Por que o "novo normal" exige moradia para todos e o fim dos despejos
Flávia Martinelli
14/08/2020 04h00
O Brasil pós-pandemia vai além do home office. É preciso questionar porque aqui se condena cidadãos que não têm acesso ao direito de ter uma casa para morar
A diarista Franciele na entrada da ocupação Terra Prometida, na zona Leste de São Paulo: "Não tenho para onde ir se for despejada daqui. Nem as 300 famílias que também não conseguem comer e pagar aluguel. Nosso salário, quando existe, não aumentou tanto quanto a especulação imobiliária. E todo dia chega gente nova aqui, desesperada, é isso o 'novo normal'?" (Foto: Acervo pessoal)
Com reportagem de Juliana Martins, especial para o blog MULHERIAS
Na periferia da zona Leste de São Paulo, a diarista Franciele Pereira Rocha, de 28 anos, conta que faz tempo que o preço do sonho da casa própria subiu muito acima dos salários, "quando eles existiam". Nem ela nem as 300 famílias que ocupam um terreno abandonado da Caixa Econômica Federal sabem para onde vão quando a Justiça cumprir a ordem despejo da ocupação Terra Prometida. Nome comum entre tantas com a mesma esperança, essa fica no bairro de Sapopemba, e é feita de casebres de alvenaria em vielas onde só é possível percorrer a pé. "A comunidade existe desde 2016, eu cheguei dois anos depois, sem nada. Vivia em barraco de madeira e todo o dinheiro foi para essa casinha. Todo dia vejo muitos como eu, buscando um canto."
No interior do Estado, na cidade de Jacareí, a líder comunitária Elisângela Silva, de 48 anos, conta que o Quilombo Coração Valente, onde vive com mais de 200 famílias em barracos de madeira, pode ser demolido a qualquer momento. "É triste demais, isso aqui estava abandonado há décadas, a cidade inteira sabe. E, agora, do nada aparece um dono." A comunidade já organizou, um centro comunitário, outro de reciclagem e até um plano diretor que prevê ruas largas, escola e posto de saúde. "É um bairro, mesmo, com terrenos bons para todo mundo plantar sua horta e viver em paz. Mas não deixam."
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- À esquerda, Elisângela, liderança do Quilombo Coração Valente: acima, exemplo de agricultura de subsistência em terreno dermarcado pela própria comunidade
No centro da capital paulista, a arquiteta Fernanda Neves, de 24 anos, só conseguiu a duras penas renegociar o valor do aluguel do apartamento que divide com três amigas. No começo do confinamento, montou um coletivo de inquilinos, o Aluguel em Crise, para trocar experiências com pessoas que, como ela, tiveram jornada de trabalho e salário reduzidos em até 70% ou estão desempregadas. "Muitas imobiliárias e proprietários nem responderam às solicitações de desconto. Houve ainda os propuseram aumento de valores. Fazem isso justamente para forçar um despejo voluntário."
Em comum, as três líderes e militantes vivem o drama do acesso à moradia no Brasil – explícito e agravado na pandemia do coronavírus. "Despejos continuam em pleno andamento", denuncia a deputada Natalia Bonavides, autora o Projeto de Lei 1975/2020, que tramita em regime de urgência e pede a suspensão por 90 dias do "cumprimento de toda e qualquer medida judicial, extrajudicial ou administrativa que resulte em despejos, desocupações ou remoções forçadas" durante o estado de calamidade pública do Covid-19.
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Na última segunda-feira (10), Natalia e representantes de comissões de diferentes partidos políticos, movimentos de moradia e Direitos Humanos apresentaram a proposta ao presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia. Apelam para que haja votação com máxima urgência.
Cena de ontem (12), em Minas Gerais: despejo no Quilombo em Campo Grande, em Minas Gerais. Houve violência (Foto: Reprodução MST)
"É absurdo. Várias reintegrações de posse com mandatos antigos estão sendo executados agora", afirma a parlamentar. "Ficou claro que o discurso de 'passar a boiada', que o governo fomentou no meio ambiente, também está sendo aproveitado por outros setores", completa. "Chegamos ao ao ponto de ter ocupações formadas por famílias que foram despejadas por não ter mais como pagar aluguel na pandemia e ainda assim estão sendo ameaçadas de ser novamente colocadas na rua."
Advogada popular, ela ressalta, porém, que mesmo em tempos "normais" as ações de reintegrações de posse, remoções administrativas e criminalização de movimentos ou de pessoas sem teto viviam uma "situação que já era absurda" no Brasil. "Tudo isso se agravou e demonstra como o judiciário favorece o direito à propriedade e não o direito à moradia e à vida das pessoas", afirma a deputada.
