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Da janela, medo, culpa e união: os relatos do confinamento nas periferias

Flávia Martinelli

01/05/2020 04h00

MC Martina diante da paisagem do Complexo do Alemão, no Rio, onde mora: "Estamos assustados. A quarentena tem nos tirado muito. Pessoalmente, tenho tido a oportunidade de me humanizar e descobrir novas vontades. Mas como construir um futuro se não sabemos como será nem o dia de amanhã?"  (Foto: Acervo pessoal)

Com reportagem de Jéssica Ferreira, especial para o blog MULHERIAS 

Pedimos para mulheres das periferias compartilharem seu olhar sobre as quebradas nesses dias difíceis. Recebemos vídeo-poesias, fotos, música e relatos sobre transformações pessoais e de suas comunidades.

"A pandemia acabou por nos tirar a perspectiva de como e do que será o futuro", resume a cantora, compositora e comunicadora Nayra Lays, há mais de um mês em confinamento em sua casa no Grajaú, no extremo Sul de São Paulo.

Do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, a rapper, poeta e produtora MC Martina, 22, conta que também não vê horizonte. "As pessoas estão assustadas, próximas do estágio de desespero. Quando saem de casa é para ir buscar o pão de cada dia, ainda que retornem sem dinheiro." 

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De Campinas, no interior de São Paulo, o relato da fotógrafa Fabiana Ribeiro, 45, é desalentador. "Meu olhar é pela câmera, pelas lentes. Por isso fui registrar a distribuição de alimentos em uma comunidade extremamente vulnerável e testemunhei um Brasil que não tem aplicativo de celular para cadastramento de benefício nenhum. Porque antes disso falta água, falta moradia, falta rua, falta acesso mínimo ao que se chama de direitos, falta tudo. Vejo, infelizmente, muita fome. O que salva é a solidariedade."

Em comum, todas falam do enfrentamento de um dia de cada vez. "Nada será como antes", acredita Martina. "O futuro é a próxima pequena atividade do dia", completa Nayra. "Ou a próxima cesta básica a chegar nas favelas", diz Fabiana. Acompanhe as histórias de quem testemunha a pandemia de perto.

"Meu movimento também tem o poder de inspirar pequenas curas coletivas"

A cantora Nayra Lays, 22, mora no Grajaú, no extremo Sul da periferia de São Paulo

"Semana passada fez um mês que estou em casa. As poucas e necessárias saídas à rua me deixam em um alerta quase paranoico. Aqui no Grajaú, as ruas seguem cheias de gente. Um mercado pintou no chão a distância necessária entre as pessoas na fila do caixa mas nem todos respeitam. Minha mãe, que é auxiliar de enfermagem num posto de saúde, não teve a opção de parar de trabalhar.

Tenho sorte de poder fazer home office e seguir remunerada. Trabalho em Pinheiros, a cerca de 1h de condução. Sou articuladora de juventudes brasileiras na ong EmMovimento. Com meu irmão mais velho, de 24, foi diferente. Ele foi demitido do restaurante que fornecia alimentos para empresas de aviação. Uma pena. Ele estava tão feliz… Tinha conseguido emprego depois de um ano parado. Está morando agora com a noiva, que tem um salão de beleza e, por incrível que pareça, segue atendendo. Não compreendo por que fazer unhas ou sobrancelhas em plena pandemia. Tenho muito medo de minha cunhada se contaminar.

"Da janela da sala de casa vejo a antena de celular que é ponto de referência na minha rua. Como em muitas periferias, há pontos asfaltados e outros não dentro do meu próprio bairro. As periferias são múltiplas. O Grajaú fica a 26 quilômetros do centro da Praça da Sé, no centro da cidade, e é um dos distritos mais populosos da capital, integrado por diversos bairros, incluindo um grande conjunto habitacional, onde nasci" (Foto: Acervo pessoal)

Aqui tem terreno baldio gigante que, antes vazio e inútil, hoje virou uma pequena ocupação. Em mais 40 minutos de condução daqui de casa, você ainda chega em locais perto da represa Billings, onde existe até uma ilha que faz parte dessa metrópole. Ali há famílias de agricultores que hoje se articulam para receber doações e oferecer cestas de alimentos nutritivos aos mais vulneráveis, por exemplo. É bem diferente de tudo o que o se imagina de São Paulo. Lá, no que chamamos de "fundão", milhares ainda sofrem com falta de saneamento básico.

