por parte de quem escreveu a história. "Mas o que permaneceu oferece pistas contrárias à interpretação de que Jesus só aceitava homens como discípulos."
A passagem bíblica que Raquel usa para exemplificar trata da visita de Jesus à casa de Maria de Betânia e Marta. "É curioso notar que é Marta quem fala para Jesus mandar Maria ajudar a fazer a comida. E Jesus responde: 'não, deixa Maria aqui que ela escolheu a boa parte'. Relatos bíblicos informam que, nesse encontro, ela estava sentada aos pés de Cristo. Quando a gente vai estudar a fundo, descobre que só sentavam aos pés do mestre aqueles que eram seus discípulos. Maria de Betânia, portanto, é reconhecida por teólogos como discípula de Jesus numa época em que nenhum rabino aceitava mulheres como discípulos."
Raquel faz parte do coletivo Evangélicas pela Igualdade de Gênero, que defende ações de redução das desigualdades entre homens e mulheres no espaço religioso mas com o objetivo de buscar resultados também na esfera da família, do trabalho e da sociedade como um todo. Para ela, desenvolver e compartilhar uma política de empoderamento social entre as mulheres evangélicas é uma ação coletiva em que as mulheres devem tomar o controle de seus próprios assuntos, de sua própria vida e de seu destino. "Por meio do processo de empoderamento, as mulheres evangélicas (protestantes, pentecostais e neopentecostais) podem tomar consciência de suas habilidades (e desenvolver aquelas que lhes faltam) e de suas competências para produzir, criar e gerir em igualdade com os homens", defende o coletivo feminista (Foto: Acervo pessoal)
A Igreja Católica apregoa que mulheres não podem ser ordenadas para o sacerdócio, conduzir missas ou liderar paróquias pois Jesus teria ordenado apenas homens para tais funções. Entre evangélicos, é a interpretação sobre Maria Madalena que prevalece e elas podem ser pastoras. Mas, ainda, assim, a maioria das liderança religiosas é masculina. "Isso influencia na forma como as próprias pastoras são tratadas e quais tarefas desempenham", pontua Raquel.
A estudante Raquel no 8M do ano passado. "O machismo interfere em tudo. Eu queria muito que meu casamento fosse ministrado por uma pastora, mas a igreja da qual fazia parte, mesmo ordenando mulheres, não permitiu. A solução que arrumaram foi um casal fazer meu casamento." Raquel chegou a ouvir de um líder religioso que deveria abandonar a faculdade, ouvindo que a sala de aula não era espaço para ela como mulher, ainda mais no curso de economia, com maioria de estudantes homens. (Foto: Acervo pessoal)
A questão da violência, que vitima muitas mulheres evangélicas, também merece atenção. "Já presenciei amigas minhas, mulheres que sofreram violência doméstica, física, psicológica, serem aconselhados pelos pastores a somente orar, a não tomar uma providência legal, não acionar a polícia, a lei Maria da Penha, porque o ocorrido mostrava que a mulher não estava sendo sábia dentro de casa. A sábia edifica o lar, esse é o jargão".
Para ela, esse tipo de conselho tem pouco a ver com as lições de Cristo."Eu não tenho nenhuma dúvida de que se Jesus vivesse hoje no nosso tempo ele apoiaria o feminismo." E sustenta o argumento com a Bíblia e o comportamento de Jesus. "Ele violou todas as regras morais do seu tempo em todos os seus encontros com mulheres registrados nos quatro evangelhos", afirma Raquel.
Sobre o autor
Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.
Sobre o blog
Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.