Muito se fala sobre um "novo normal' a partir da pandemia. "Mas é impossível tratar desse assunto sem questionar e rever com urgência o acesso à moradia no Brasil", diz a advogada Juliana Souza, especialista em Direitos Fundamentais e Processo Constitucional. "Toda a história da captura da terra pública foi fraudulenta desde o período colonial, com o histórico de doação e heranças, de domínio de posse pela elite colonial e isso traz reflexos até hoje", resume.
Vista da Fazenda de Soledade, na então província de Minas Gerais, no século 19. A chamada "Lei de Terras", de 1850, transformou os nobres administradores dos territórios em proprietários. Tudo por doação, claro. Ninguém pagou nada. Por 350 anos, terra nem era mercadoria por aqui. Riqueza era medida pela quantidade de escravos (Obra de Francis de la Porte/Arquivo Nacional)
O advogado Benedito Roberto Barbosa, da União dos Movimentos de Moradia (UMM) e do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, acrescenta: "é preciso colocar o dedo nessa ferida. Não existe 'velho normal' quando o assunto é moradia". Um dos articuladores da campanha "Despejo Zero – Pela vida no campo e na cidade", lançada no último dia 23, ele defende um amplo movimento de conscientização de toda a sociedade para a compreensão das origens do problema.
"A terra e a propriedade seguem como privilégio, fruto da expropriação de um Estado que sempre foi tolerante com a elite. Nunca houve reforma agrária e, pior que isso, o que existiu foi política pública de doação de latifúndios para nobres e programas de governo racistas que ofereceram terras a europeus para que os ex-escravizados não acessassem a dignidade mínima", explica Benedito.
De fato, a prática do Estado presentear seus escolhidos com gigantes lotes de terra praticamente nasceu com o Brasil. O processo iniciou-se em 1543, conduzido pelo Império e o critério da posse de era pertencer à nobreza. O administrador do território, que também desempenhava a função de autoridade judicial, podia doar terras a quem quisesse. Só não podia vendê-las porque terra sequer era considerada uma mercadoria.
"Patrimônio e riqueza, até então, eram medidos pela quantidade de pessoas escravizadas que os administradores de terra tinham", lembra a professora, arquiteta e urbanista Ermínia Maricato, uma das principais referências em questões de moradia no Brasil. "Apenas em 1850 a propriedade da terra passou a ser um bem, uma mercadoria."
Com a chegada da "Lei de Terras", o Estado transferiu, definitivamente e, vale lembrar, também de graça, por doação, a propriedade para a iniciativa privada. Chamaram isso de regularização, embora ex-escravizados e indígenas não tivessem direito a nada. Quando, ainda depois de 39 anos, em 1889, saíram do sistema de exploração desumana da força trabalho, estavam com zero patrimônio.
Regularização foi o nome usado para doar terra pública para latifundiários
Evidentemente, a Lei de Terras foi conveniente para os latifundiários que regularizaram sua moradia e fonte de renda. O tráfico e o comércio de africanos caminhavam para a proibição e, assim, atividades agrícolas se tornaram o novo negócio de sucesso. "A elite agroexportadora do século 19, como hoje, precisava ter o controle sob a produção. Deixou de controlar a mão obra para controlar a terra", explica, com ainda mais detalhes, a professora Maricato na aula inaugural em vídeo do curso "Crise Urbana e as periferias no Brasil".
"E até hoje o que se criminaliza no Brasil são as pequenas ocupações de terra, como a de trabalhadores rurais. Famílias em situação de vulnerabilidade social, em especial famílias pretas, sempre tiveram o seu direito à moradia violado", reitera a advogada Juliana Souza, que também é pesquisadora do Núcleo de Produção de Linguagem do Ambiente Construído da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (Universidade de São Paulo). E a questão não termina aí.
Política de povoamento deu casa, comida e propriedade. Mas só para os estrangeiros
Em 1911, apenas 22 anos depois da chamada 'abolição' da escravidão, um decreto federal, assinado pelo presidente Marechal Hermes da Fonseca, estabelecia como política pública de povoamento a entrega de terras rurais com financiamento a preços simbólicos, sem entrada e com facilidades imperdíveis para estrangeiros.
Enquanto milhares de ex-escravizados estavam nas ruas em situação de miséria e sem moradia, o governante ofereceu, como diz o texto original da época, lotes que "vender-se-hão a preços módicos" além de "uma casa em boas condições hygienicas, para residencia do immigrante e sua familia, preparando-se tambem terrenos para as primeiras culturas a serem feitas pelo adquirente".