Iniciativas voltadas para arrecadação e distribuição de produtos de higiene e cestas básicas têm sido as mais fomentadas por coletivos daqui. Tem muita gente passando necessidade. E muita gente num baita corre também, como o Periferia em Movimento, que reúne jovens repórteres em dialogo direto com quem mora aqui. Pelas redes, eles disparam áudios de pessoas da quebrada que explicam como estão lidando com a quarentena. Muito lindo também é ver as costureiras de bairro, senhorinhas mesmo, fazendo entregas de máscaras. Vendem barato ou dão de graça mesmo. Periferia é solidária.

Nas duas primeiras semanas de confinamento eu fiquei perdida. Troquei o dia pela noite, ia dormir 4, 5hs da manhã. Entrei num looping de ansiedade. Eu estava prestes a lançar meu primeiro disco antes da pandemia, sabe?  Há quatro anos comecei no rap, achava que era a única modalidade para me expressar. Fui acolhida nos saraus, onde se fala de questões sociais e de políticas. De uns tempos para cá, descobri outras camadas artísticas que também dialogam com minha raiz, a música preta. Dela veio o disco. Meu amigo e produtor Levi Keniata um jovem talento, de 27 anos, fez a minha produção musical com uma visão muito respeitosa das nossas influencias nacionais.

Passei a ficar muito mais calma e centrada quando passei dedicar tempo para o estudo e gestão da minha carreira musical. Porque estudar não é só sentar e pegar um livro. A arte permite que eu estude a música em interação com meu corpo e passei a observar como as coisas me atravessam, inclusive essa pandemia.  

E, assim, criei uma rotina que dá conta do trabalho, cuidados com o corpo e a mente. Não quero gastar tempo questionando minha sanidade e alimentando ansiedades. Me apego à atividades como conseguir fazer todas as refeições do dia e dormir em horários razoáveis. Me parabenizo. Arrumar a cama pra dormir virou um ritual feito com concentração. Todos os meus espaços criativos e de descanso, agora, são olhados com mais cuidado. 

As manhãs, portanto, passaram a ser a minha parte favorita do dia. Agradeço sempre por ter um quintal no fundo de casa, onde o sol bate e posso estender minha canga pra sentar, refletir e ouvir música olhando o céu azul. Nunca imaginei que ter um quintal pudesse ser um privilégio.


Tenho evitado notícias demais vindas da grande mídia. É difícil, confesso, porque, gosto de jornalismo. Fiz um ano de formação em jornalismo na agência-escola de jornalismo para jovens periféricos É nóis, na turma de 2016. 

Tem que hora que me bate o inevitável "o que eu estou fazendo pra ajudar as pessoas ao meu redor nesse momento?", e confesso que fico triste por não conseguir me envolver tanto. Sinto culpa. E também acho importante trazer esse sentimento.

Nas periferias, vivemos cotidianamente faltas que se complementam e sucedem, o que torna qualquer problema mais complexo. Ainda assim, outro dia, juntei forças e produzi um vídeo para o canal de tv Canal Preto destacando a importância dos coletivos de comunicação do meu território.

Tenho pensado muito sobre contrastes, sobre o que é possível para uns e não para outros, sobre essa ideia de "momento para respiro e reflexão" e o quanto tenho tido a chance de ter, de fato, esse respiro. "Respiro pra quem?", volto a pensar. E logo rebato: "qual é o papel da culpa agora?" Ela só me enfraquece e paralisa.

