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Precisamos falar sobre a morte: guia do luto em tempos de coronavírus

Flávia Martinelli

08/05/2020 04h00

Rede de voluntários lança no Brasil um manual para quem perdeu um ente querido. Página de Facebook e site em forma de memorial reúnem homenagens e relatos sobre as vítimas. A Covid-19 mudou a forma de manifestar nossa dor  

Com reportagem de Ariane Silva, especial para blog MULHERIAS 

O número de mortos pelo novo coronavírus no Brasil é um soco no estômago todos os dias. As notícias nos atualizam: uma, dez, 100 vítimas, 300 e agora mais de 600 pessoas morreram apenas nas últimas 24 horas. No momento em que esse texto é escrito somam-se 8.685 vidas levadas pela pandemia. Nessa semana, chegamos ao trágico patamar de terceiro país com maior índice de óbitos do mundo. Não dá tempo de sequer processar tanta informação.

Mas, ainda que seja óbvio, é preciso lembrar o que dados revelam: além da irresponsabilidade e incompetência dos nossos governantes, cada número deve mostrar que TODA vida importa. Nesse momento de dor e sofrimento, o blog Mulherias, sempre atento às belas iniciativas das mulheres periféricas, tem a obrigação de fugir de sua pauta para falar sobre luto. Publicamos aqui o "Guia para pessoas que perdem um ente querido em tempos de coronavírus", elaborado por uma rede espanhola de psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros e terapeutas especializados no assunto.

O livro foi traduzido para o português por voluntários do Memorial das Vítimas do Coronavírus no Brasil e pela Rede de Apoio às Famílias que, por sua vez, reúne mais de 60 organizações solidárias à dor dos que sofrem o luto. "São orientações para ajudar a lidar com esses momentos difíceis de isolamento e incerteza, oferecendo outras maneiras que atendem à necessidade de compartilhar e expressar a dor com os outros e, ao mesmo tempo, permitir honrar a memória de nossos entes queridos falecidos", diz o coordenador da iniciativa, o historiador Danilo Cesar. 

Danilo é taxativo sobre a situação que estamos vivendo: "os esforços para garantir a vida da população não estão sendo suficientes e a doença hoje castiga mais a população negra, pobre e periférica, cujas mortes sempre foram banalizadas." Em uma live que foi ao ar no último sábado, do coletivo Jornalistas Livres, parceira da Rede, ele também lembrou da situação das populações indígena e carcerária, que estão sendo gravemente afetadas.

Como se não bastasse a dor das perdas em si, as despedidas, em muitas cidades do país, estão com medidas de restrição por questões sanitárias. Em São Paulo, por exemplo, a prefeitura está restringindo a duração dos velórios a no máximo uma hora. Somente dez pessoas podem estar na sala ao mesmo tempo. O caixão é recoberto de papelão e fechado para a cerimônia. "É muito difícil. E ainda temos um presidente que insulta a população com o seu 'e daí?'; o que agrava ainda mais essa sensação de isolamento no luto", completa Danilo.

De acordo com o Guia, os rituais de despedida são atos simbólicos que nos ajudam a expressar nossos sentimentos ante uma perda, colocar um pouco de ordem em nosso estado emocional caótico, estabelecer uma diretriz simbólica para os eventos da vida e nos permitir a construção social de significados compartilhados. "Eles abrem a porta para que tomemos consciência do processo de luto."

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A internet, por conta do isolamento social, é uma ferramenta útil para lidar com a perda de alguém nesse momento. Vale uma reunião virtual com família, amigos ou com a participação de um guia religioso. "Vale escrever um texto expressando as lembranças e sentimentos direcionados à pessoa falecida, acender uma vela enquanto diz algumas palavras para a pessoa ausente. Deixe um minuto de silêncio para expressar amor, perdão e gratidão", recomenda o manual. 

Publicar homenagem em redes sociais sobre o legado de vida que aquela pessoa deixou é saudável. "E assim, compartilhando-o, dará aos seus contatos a oportunidade de expressar suas condolências e apoio, acompanhando-o através de palavras, músicas e imagens."