Racismo e moradia: enquanto ex-escravizados viviam à mingua nas ruas ou em moradias precárias que deram origem às favelas, decreto do presidente Marechal Hermes da Fonseca oferecia a imigrantes todo tipo de vantagem para vir ao Brasil. Os que se casavam por aqui ainda ganhavam 50% de desconto na propriedade. (Acervo público)
"Foi uma política pública de moradia marcada pelo racismo e voltada para o embranquecimento do país", pontua o sociólogo Paulo José de Oliveira, mestrando em desenvolvimento territorial pela Universidade Estadual de São Paulo (Unesp). "O governo patrocinava as passagens de navio para toda a família, a estadia, a comida, os medicamentos, o hotel ou a moradia provisória e todo tipo de infraestrutura", cita o especialista, que é membro da Central de Movimentos Populares (CPM), articulada em mais de 20 Estados do país.
Entre as curiosidades do decreto, está o desconto de 50% do preço aos que casassem por aqui. Vale muito a pena ler o texto original, basta clicar aqui.
Há leis que defendem igualdade social. Elas só precisam ser respeitadas no "novo normal"
A Constituição Federal de 1934 determinou, pela primeira vez, que as propriedades privadas no Brasil deveriam atender às necessidades e interesses da sociedade. É a chamada função social. Ou seja, a propriedade passou a ser subordinada ao bem comum e à promoção da igualdade; o princípio básico do Direito.
O conceito foi mantido na Constituição de 1988 que, por sua vez, passou a garantir a todos os brasileiros o direito à moradia. A lei determinou que o salário mínimo deveria ser suficiente para atender às necessidades primordiais do trabalhadores rurais e urbanos, juntamente com seus dependentes, incluindo- se aí um teto para viver com dignidade.
A emenda constitucional do ano 2000 passou a tratar como garantia do Estado a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados. Lei não falta. Mas nem em situação de calamidade pública está valendo…
O "novo normal" é seguir na luta por direitos
Elisângela, do Quilombo Coração Valente, anda com o peito apertado. Em duas instâncias, juízes tomaram decisão favorável ao despejo imediato da ocupação. O defensor do caso, Bruno Ricardo Miragaia Souza, e o advogado de Elisângela, porém, ingressaram com recursos para instâncias superiores. "É uma situação delicada não apenas pela questão humanitária mas por conta de processos antigos que envolvem conflitos de frações de terra vindas de heranças", explica.
De acordo com as defesas, há necessidade de investigar a compra do terreno, já que não está clara a negociação que gerou o direito de um novo proprietário ingressar com a ação de reintegração de posse. "Por informações de outros processos envolvendo os herdeiros, ainda não foi justificado como uma pessoa, que mora numa casa relativamente modesta, alega a compra de uma propriedade que envolve milhões de reais". As decisões já proferidas sequer questionaram esses pontos. Na imagens abaixo, do Google, o que sabe é quem em 2006 o local estava vazio e, agora, em 2020 além de socorrer famílias do perigo na pandemia há áreas de cultivo.
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- Em 2006
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- Em 2020: moradias e áreas verdes
Fernanda, do Movimento Aluguel em Crise, tem como horizonte seguir na luta por moradia no centro da cidade, apesar da especulação imobiliária. É David contra Golias, ela sabe. "Os preços abusivos, a imensa distância do poder de negociação entre inquilinos e imobiliárias, a concentração de renda de proprietários que são donos de edifícios inteiros seguirão na nossas pautas", revela. "Somos pequenos, localizados, mas questionamos a propriedade privada e esse modelo atual. Talvez, o acesso à moradia possa vir por um programa real de locação social. Não esse, o atual. Mas outros, em que temos que participar da criação."
Já Franciele, lá da Terra Prometida na zona Leste, afirma que só que quer o cumprimento da lei. "A dona do terreno, que é a Caixa Econômica Federal, só suspendeu o despejo na semana passada, depois de muita mobilização da nossa comunidade. Mas o que vem depois? E o que fazer com o povo que está chegando?"
Em contato com o banco, o blog MULHERIAS foi informado que "o terreno foi ocupado de forma ilegal e que há ação de reintegração de posse em andamento". Nada mais.
Uma das vielas da Terra Prometida que o banco, público, faz questão de ter de volta (Acervo Pessoal)
Sobre o autor
Flávia Martinelli é jornalista. Aqui, traz histórias de mulheres das periferias e vai compartilhar reportagens de jornalistas das quebradas que, como ela, sabem que alguns jardins têm mais flores.
Sobre o blog
Esse espaço de irmandade registra as maravilhosidades, os corres e as conquistas das mulheres das quebradas de São Paulo, do Brasil e do mundo. Porque periferia não é um bloco único nem tem a ver com geografia. Pelo contrário. Cada uma têm sua identidade e há quebradas nos centros de qualquer cidade. Periferia é um sentimento, é vivência diária contra a máquina da exclusão. Guerrilha. Resistência e arte. Economia solidária e make feita no busão. É inventar moda, remodelar os moldes, compartilhar saídas e entradas. Vamos reverenciar nossas guardiãs e apresentar as novas pontas de lança. O lacre aqui não é só gíria. Lacrar é batalha de todo dia. Bem-vinda ao MULHERIAS.