Talvez, essa sensação de impotência não seja só minha. Essa autocobrança deve estar com muitos que querem frear tanta dor. Quando chego nesse ponto, então, me pergunto o que posso dar ao mundo como artista. E aí coloco pra fora criativamente o que tenho sentido.

Assim tenho feito: assumido o compromisso de seguir cantando, escrevendo, registrando e compartilhando meus processos de aprendizado, ciente de que o meu movimento também tem o poder de inspirar pequenas curas coletivas."

"A miséria tira nossa humanidade" 

MC Martina, 22, é rapper, poeta e produtora. Nascida e criada no Complexo do Alemão (RJ), é idealizadora do Slam Laje, batalha de poesia que acontece no Alemão, uma das fundadoras dos Poetas Favelados, coletivo que realiza "Ataques Poéticos" em transportes e espaços públicos pela cidade e o integra o Movimentos, grupo de jovens de varias periferias do Rio que discutem e acreditam em uma nova política de drogas (Foto: Acervo pessoal)

"Não preciso ir longe. Pela janela posso ver o olhar das pessoas no Complexo da Maré, no Rio. Como é estar em casa sem condições mínimas? Falta luz, água e falta distração, antes encontrada na rua, para esquecer da fome, pra esquecer que não há o que comer… Essa não é uma realidade particular da Maré, onde estou passando a quarentena, ou do Complexo do Alemão, onde nasci, mas de todas as periferias do Brasil. Vejo a nossa vida sendo parcelada e retirada a longo prazo e reflito: o que está acontecendo com nosso povo? Com toda a população negra e periférica do Brasil? 

O Complexo do Alemão, assim como os demais complexos, é um conjunto de favelas. Esse, localizado na Zona Norte do município do Rio de Janeiro, composto por mais de 14 favelas – Fazendinha, Pedra do Sapo, Morro do Adeus, Morro do Alemão, Morro da Baiana, entre outras. De Alemão mesmo, só o Morro do Alemão. Em cada casa, como nas dinâmicas das favelas, moram cerca de cinco pessoas ou mais. Apesar de 'dados oficiais' afirmarem que somos 80 mil pessoas, a realidade é que em média já somos 150 mil moradores no Alemão. Distorcer os números é uma forma de justificar a pouca verba governamental destinada ao território.

A presença da UPP – Unidade de Polícia Pacificadora surge em 2011 com a justificativa de aqui ser considerada uma das áreas mais violentas da cidade. Transformou a rotina de todo mundo. Mudou o comércio, a economia, o custo de vida, e sobretudo, aumentou o número de jovens entrando pro tráfico. As dificuldades justificam o número de igrejas existentes…

Cheguei à conclusão, conversando com a minha amiga Winona Evelyn, poeta e produtora do morro do Sereno no Complexo da Penha, do quanto é difícil comer no nosso país. Se alguém pode escolher entre álcool gel e comida, ainda que falte água em casa para higiene das mãos, sem dúvida a escolha é pela comida.

Estamos vivendo em calamidade pública e não temos nenhum direito garantido. No ano passado, aqui no Rio de Janeiro, uma lei proibiu intervenções na barca, no metrô, no DRT e outros transportes públicos. Muitas pessoas perderam a possibilidade de renda, como eu, que não pude mais fazer minhas intervenções artísticas nos coletivos.

Nós, trabalhadores informais, somos criminalizados. Ou ainda, temos nosso trabalho desmerecido. Com artistas é comum convite para produzir sem questionar se estamos precisando de cesta básica. Xandy MC fala que a cultura nunca foi protagonista, ou seja, prioridade do governo. A verdade é que nada em benefício da favela é prioridade do Estado. 

As pessoas estão assustadas, próximas do estágio de desespero. Quando saem de casa é para ir buscar o pão de cada dia, ainda que retornem sem dinheiro. A miséria tira nossa humanidade: a gente se arrisca pelo trabalho para não se culpar e sentir útil, e ainda assim, no momento de mais vulnerabilidade, vários estão perdendo o emprego, meus próprios vizinhos e familiares. Aliado a isso, tem sido perigoso e triste para a saúde mental da periferia a forma como o governo trata o 'benefício' dos R$ 600 referentes ao Auxílio Emergencial. Parece um favor. É a favela tendo que viver com menos de um salário mínimo e sentindo que está recebendo esmola.