O recurso foi usado pela família da pastora Sandra Cristina da Silva, de Barueri (SP), que tinha apenas 41 anos. Seus parentes não puderam prestar homenagens como gostariam no dia do sepultamento. Sem poder se reunir, compartilhar histórias e abraços, as condolências estão registradas página do Facebook do Memorial, um espaço virtual criado para reunir e compartilhar manifestações de afeto a quem quem partiu. "Continua aí de cima cuidando de nós", escreveu a mãe de Sandra, Margarida, em mensagem na rede social. O marido, Silvio, agradeceu pelos anos que dividiu com a mulher e relembrou da alegria e companheirismo dela.

"A impossibilidade de velar e acompanhar o enterro é uma violência para os familiares e amigos", afirma a jornalista Malu Oliveira, 63, ativista e pesquisadora que faz parte do coletivo Segura a Onda, plataforma colaborativa surgida na Espanha que conecta os grupos de apoio às vítimas da Covid-19. No Brasil, a entidade também faz parte da Rede que elaborou o guia e organizou em seu site uma galeria online para registro de memória das vítimas. "Estas famílias ainda sofreram muito por falta de acesso a hospitais ou durante a internação de seus parentes sem receber visitas. Nada vai substituir o abraço confortador, o ombro amigo na hora da dor. Mas o ritual virtual pode ajudar a diminuir a solidão do luto nesta situação de emergência."

Outra voluntária do projeto, a historiadora Elisiana Castro, de 44 anos, destaca a importância de buscar novas formas de viver o luto durante o isolamento social. "O luto não vai parar, a dor da perda não é banida, a pessoa não deixa de sentir, ou de precisar de amparo por que nós estamos num momento de pandemia", explica ela, presidente da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais (ABEC), que reúne estudiosos, pesquisadores e especialistas sobre o morrer. "Toda a sociedade deve apoiar as famílias no sentido de reconhecemos sua dor. Apesar de não ter recebido um funeral adequado e respeitoso, a pessoa querida não é apenas um número nesta soma macabra. Toda morte importa, cada número tem nome, idade, profissão e família."

Segundo os organizadores do Memorial e da Rede de Apoio, parentes e amigos não tratam apenas de comunicar a morte nas redes sociais e espaços virtuais, mas compartilham amor, afeto, abraços. "É esse abraço distanciado, mas real. Até me emociono quando falo porque é muito difícil reconhecer o quanto as pessoas estão desamparadas diante de uma dor tão grande como a da perda", diz Elisiana, ciente de que a compaixão nos conecta como seres humanos. Mesmo que isso não dê conta, mesmo que não seja suficiente, enfim, estamos juntos.

PARA SABER MAIS:

  • A Rede de Apoio às Famílias de Vítimas Fatais do Covid-19 no Brasil oferece apoio jurídico, psicológico e orientações sobre velórios, sepultamentos e rituais de despedida. A iniciativa faz também o monitoramento das mortes com jornalistas e cientistas sociais levantando informações sobre os casos. A rede pode ser contactada por Whatsapp ou Telegram no número (11) 93011-3281 e por e-mail em memorialcoronabrasil@gmail.com, e também pelo chat da página do Memorial no Facebook.
  • Outro projeto que registra por textos a memória sobre quem se foi, com mensagens de amigos e familiares, é o projeto Inumeráveis, que possui sitepágina no FacebookInstagram. Por meio de um formulário é possível cadastrar novas histórias ou pedir ajuda de jornalistas voluntários para escrever um relato.
  • O Memorial das Vítimas do Coronavírus no Brasil monitora e compartilha relatos no Facebook e registra de forma mais permanente as histórias de vida na galeria do coletivo Segura a OndaTodos os domingos, sempre às 20hs, o grupo convida a todos a acender uma vela, levar o celular ou bater palmas nas janelas em memória às vítimas. Abaixo, segue o vídeo-convite comovente que traz fotos de quem partiu.

 

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Sobre o autor

Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.

Sobre o blog

Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.