Preocupante também é o feminicídio. Tem crescido. Um verso meu fala: 'Lei Maria da Penha na minha favela é lenda'. É real. Se acontece uma agressão a gente faz o que? Vai ir falar pro policial da UPP? Sabe como é um favelado ir na delegacia denunciar isso? Ainda mais sendo mulher? Como você volta pra favela depois? Como volta pra casa?

Sofremos violências físicas e psicológicas o tempo todo. E é por isso que eu, mulher negra e periférica, faço o que eu faço: se as pessoas não se comovem pela dor, elas vão se comover e se identificar pela arte. Tive que botar ritmo em tudo o que escrevi, em tudo o que eu vivo, senão não me escutavam.

A quarentena tem nos tirado muito. Pessoalmente, tem sido um desafio ficar longe de quem amo e, principalmente, de fazer o que amo. Mas tenho tido a oportunidade de me humanizar, descobrir novas sensações, emoções, sentimentos e vontades dentro de mim. Sejam sentimentos criativos de produzir algo, ou de não produzir, e ainda assim, não me sentir mal por isso. Seja aprender a cozinhar ou acordar tarde.

Pra nós, mulheres pretas, a solidão tem várias camadas. Se tem uma coisa que a gente aprende é ficar sozinha e que a solidão nem sempre é ruim. Apesar de tudo, tenho me sentindo amparada em termos espirituais e com a certeza de que, quando tudo acabar, nada será como antes. Mas questiono: como enxergar e construir, nesse momento, um futuro pra periferia se nunca nos foi permitido sonhar? Não sabemos como será nem o dia de amanhã."

 

"Esse é um Brasil esquecido e sem celular com aplicativo"

Para registrar seu olhar sobre a periferia, a fotógrafa e documentarista Fabiana Ribeiro acompanhou a entrega de cestas básicas nas comunidades dos bairros de Monte Cristo – Parque Oziel – Gleba B, em Campinas, onde hoje residem mais de 6 mil famílias, cerca de 60 mil pessoas. Na imagem, Rosinha, do bar da comunidade: com o marido e a filha, a família articula a entrega de 480 cestas básicas para os moradores da região (Foto: Fabiana Ribeiro)

"Segunda-feira, 10 horas  da manhã. No Bar da Rosinha, que fica bairro Jardim Monte Cristo, na periferia de Campinas (SP) alguns usam máscaras de proteção. Para tocar o pequeno comércio, a líder comunitária conta com Orlando, seu marido, e ambos moram na casa dos fundos. Caixas de cervejas ficam empilhadas ao lado da porta da sala.

O casal vive ali há 23 anos. Seu Orlando participou da ocupação do complexo Monte Cristo/Oziel/Gleba B desde o início. Naqueles cerca de 1.500.000 m2 antes sem função social e em dívidas com o governo hoje residem mais de 6 mil famílias, cerca de 60 mil pessoas, segundo dados da Prefeitura de Campinas. O território é símbolo de uma batalha fundiária encampada de forma maciça nos anos 1990 por movimentos sem terra e sem teto e foi considerado uma das maiores ocupações da América Latina.

O Bar da Rosinha é "point" antigo. Ali moradores comemoram aniversários e o local faz as vezes de "buffet" com bolo e tudo. É Rosinha mesmo é quem faz por encomenda. O local também é ponto de encontro de lideranças locais e militantes. Mesmo pequeno, em torno de 3 x 5 metros, o bar acolhe todo mundo. 

Por volta das 10h30, uma caminhonete simples, de modelo antigo e com pequenos amassados na lataria, estaciona silenciosamente na porta do bar. Não existem ali carros de luxo, buzinas, gritos e ninguém se fantasia de verde e amarelo com camiseta de CBF. É tudo silencioso, sereno e focado. 

Em pouco tempo, 90 sacolas da carroceria são descarregadas. São cestas básicas destinadas às famílias que precisam, e muito, daquelas doações. As cestas que trazem alface, chicória, mandioca, limão, mamão, abacate  e limão são frutos de parcerias articuladas pela Central Única das Favela (CUFA) de Campinas que desenvolve dois projetos: CUFA contra o Vírus e Mães da Periferia.

A ponte entre a entidade, doadores e a com a ocupação foi feita pela filha do casal Rosinha e Orlando, a ativista de movimentos culturais e sociais Andrea Mendes. Nesse momento em que a pandemia avança pelas periferias, ela é mais uma voluntária em busca de soluções para a fome e desdém do governo.

Andre e voluntários pelas ruas do Monte Cristo, onde não há creches suficientes nem transporte. Falta água, programa de moradia e de segurança. As doações de alimento atendem 480 famílias na região com cestas básicas e o  "vale-mãe", uma assistência imediata de R$ 120 recurso complementar. Em geral, o dinheiro é gasto com gás e remédios. Existem duas modalidades de cestas e ambas são entregues duas vezes na semana. Às segundas-feiras, a comunidade recebe hortifrutis. À quintas, macarrão, arroz, feijão, café, farinha, bolacha, óleo, molho de tomate, pacote de papel higiênico, água sanitária e sabão em pó (Foto: Fabiana Ribeiro)

Boa parte dos moradores trabalha nos serviços essenciais em atividade. São motoboys, motoristas do transporte coletivo, equipes de limpeza, operadores de caixas em mercados. Ou seja, além de estarem inseridos num quadro de alta vulnerabilidade social – pela falta de água, alimentação precária -, estão suscetíveis a serem vetores de transmissão do coronavírus dentro da comunidade.

Há também os que foram dispensados e se somam aos desempregados, como terceirizados de funções variadas, balconistas de pequenos comércios, manicures, diaristas e informais que não estava inscritos em programas sociais. Historicamente segregados, com a pandemia, suas vulnerabilidades ficaram ainda mais agravadas.

E é preciso lembrar que, na maioria das casas, é impossível manter ou fazer qualquer tipo de isolamento em caso de alguém estar contaminado. Famílias inteiras residem em apenas dois cômodos.

Naquela segunda-feira, após descarregar as cestas da caminhonete, a equipe de voluntários recheou o carro de Andrea. O golzinho branco, com mais de 20 anos de rodagem, teve seu encosto do banco traseiro retirado para comportar as cestas. Sobrou só a vaga da motorista e de um voluntário. 

No primeiro destino, na rua estreita e sem asfalto, 50 das 300 famílias moradoras do local "estavam em estado de miséria". A confidência vem de Néia, liderança comunitária local que sabe o destino de cada cesta e conhece a história de cada família. "São pintores, pedreiros que estão sem trabalho."

"Agradeço muito a doação, porque aqui sou eu sozinha e Deus fazendo como dá", diz Néia líder comunitária que, na prática, testemunha o aumento da informalidade. Em 2019, o índice atingiu 41,1% da população, recorde em 19 estados e no Distrito Federal (Foto: Fabiana Ribeiro)

Diante da casa número 1853, são levadas três cestas: uma  básicas e duas orgânicas. Da fachada de cimento e portão com ferrugem sai uma jovem de 20 e poucos anos. Gabriela, grávida, atende com um sorriso. Troca algumas palavras, recebe as doações e conta que o marido não está porque saiu em busca de um bico.  Mais à frente na rua de terra, em outra casa no cimento e partes inacabadas da construção, uma senhora, Maria Aparecida, de cerca de 70 anos e cabelos grisalhos presos em um coque, também sorri aos voluntários. "Muito agradecida."

De volta ao carro, outra mulher aguarda Andrea – que a reconhece de outro encontro, antes da pandemia, quando a recomendou ir ao Posto de Saúde diante da reclamação sobre fraqueza e cansaço. "Lá no Postinho disseram que a dor no estômago era  da alimentação, que eu precisava comer mais", conta, já com a cesta recebida em mãos. E assim segue o dia…

Quando o gol branco segue para outra região da Gleba B, uma ladeira abrupta marca o ponto de entrega para outras famílias. Diante de um barraco feito de madeira e coberto com lonas, está Seu Oscar. Na casa, vive com a filha Cristiane, que participa do projeto "Mães da Periferia", e o neto de  2 anos. A moça tenta, no celular emprestado da vizinha, fazer o cadastramento do pai para recebimento do auxílio emergencial de R$ 600 do governo. Ela e Seu Oscar estão desempregados e não tem celular para fazer o cadastro. "Meu pai arrumou um bico mas até ontem estava parado".

A inscrição no projeto  da CUFA é mais simples. Bastou um dos voluntários da ação pegar seu nome, endereço, o número do CPF e fazer uma foto dela. Os dados foram enviados para a central da CUFA e logo depois o recurso de R$ 120 reais foi liberado.

Custo de vida aumentou com as crianças em casa e o programa municipal ainda não redirecionou a merenda escolar para a família de Gleiciane (Foto: Fabiana Ribeiro)

Gleiciane e seu marido são trabalhadores informais que vivem de pequenos serviços temporários e não possuem renda fixa. Contam que o custo de vida aumentou porque, com o isolamento social, as crianças não estão indo à escola municipal desde o dia 23 de março. A merenda faz falta, é preciso mais comida na mesa. As dificuldades não param por ai. Como acompanhar aula on line? A família só tem um celular "e está no conserto", lembra Gleiciane.

Campinas lançou o Programa de Segurança Alimentar e Nutricional, "NutrirCampinas", mas noticiou a distribuição a partir do dia 17 de abril. A família de Gleiciane ainda não foi contemplada. Mas, antes disso, ela foi incluída no "Mães da Favela"

Seguindo pelos becos, os voluntários acessaram um outro grupo de famílias aglomeradas em barracos de madeiras. Ali não há saneamento básico, energia elétrica individual, água encanada e muito menos acesso às mídias digitais para se cadastrar nos programas sociais ou fazer o cadastro do auxílio do governo. O índice de instrução é mínimo – alguns só assinam o nome – e a dificuldade de acesso à tecnologias é uma enorme muralha.

Para chegar aos locais mais afastados, os voluntários fazem o trajeto a pé. Carros não conseguem acessar os terrenos íngremes e sem asfalto. Seguir pelos becos é deparar-se com espaços tão estreitos que apenas uma única pessoa é capaz de passar (Foto: Fabiana Ribeiro)

Adriana, de cerca de 30 anos, afirma que naquele canto estão os esquecidos por todos. "As famílias estão passando fome. Minha vizinha está amamentando e não tinha nada para comer. Eu tinha um pouco de arroz e dei à ela". O programa de cestas básicas é questão de sobrevivência. Depois de improvisar uma cesta de hortifrutis e leite, os voluntários solicitaram a ela uma lista das pessoas necessitadas naquela área. 

Antônio já estava na lista. Trabalhava como pedreiro em uma construção de mais um barraco na viela estreita, mas redobrado em cuidados. Fez questão de manter  o afastamento entre pessoas e deixou claro que cuida da sua saúde e da saúde do próximo. "Eu tenho que pensar no outro porque não estamos sozinhos no mundo. E temos que fazer o certo para todos." O pagamento de R$ 400, ele contou, só iria receber daqui  a 30 dias. "Mas o importava é estar trabalhando." Antônio também não está inscrito em nenhum programa social."

Para colaborar:
Acesse a CUFA Campinas ou o projeto ReExistência é Viver, focado no auxílio complementar de doação de kits de higiene e máscaras para 100 famílias de uma das comunidades da região, a favela da Matinha, além de painéis informativos sobre como evitar a exposição ao coronavírus. 

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Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.